Leia a [Parte 1]: Piratas Suecos e sua bandeira

O que poucos admitem é que o Pirate Bay – e, naturalmente as organizações que orbitam por perto dele, como o próprio Piratebyran e o Partido Pirata, que está se tornando mundial – sacudiu o mundo dos direitos autorais, e iniciou uma discussão que poucos teriam coragem de iniciar. O fato dele ser conduzido por alguns amigos sentados frente a seus computadores só aumenta a aura rockstar ao redor de tudo com a marca Pirate em seu nome.

A discussão não é nova e nem foi iniciada pelos suecos, já que os principais estúdios de Hollywood entraram numa revolta similar com o advento do VHS há algumas décadas atrás. “O VHS é para o produtor de filmes e o público americano o que o estrangulador de Boston é para a mulher sozinha em casa“, disse Jack Valenti, presidente da MPAA por 38 anos (1966-2004), e criador do infame sistema de classificação de filmes; durante um depoimento no Congresso Americano, em 1982.

Olhando hoje, a revolta foi desprovida de motivo, e se assemelha a birra de uma criança mimada, pois os videocassetes criaram um novo ramo de negócio bilionário para Hollywoodd, o Home Video, que foi a salvação para muitos filmes. A TV a cabo foi vista com os mesmos olhos por Hollywood, sendo imediatamente repudiada. Hoje, as principais empresas produtoras de filmes são donas dos maiores canais a cabo. A distribuição digital é como um videocassete sem fitas magnéticas. Se copia uma programação pronta e pode-se distribuir livremente por aí. Era um processo simples e fácil, e bastavam dois videocassetes para fazer uma cópia perfeita de um filme alugado, ou emprestado.Cabiam até três filmes em uma única fita, para os mais pão-duros.

A grande diferença diz respeito a velocidade e ao modo de distribuição. Enquanto o mundo dos bits permite um simples Ctrl+C/Ctrl+V, e alguns segundos depois surge uma cópia do último filme de Spielberg, os videocassetes exigiam que o filme fosse gravado na velocidade normal, ou no máximo, duas vezes mais rápido. Um upload substitui a velha distribuição dos Correios, com a diferença que um upload permite que sejam baixadas infinitas vezes o mesmo arquivo. Apesar dessas diferenças, o princípio ainda tem a mesma natureza: de cópia. Por que a mesma MPAA não invadia casas de pessoas e as impediam de fazer cópias dos filmes preferidos delas? Ou a RIAA (o equivalente da MPAA na indústria musical) fazia o mesmo quando fãs da banda de rock da semana copiavam CDs dos amigos em K7s e os ouviam até gastarem completamente? A resposta para isso passa pelos meios de distribuição de conteúdo.

O K7 e o VHS era um meio caro e limitado de propagação de conteúdo, ao passo que a internet representa algo praticamente sem lei, o que logicamente não atrai a simpatia das mais variadas corporações. A internet representa uma espécie de desafio intransponível para essas organizações, ali elas se movem como paquidermes desajeitados e solitários, cujas patas esmagadoras não podem fazer muito perante um monte de formigas. Hollywood e as outras indústrias que estão gordas de tanto tirar uns bons lucros dos direitos autorais, estão acostumadas a controlar completamente os meios de distribuição de todos os produtos do mercado em que atuam. Foi assim com os cinemas até a invenção do VHS, com o VHS até a invenção do DVD, com o DVD até… bem, o Blu-Ray não está lá repetindo aquele boom comercial épico que o DVD protagonizou.

Após a popularização da banda larga, a sirene tocou na MPAA/RIAA. Cabos de rede não podem ser controlados como discos. Por mais que seja fácil copiar filmes em DVD, principalmente naquelas máquinas com umas 10 baias cheias de drives, o impacto de um falsificador físico de DVDs não é lá muito grande. Quando o é, o cara logo é enquadrado pela polícia, podendo escolher entre pagar alguma propina gorda ou ser preso. Ele também precisa de uma vasta rede de gente pra vender na rua e de outra pra distribuir os discos pra essa galera que vai vender; tudo enquanto tentaa se manter anônimo.

