Em geral, os livros que mais gosto de ler são os europeus. Os romances americanos, embora pertençam a maior indústria editorial do mundo, muitas vezes são entediantes por citar marcas famosas a cada duas frases e apresentar personagens que mais parecem saídos de uma novela. E das ruins! Mas tenho que reconhecer que, mesmo assim, existem autores americanos que são alguns dos meus maiores heróis da literatura. Kurt Vonnegut, F. Scott Fitzgerald e Bukowski, tão diferentes entre si, são alguns deles. Porém, é quando falo em horror que o nome Estados Unidos aparece de cara na minha mente. O país foi berço dos dois escritores que, para mim, são os dois maiores autores do gênero: Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft. Como se isso já não fosse o bastante é de lá um dos melhores romancistas da atualidade e rei moderno da arte de arrepiar leitores até a medula, Stephen King.

Stephen King não é considerado por fãs e críticos o mestre do terror atual apenas por ter escrito clássicos instantâneos como Iluminado, Zona Morta e Torre Negra e pela imensa qualidade destas. Além do fato de ser best seller certeiro em mais de quarenta países ele adquiriu uma posição invejável para todo escritor com um mínimo de ambição. O de ser maior que os seus livros. O leitor que geralmente compra Saco de Ossos ou Quatro Estações, só para servir de exemplo, não os compra pelos motivos convencionais, que vão desde recomendação de amigos ou porque gostou da história ou da capa dele. Compra porque é mais um de Stephen King. Porque sabe que o nome dele é sinônimo de alta qualidade. Pode reparar que o nome dele nas capas dos romances é de três ou quatro vezes maior que os próprios títulos. Não fosse só isso, sempre que King indica algum livro que gostou as vendas deste aumentam consideravelmente.

Em torno dos moradores, a bestialidade da noite irrompe em asas noturnas. A hora do vampiro chegou.

Falando isso, fica difícil acreditar que trinta editoras recusaram Carrie, seu primeiro romance, até ele ser lançado e se tornar o sucesso que foi. Financeiramente confortável, King começou seu segundo romance sobre um tema que todo autor de suspense e terror deveria voltar seus olhos pelo menos uma vez. Baseando-se profundamente em Drácula, ele criou uma obra tão assustadora e longa quanto o clássico. As semelhanças são muitas e fazem A Hora do Vampiro ser a grande atualização do mito da forma como ele se popularizou anos atrás e não a revolução perpetrada por Anne Rice só um ano depois com sua estréia no mercado, Entrevista com o Vampiro. Stephen King, em um momento de particular e cruel auto-crítica afirmou que o livro era um plágio de Drácula. Não é. É uma história que só se baseia nos mesmo conceitos explorados por Bram Stoker. Claro que ele poderia ter tentado trilhar um caminho novo e criar uma nova visão dos vampiros, mas esse não era seu objetivo. Entretanto, a abordagem de A Hora do Vampiro ainda consegue ser mais profunda e elaborada em vários aspectos.

O poema Cristabel e o romance de Stoker eram apenas frutos de imaginações refinadas. Claro que existiam monstros, mas eram os controladores de bombas termonucleares, os seqüestradores, os assassinos em massa, os molestadores de criancinhas. A marca do demônio no seio de uma mulher não passava de uma pinta. O homem que se ergueu dos mortos e voltou para casa apenas sofria de ataxia, o bicho-papão no canto do quarto nada mais era que cobertores empilhados. Até Deus já estava morto, segundo alguns.

Mas a inspiração não veio apenas de Drácula. Quando tinha apenas oito anos, Stephen King teve um estranho sonho. No sonho havia o corpo de um homem enforcado pendendo do poste de um cadafalso sobre uma colina. Havia gralhas nos ombros dele, e um imenso céu esverdeado ao fundo. Havia uma inscrição no cadáver: ROBERT BURNS. Quando King se aproximou pode ver que o morto tinha seu próprio rosto. Um rosto podre pelo tempo e devorado pelos pássaros, mas era seu rosto. Seu rosto. 16 anos depois ele escreveria este sonho em A Hora do Vampiro.

Há coisas piores do que a morte.

