[ARTE DA VITRINE]: Thiago Chaves (@chavespapel)

Podemos admitir sem pesar que nada podia fazer nossos concidadãos preverem os incidentes que se deram na primavera desse ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos graves acontecimentos cuja crônica nos propusemos a fazer aqui. Esses fatos parecerão a alguns perfeitamente naturais e a outros, ao contrário, inverossímeis. Mas, afinal, um cronista não pode levar em conta essas contradições. Sua tarefa é apena dizer: ‘Isso aconteceu’, quando sabe que isso, na verdade aconteceu; que isso interessou à vida de todo um povo e que, portanto, há milhares de testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade do que ele conta.

O medo é provavelmente o mais poderoso e antigo sentimento da humanidade. Nos acompanhando desde o início das eras, ele é a nossa defesa essencial, uma garantia de prevenção contra os mais diversos perigos, um reflexo que permite com que se escape, ao menos por um tempo, da morte. E dentre os medos mais fortes se encontra em posição de destaque a das doenças mortais. O terror que se seguiu  à descoberta da AIDS ou a histeria nacional que se seguiu à notícia de que a gripe suína havia chegado ao Brasil mostram bem o que eu estou falando. De todas as doenças existentes nenhuma outra provocou tanto terror, pânico coletivo e povoou a imaginação das pessoas quanto a peste. A chamada Morte Negra podia ser tão devastadora que, segundo relatos da época, chegou a dizimar a terça parte do mundo. Em seus surtos mais extensos podia eliminar 40% da população de uma cidade. Passada a epidemia, ela ainda passeava tranquilamente de rua em rua, bairro a bairro, provocando um estado permanente de nervosismo.

Capaz de atacar indiferentemente todo tipo de pessoas, fossem homens, mulheres, ricos, pobres, fortes, fracos, velhos ou jovens, não é de se estranhar porque a peste inspirou um número sem fim de artistas. Seja para exorcizar o horror que sentiam ou para registrar as mudanças ocorridas na sociedade durante a epidemia, ela foi tema de gravuras de Rafael, do Decameron de Boccaccio, de Um Diário de um ano da peste, de Daniel Defoe, a Máscara da Morte Rubra de Edgar Allan Poe e, talvez o mais completo de todos, A Peste, de Albert Camus.

A Peste é um livro difícil de definir. Seria ele um relato documental de um difícil período histórico, com direito a depoimentos dos principais personagens? Uma crônica como o narrador, anônimo a maior parte do tempo, diz ser? Ou ela não passa de uma tragédia moldada de forma clássica? Afinal, o grande número de personagens até chega a ser apresentado logo nos capítulos iniciais, como atores em uma peça de teatro. A peste em si é um elemento puramente trágico. Esse anjo negro vem trazer um destino quase imutável, inescapável. Dela nada se sabe, nem de onde veio e nem quando irá embora, a não ser o que ela é.

Independente do que seja A Peste é sobretudo ficção para exprimir as reflexões mais profundas do autor. Como ele chegou a afirmar o romance é a filosofia transposta em imagens.

“Uma forma conveniente de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre.”

“A imprensa, tão indiscreta no caso dos ratos, já não mencionava nada. É que os ratos morrem na rua e os homens, em casa.”

Aqui Camus abandona por completo o individualismo rascante e genial presente em sua outra obra-prima O Estrangeiro para explorar a comunidade, as multidões. Orã, a cidade onde se passa tudo, é a verdadeira protagonista. É ela que torna a história possível e une pessoas que aparente nada têm a ver entre. Pequena cidade da Argélia, monótona e feia, seus habitantes vivem tranquilamente apenas para o trabalho, o acúmulo de riquezas e os prazeres mundanos. Uma localidade tão banal quanto qualquer outra, tão comum que parecia difícil para maioria aceitar que logo ela seria hospedeira da peste bubônica. Nem mesmo quando milhões de ratos mortos cobrem cada centímetro das ruas sem nenhuma explicação e as pessoas, uma a uma, começam a falecer com os sintomas característicos da doença, ainda era difícil admitir. Mas logo os hospitais já não conseguiam atender a todos os contaminados e a presença da enfermidade não poderia mais ser negada. Assim que é oficializada as portas da cidade são fechadas até que a epidemia cesse e a saída dos habitantes é terminantemente proibida. Agora, querendo ou não, era preciso conviver com a peste e o medo diário da morte.

Esverdeado, com os lábios descorados, as pálpebras pesadas, a respiração entrecortada e breve, dilacerado pelos gânglios, abatido no fundo da maca, como se quisesse fechá-la em torno de si ou como se qualquer coisa vinda do fundo da terra o chamasse sem descanso, o porteiro sufocava sob um peso invisível.

Quando estoura uma guerra as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria estúpido!’ Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar.

Contudo, pior que a própria peste eram as mudanças que a vida comum eram obrigada a passar. Os cidadãos que tinham seus cônjuges, amantes ou parentes fora da cidade antes das portas serem fechadas se viam obrigados a se verem privados da sua presença. Raramente se saía de casa pelo pavor crescente do contágio e era preciso aprender a conviver com a falta crescente de mantimentos ou o encarecimento cada vez maior de alguns deles. Com o cemitério cada vez mais lotado que em pouco tempo só era possível empilhar as centenas de novos corpos que surgiam diariamente de qualquer jeito em uma cova improvisada ou cremar imediatamente em um velho forno após o óbito.

O que mais chama a atenção em A Peste é a perfeição. Dá pra perceber em que foi gasto os sete anos em que o livro levou para ser preparado. O trabalho em cada página, cada parágrafo, cada frase. Tudo se encaixa harmoniosamente, como uma sinfonia em que se apenas uma nota ao acaso fosse retirada todo o resto sairia prejudicado. Desde os diálogos, extremamente naturais, mas que mesmo assim não deixam de ser profundos e diferenciar cada um dos personagens.