Existe muita grana na jogada, e por isso logo atrai muita atenção. Com a internet – e principalmente com o protocolo torrent -, toda essa super estrutura foi jogada no ralo, se tornou obsoleta. Um cara (ou caras) como o aXXo – que tinha tanto poder a ponto de 33,5% dos filmes baixados de 2005 a 2009 serem ripados por ele, segundo a BigChampagne, consultoria que pesquisa dados de downloads – podem upar um arquivo com metadados do protocolo torrent e ser responsável pela propagação de um filme pelo mundo inteiro. As redes de compartilhadores se tornam mais fechadas e anônimas – ninguém sabe a identidade de aXXo até hoje. A saída da indústria cinematográfica para conter essa onda é apostar em formatos mais proibitivos e caros. Começou com o widescreen – que fez meio mundo mudar suas TVs 4:3 para as novíssimas 16:9 -, depois o iMax – que é um sucesso, mas de forma limitada -, agora a ressurreição do 3D, que após o sucesso estrondoso de Avatar, parece cada vez mais fadado a uma morte prematura. O objetivo de todas mudanças de formato é tornar o cinema cada vez mais exclusivo, algo caro e não-reproduzível numa cópia digital baixada.

O problema é que uma série de efeitos colaterais vêm na bagagem. Os filmes tornam-se cada vez mais caros e proibitivos até mesmo para certos estúdios. E os que querem entrar na onda inicial gananciosa de ganhar uns trocados com o 3D, acabam fazendo conversões 2D/3D meia boca, o que ocasiona a perdas e prejuízos sérios. Algumas vezes, a conversão é tão ruim que o público diz que a experiência em três dimensões acaba estragando o filme, sendo aconselhável assisti-lo novamente em 2D, como foi o caso da versão de Alice no País das Maravilhas, dirigida por Tim Burton. Os prejuízos são ainda maiores se contarmos perdas em vendas de TVs e outros aparelhos que prometem imagens em três dimensões – e como cada marca possui óculos 3D proprietários, a questão só se acentua, e impede que se assista TV em 3D na casa de um amigo que tem uma TV de marca diferente da sua e está com os óculos ocupados.

Essa limitação do 3D é semelhante ao problema de formato que ocasionou a guerra entre Blu-Ray x HD-DVD. As disputas entre duas frentes de empresas defendendo seu próprio formato (mais uma vez: cada uma querendo um lucro maior que a outra) acabou por solapar cada vez mais a possibilidade de qualquer uma dela colher os louros da vitória depois. Mesmo que hoje o Blu-Ray seja o legítimo sucessor do DVD, ele não experimentou uma explosão de vendas nem de perto comparável com a do seu antecessor. Com o 3D a forma como ocorreu a disputa foi um pouco diferente, mas os resultados parecem ser similares. Não houve guerra, mas uma espécie de corrida pelo ouro que está prematuramente secando a fonte da nascente.

Uma pesquisa divulgada pelo site TheWrap em agosto de 2010, mostra o que parece ser uma tendência: a porcentagem de arrecadação do 3D nas bilheterias dos filmes está caindo. Se em Avatar – considerado o grande responsável pela ressurreição do 3D – o formato foi responsável por cerca de 71% da bilheteria, os outros grandes lançamentos que o seguiram viram essa porcentagem minguar cada vez mais. Em Como Treinar o Seu Dragão os ganhos percentuais do 3D foram de 68%, em Shrek Para Sempre esse percentual caiu 61%, Toy Story 3 alcançou 60%, e Meu Malvado Favorito bateu os 45%.

A grande interrogação dos estúdios parece ser o fato de que crianças não aguentam muito tempo com os óculos para se ver filmes no formato, enquanto que são elas o maior público do formato. Os adultos também acabam decepcionados com a qualidade duvidosa da experiência, já que boa parte dos filmes são simples conversões. Com isso, um novo e promissor formato acaba morto.