Tudo começa quando Ben Mears decide voltar para Salem’s Lot, cidade interiorana onde morou por quatro anos e passou por uma experiência traumática que até hoje tira seu sono. Enquanto isso quer terminar seu mais novo romance e torcer para que finalmente ganhe alguns dividendos no ofício de escritor. Lá, conhece aos poucos o restante dos principais personagens. Susan Norton, seu primeiro amor depois que a esposa faleceu tragicamente em um acidente. Matt Burke, um professor entendido em literatura e que conhece quase todo mundo da cidade. Jimmy Cody, o médico do grupo e mais cético de todos. E Mark Petrie, um garoto fanático por monstros e de uma impetuosidade e inteligência maior que a de muitos adultos. Talvez seja um dos melhores personagens-mirins de toda a obra de Stephen King.

Ele ouvira dizer que escritores bebiam como condenados.

Ao mesmo tempo em que Ben entra na cidade um enigmático forasteiro chamado Strawker, que traz à cidade um horror que nenhum de seus habitantes seria capaz de imaginar dentro de um ambiente tão calmo como aquele. A partir disso, coisas estranhas começam a acontecer por todos os cantos. Os planos do vampiro começaram.

A base de todos os medos humanos, pensou ele. Uma porta entre-aberta.”

O último livro que tinha lido de Stephen King era justamente Carrie, a Estranha. Quando comecei a ler A Hora do Vampiro fiquei impressionado em perceber o quanto ele evoluiu só no espaço de tempo entre um livro para outro. Não apenas em termos de horror. Os personagens são muito mais naturais, agindo e falando de maneira que eu mesmo faria se estivesse em situações semelhantes. A descrição do que se passa no íntimo deles e do calor das cenas são brilhantes, gerando momentos marcantes e que não desgrudam fácil da cabeça. A Hora do Vampiro só não tem um clímax tão sensacional quanto o de Carrie, já plagiado milhares de vezes pela televisão e pelo cinema.

Os monstros no cinema são divertidos porque sabemos que não estão soltos por aí.”

Qualquer pessoa que já leu um livro de Stephen King sabe o quanto pode ser enervante ficar muito tempo sem ler o livro. Não é á toa que ele é chamado de mestre do suspense. Ele tece histórias capazes de nos fazer perder o dia inteiro lendo somente para saber o que vai acontecer na próxima página. De cara já sabemos que toda a população de Salem’s Lot sumiu. E os únicos remanescentes são um homem alto e um menino. Então somos jogados no começo da história, completamente no escuro. É exatamente esse suspense bem construído que pode irritar alguns. A trama se desenvolve aos poucos, não vai ser logo nas primeiras cinco páginas que um vampiro vai pular do nada na jugular de alguém. Os habitantes da cidade são apresentados um a um, são muitos. A sensação de perigo se torna ainda mais iminente a cada capítulo. E você começa a se perguntar qual desses personagens vai morrer durante a história. O diferencial é que Stephen King faz você se importar com a perda deles.

Morar na cidade era uma contínua relação sexual tão completa que aquela que ele e sua mulher faziam na cama ]á noite parecia um aperto de mão.

A própria Jerusalem’s Lot, mesmo fictícia, recebeu bastante atenção de Stephen King. Ela tem sua própria história. Sua fundação, seus heróis, os segredos mais secretos, tudo nos é contado. Incidentes que marcaram para sempre a sua população pequena e primitiva. Falando em história, uma casa se destaca, a Casa Marstein. Ela parece vigiar a cidade e emanar uma energia maligna capaz de ser sentida a muitos metros de distância. Ela e a cidade são muito importantes para a trama. Neles já podemos encontrar elementos que fariam de Iluminado um dos melhores livros de Stephen King.

A casa parecia se curvar em direção a eles, como se os aguardasse. Hank aproximou-se da entrada e deu a volta até os fundos da casa. Nenhum dos dois quis ver o que a luz trêmula dos faróis revelava na grama espessa do quintal. Hank sentiu o medo gelar como não sentia nem no Vietnã, ele que passara a maior parte do tempo apavorado lá. Mas era um medo racional. Medo de pisar numa armadilha química e ver o pé inchando como um balão verde, medo de que um garoto cujo nome não dava nem pra pronunciar estourasse seus miolos com um rifle russo, medo de pegar um comandante alucinado que mandasse você dizimar um vilarejo onde os vietcongs haviam estado uma semana antes. Mas o medo que ele sentia agora era infantil, nebuloso. Sem ponto de referência. Uma casa era uma casa. Tábuas, dobradiças, pregos e soleiras. Não havia nenhuma razão para achar que cada estalido de madeira fosse causada por emanações malignas. Era pura estupidez. Fantasmas? Ele não acreditava em fantasmas. Muito menos depois do Vietnã.