Peste, a palavra não continha apenas o que a ciência queria efetivamente lhe atribuir, e sim uma longa série de imagens extraordinárias que não combinavam com essa cidade amarela e cinzenta, moderadamente animada a essa hora, ruidosa, ou melhor, zumbindo feliz, em suma, se é possível ser ao mesmo tempo feliz e taciturno. E uma tranquilidade tão pacífica e tão indiferente negava quase sem esforço as imagens do flagelo: Atenas empestada e abandonada pelos pássaros; as cidades chinesas cheias de moribundos silenciosos; os condenados de Marselha empilhando em covas os corpos que se liquefaziam; a construção, na Provença, de uma muralha para deter o vento furioso da peste; Jafa e os seus mendigos horrendos; os catres úmidos e podres colados à terra batida do hospital de Constantinopla; os doentes suspensos por ganchos; o carnaval dos médicos mascarados durante a Peste Negra; os acasalamentos dos vivos nos cemitérios de Milão; as carretas de mortos na aterrada Londres; as noites e os dias em toda parte e sempre cheios dos gritos intermináveis dos homens.

Com apenas ocasionais descrições de seus personagens é impressionante como mesmo a personalidade de cada um logo nos ficam fixas. A intenção de Camus não é que os conheçamos desde os primeiros passos e os pequenos hábitos. Seu interesse é mostra-los como se fossem vizinhos próximos a nós, de quem gostamos, porém que pouco conhecemos.Com o avançar da leitura ela se torna tão vívida que sentimos como se eles fossem nossos conhecidos de Orã. Ficamos íntimos de suas ruas, de seus cafés e do cinema que sempre exibe os mesmos filmes.

O grande tema de A Peste não é, como o título indica, a doença em si e nem mesmo as mortes que a mesma acarreta. É sobre a união da amizade que ela proporciona entre as protagonistas Dr. Rieux, o jornalista Rambert, Cottard, Tarrou e o insignificante funcionário público Grand. Paradoxalmente, assim que esses personagens reconhecem na peste uma realidade cruel eles percebem que a única forma de se opor a ela é através da sociabilidade, vencendo-a ou não. Como nos sugere Roland Barthes se para Sartre o inferno são os outros, para Camusos outros são o paraíso.

Mesmo depois de o Dr. Rieux ter reconhecido que um punhado de doentes dispersos acabava de morrer de peste, sem aviso, o perigo continuava irreal para ele. Simplesmente, quando se é médico, faz-se uma idéia da dor e tem-se mais um pouco de imaginação. Ao olhar pela janela a cidade que não mudara, mal pode-se dizer que Rieux sentia nascer dentro de sei esse ligeiro desânimo diante do futuro que se chama inquietação. Ele procurava reunir no seu espírito o que sabia sobre a doença. Números flutuavam na sua memória e ele dizia a si mesmo que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se o vermos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história esfumaçam-se na imaginação. O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio tinha feito dez mil vítimas em um dia. Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer. Juntar as pessoas à saída do cinema para conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer em montes para compreender alguma coisa. Ao menos se poderiam colocar alguns rostos conhecidos nesse amontoado anônimo. Mas, naturalmente, isto é impossível de realizar e, depois, quem conhece dez mil rostos?

Entretanto, nem sempre o mal calha de ser uma doença. Às vezes ele tem feições humanas. Escrito durante o auge e o desfecho da Segunda Guerra Mundial, A Peste é interpretado até hoje por muitos especialistas como uma alegoria à Ocupação Nazista e aos regimes totalitários e que Orã nada mais era que a França sitiada. É certo que para confirmar essas hipóteses a história contém alusões a ditaduras e a própria Ocupação, como a decretação do estado de sítio e todos os episódios do livro podem ser traduzidos nos termos da Resistência e da Ocupação. Os oraneses lutando contra a Peste enfrentam exatamente as mesmas situações que os franceses de 1942 às voltas com a ocupação nazista. A epígrafe do livro, do escritor Daniel Defoe, ainda legítima em larga medida essa interpretação (“É aceitável representar uma espécie de aprisionamento por outra…”). Mas o livro é muito mais que isso. Uma reflexão sobre a fragilidade do homem, do resgate ao amor, a solidariedade e a compaixão que os momentos difíceis provocam nas pessoas e a própria essência das relações humanas. Aberta a centenas de interpretações fica fácil compreender porque mais de cinquenta anos após o falecimento de Camus se ver preso em sua literatura claustrofóbica ainda seja uma experiência que nunca será igualada.

 

A Peste (Best Bolso/Record,s/d)

Autor: Albert Camus

Páginas: 278

Nota: 9,0

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No Comments

  1. Alice

    24 de fevereiro de 2012 at 15:18

    Excelente artigo!!!!
    Me deu vontade de largar o trabalho e ir na livraria aqui perto comprar o livro!

    Como nos sugere Roland Barthes se para Sartre o inferno são os outros, para Camus os outros são o paraíso.
    Fantástico!

    Vai pra minha lista de livros a serem comprados!!

    Reply

  2. Beto Mafra

    25 de fevereiro de 2012 at 21:18

    Quando li “A peste”, tinha 12 anos. A claustrofobia sentida na leitura me acompanhou por vários anos e depois superei, ao perceber novas ondas de pestes variadas, que são amplificadas pelo horror ancestral dessa peste relatada por Albert Camus.
    Foi um livro opressivo para o menino que eu era.
    A resenha me fez desejar lê-lo novamente.
    Parabéns, Murilo.

    Reply

  3. Richard

    26 de fevereiro de 2012 at 02:01

    Vai para a minha lista, que já anda imensa…

    Abs,

    Reply

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