Se olharmos as empresas que estão conseguindo atualmente lucrar com cinema e música, entenderemos que a guerra passa pela obtenção do controle de uma forma de distribuição, e não necessariamente com combate a pirataria. iTunes, Netflix e NetMovies  são iniciativas corporativas que estão conseguindo taxas de lucros altíssimas, graças a obtenção de um bom formato de distribuição, barato e ao mesmo tempo acessível. O iTunes no momento vende 25% de todas as músicas dos EUA, e bateu a marca de 10 bilhões de músicas vendidas em fevereiro (de 2011). A Netflix é simplesmente a rede de locadoras do novo milênio, que inaugurou o esquema de negócios baseado na internet e deixou a anteriormente toda-poderosa Blockbuster comendo poeira, possuindo mais de 11,1 milhões de assinantes no momento.

A NetMovies é uma espécie de Netflix brasileira, e chegou no ano passado ao número de 10 milhões de locações, e espera crescer 350% até o fim desse ano, o que não é pouca coisa num mercado cada vez mais decadente como o de locação. Em comum entre todas essas empresas é o fato de todos elas utilizarem banda larga como forma de distribuir conteúdo (ou ao menos de se relacionar com os clientes, como é o caso das duas locadoras), abandonando a velha mídia física.

Como uma forma de quebrar essa tendência, Hollywood parece agigantar ainda mais seus filmes, empurrando mídias físicas ainda mais grandiosas e definições cada vez mais agigantadas. Se um filme, há uns cinco anos, cabia tranquilamente num CD de 700 MB (o tamanho padrão de um Rip do aXXo, por exemplo), hoje os Blu-Rays possuem cerca de 70GB, tornando mais complexa a tarefa de compartilha-lo na rede, mesmo que boa parte dos grupos de uploads tenham mantido o padrão de Rips entre 700MB e 1,4GB. Essas atitudes soam meio contraditórias, seria o mesmo que um dono de restaurante, ao ver que seus concorrentes copiaram suas receitas e a estão distribuindo gratuitamente por aí, investisse em tornar suas comidas mais pesadas e difíceis de fazer e transportar, e não simplesmente mais gostosas e com mais qualidade – além de oferecer outros atrativos exclusivos a quem comesse em seu restaurante.

Somado a essa ganância hollywoodiana por lucros cada vez maiores (2009 foi o ano em que Hollywood quebrou seu recorde histórico de arrecadação em bilheteria, alcançando US$ 10 bilhões de dólares), essa grande iniciativa popular no sentido de compartilhar músicas e filmes acabou ocasionando uma histórica inversão: pela primeira vez os clientes, aqueles que sustentam a indústria se tornaram os inimigos número 1 dela, já que uma pesquisa conduzida pela BI Norwegian School of Management, indica que aqueles que fazem uso do protocolo BitTorrent para baixar músicas e vídeos são justamente os maiores clientes desses dois mercados, tanto na compra de CDs e DVDs, quanto no comparecimento a shows musicais.

A pesquisa, de meados de 2009, ouviu 2 mil usuários e concluiu que os que normalmente baixam conteúdo da internet compram 10 vezes mais música que usuários “comuns”. Outra pesquisa, dessa vez realizada Frank Magid Associates à pedido da administração do cliente Torrent Vuze, obteve resultados parecidos e um pouco mais aprofundados (embora tenha ouvido menos usuários, cerca de 1300): os que usam torrent, compram cerca de 16 DVDs por ano, contra 13 de média dos que não usam torrent para fazer download; e eles vão ao cinema oito vezes ao ano, contra seis dos que não baixam. Se os estudos trabalham com amostras muito pequenas para chegarem a uma conclusão, ao menos são mostras de que a realidade de pirataria está matando Hollywood parece ser menos verdadeira do que aparenta. Mas, mesmo assim, os detentores de direitos autorais preferem fechar os olhos para essas indicações, e continuam a bater na antiga tecla de tentar tirar da face da terra quem tem a ousadia de baixar conteúdo grátis.