Mas um dos principais pontos fracos de A Hora do Vampiro, além da extensa quantidade de personagens (é difícil não esquecer o nome de pelo menos uns três), está justamente na Casa Marstein. Stephen King não definiu bem o que se trata a sua história logo no começo. Afinal a história é sobre o quê? Fantasmas? Casas mal-assombradas? Vampiros, como já indica o título? Ou tudo isso junto? Só se sabe realmente a resposta na metade do livro. E ela não decepciona.

O povo deste país não sabe o que é passar fome e necessidade. Há duas gerações que não conhecem nada parecido, e, mesmo quando conheceram, era apenas um eco distante. Acham que sabem o que é tristeza, mas é a tristeza de uma criança que derrubou o sorvete no chão.

Analisando de forma um pouco grosseira os principais personagens tem ecos de Drácula. Ben seria um Jonathan Harker, enquanto Susas Norton uma Mina Murray. Matt Burke é um homem das ciências que alerta os companheiros sobre o perigo que os espera, ou seja, é o Van Helsing. Jimmy Cody é o Dr. Seward. Já Strawker é o que Renfield poderia ser se fosse mais lúcido. Não que não tenham suas próprias personalidades bem elaboradas, mas ocupam basicamente a mesma função na história. Coincidência ou não, os melhores personagens são os que não lembram em nada os do clássico de Bram Stoker. Mark Petrie e a coragem que só as crianças são capazes de ostentar. E Donald Callahan, um padre alcoólatra que fala palavrões e está perdendo a fé em Deus. Ele só queria uma oportunidade de enfrentar o Mal, frente a frente.

De fato, ele se via obrigado a concluir que não existia o MAL, mas apenas o mal, ou o (mal), talvez. Nesses momentos, ele suspeitava que Hitler não passava de um burocrata atormentado e o próprio Satã  era um débil mental com péssimo senso de humor, do tipo que acha engraçado dar bombinhas enroladas em pão a gaivotas.

Também há Barlow, um personagem muitíssimo melhor do que Drácula. Não se sabe quase nada sobre ele, apenas que deve ser de origem eslava. Parece existir desde tempos imemoriais, talvez desde os primórdios da humanidade. Sua sede de sangue é insaciável e para ele, o grupo do Ben, Matt e os outros são como baratas tontas. Seu poder é tão grande ou maior quanto o do próprio conde Drácula. Tem a força, a velocidade, a capacidade de domar os seres da noite, o dom da inteligência avançada, e mesmo sendo um predador perfeito seduzir suas vítimas para a morte, como a luz de uma lâmpada atrai uma mariposa. A mente humana não consegue se manter firme perante as ordens mentais deles e a seus olhos, vermelhos como sangue, poderosos o bastante pra hipnotizar alguém e prometer tudo o que ele mais quer na vida.

Ninguém supera os medos que nunca foram articulados. E os temores presos nas mentes infantis são grandes demais para caber em palavras. Com o tempo, todos se acostumam a passar na frente de casarões abandonados. Até aquela noite. Naquela noite, ele descobriu que seus velhos medos não haviam morrido. Permaneciam vivos, guardados, nos baús da infância.

E é certeza de Barlow que deixa as coisas cada vez mais angustiantes. Principalmente, quando os personagens vão tombando. Um a um, lentamente. Não demora e logo uma multidão de vampiros toma a cidade. E então Stephen King começa a fazer o que já era mestre, criar seqüências assustadoras. Acabou escrevendo um livro que parte de onde o Drácula teria parado e criando um uma história com os monstros em seu nível clássico. Só não espere um aprofundamento tão grande nos vampiros. Eles não são os principais do romance, são os antagonistas assim como Drácula também foi. É o elemento de horror, o que leva os personagens a fazerem o que fazem. E o fato de King conhecer tão bem nossos medos só coroa tudo. Sabe, por exemplo, que uma porta fechada é muito pior do que o monstro em si. O medo vem da dúvida. É este talento capaz de te fazer considerar a sério a idéia de pegar um crucifixo antes de voltar à leitura de A Hora do Vampiro.

 

Autor: Stephen King

Páginas: 272

Nota: 8,5

Compre essa fantástica obra de Stephen King!!

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No Comments

  1. Tio Chocomalk

    29 de novembro de 2012 at 16:14

    Escuto falar muito sobre esse livro
    mas sempre falando mal D:

    Reply

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