E após vencer essa potente barreira psicológica no sentido de tornar a mão que os alimenta também um inimigo, e de estarem dispostos até mesmo a atraírem a ira de toda a opinião pública, os chefões da indústria cultural resolveram que ganhariam na justiça o direito de vencer uma guerra que duas décadas antes jamais poderia ser vencida. Se algo da magnitude de toda a movimentação que o estabelecimento do Piratebyran causou, não existiu anteriormente, diz respeito, principalmente, ao fato de que ele não era muito necessário. O sistema judicial americano possuía atitudes menos pró-corporação e tomavam suas decisões num viés mais pró-consumidor. Tal direcionamento não existe hoje. Após a Era Reagan, as corporações tomaram tudo e de forma bem ostensiva, e os vereditos de juízes passam muito longe do que eram há três décadas, quando uma multidão de usuários foram processados por fazerem cópias de filmes… e ganharam todas.

Atualmente, os que não são condenados em processos movidos por corporações não têm nem seus nomes escritos em jornais e isso tem um bom motivo. A parcialidade de como a questão é tratada pelos veículos jornalísticos passa pelo fato de que as principais corporações que controlam a mídia também possuem estúdios cinematográficos e gravadoras de música. Então, no mínimo, deve-se refletir sobre a veracidade do que ali está apresentado, visto serem as próprias notícias um produto de venda que entra num grande conjunto onde estão filmes e músicas supostamente ameaçados por piratas.

A Warner é dona da CNN e da rede Time, ao mesmo tempo em que possui a Warner Music; a Fox é dona tanto do estúdio 21th Century Fox quanto da Fox News; a Viacom é dona da do estúdio Paramount, e da MTV e CBS; já a Disney Enterprise é dona da rede ABC. Muito provavelmente existe um certo comprometimento natural nas informações passadas por essas redes no tocante ao assunto

Compartilhamento, e um forte protecionismo relativo a divulgações de notícias do assunto. Não só nunca é fomentada uma discussão sobre isso, como só são divulgadas informações benéficas pra indústria dos direitos autorais. Como imaginar que o mesmo conglomerado que produz propagandas ridículas contra a pirataria – daquelas que fazem rir até mesmo quem é a favor de um endurecimento ainda maior das leis de copyright, mostraria em seu noticiário que um grande estúdio acabou de perder um processo contra usuários que estão baixando filmes a torto e direito. Difícil…

Uma outra coisa pouco discutida diz respeito a mudanças na própria legislação em tempos recentes, principalmente nos EUA. Pirataria era essencialmente a venda de material com copyright, a distribuição com intenção de lucros de produtos com direitos autorais registrados. E era a área civil do Judiciário a responsável por cuidar dos processos. Ou seja: alguém que cometesse esse tipo de infração, era processado, e se perdesse, recebia uma multa. Hoje, as punições por violações de direitos autorais acarretam consequências muito mais severas. Um dos casos mais famosos da história recente diz respeito ao blogueiro Kevin Cogill, que upou e distribuiu gratuitamente nove faixas do álbum mais adiado da história da humanidade: Chinese Democracy, do Guns ‘n Roses. O detalhe é que o disco nem tinha sido lançado – e os 15 anos de produção desse disco mediano deve ter influenciado na ira com que a gravadora Geffen foi pra cima do pobre designer que disponibilizou as músicas – o que deve ter contribuído para ele pegar dois meses de prisão domiciliar e um ano de liberdade condicional – além de ser intimado a participar de um comercial anti-pirataria.

Carregar mais artigos relacionados
Carregar mais por Filipe Siqueira
Load More In Compartilhamento

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Confira também!

Como a Magia pode te ajudar a sobreviver em tempos tenebrosos

“O Caos nunca morreu. Bloco intacto e primordial, único monstro digno de adoração, i…