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[Créditos imagens: 1 e 4 são do UOL, a 5 é da Veja]

Eu finalmente, olho para trás quando a subida da Avenida Brigadeiro Luís começa a ficar realmente acentuada: atrás de mim uma multidão tsunâmica berra palavras de ordem e frases de efeito – “Vem, vem, vem pra rua vem, contra o aumento”, “Ei Brasil, vamo acordar, um professor vale mais que o Neymar”, “Ô motorista, ô cobrador, me diz aí se seu salário aumentou”, foram apenas as frases mais usadas – com força assustadora para uma massa de gente que caminha vigorosamente há pelo menos quatro horas. Me sinto como parte de algo grande, parte de uma ruptura no sempre modorrento e unidimensional cenário político brasileiro, o que é ampliado pelo clima de felicidade da manifestação, aumentado ainda mais para mim, pela presença da minha namorada, Carla, e por amigos de trabalho.

Mais do que segurança, a multidão transparece acolhimento. Muitos dos que estão lá provavelmente pisaram em seu primeiro protesto naquela noite – ocorrido na noite de 17 de junho, quatro dias depois do Protesto mais importante dessa onda de manifestações – e um ambiente pacífico como aquele, provavelmente soou quase paterno. Nas janelas, fomos saudados por moradores que fizeram questão de pendurar toalhas brancas em apoio ao movimento, motoristas de carros buzinaram em aprovação e saíram da pista como que dando lugar a uma comitiva real, passageiros dos ônibus dançaram ante nossa passagem por avenidas movimentadas e agora fechadas, e comerciantes abraçaram o lucro certo ao manterem seus estabelecimentos abertos e oferecerem alguma opção para saciar a fome que crescia geometricamente.

Mas no outro dia, algo começou a azedar de forma mais-sútil-impossível. Os Grandes Veículos de Mídia do país – quer nomes mais diretos do que esse rótulo escrito em maiúscula? Folha de São Paulo, Estadão e revista Veja, pra ficar nos mais poderosos, que menos de uma semana antes haviam envenenado o clima dos protestos ao praticamente exigirem o uso da Força da Lei (um eufemismo para bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha) – mudaram a direção em 180º e definitivamente apoiaram as manifestações.

Até o governador paulista Geraldo Alckmin, que estava em Paris (provavelmente bebendo champanhe com algum político narigudo e atarracado, com aquele sotaque cheio de bicos e oxítonas irritantes, típico da parte central da cidade) quando o Mais Importante dos Protestos rolou (dia 14 de junho) e ganhou a mídia internacional por causa do despreparo da polícia militar paulista, classificou os manifestantes de “vândalos” e “baderneiros”, numa clara mudança do tom do discurso. O resultado é que as cenas que marcaram o evento não foram compostas por inúmeros manifestantes berrando com os braços erguidos e esticados, mas sim olhos de jornalistas perfurados por balas de borracha, apartamentos do sétimo andar açoitados por bombas de gás e policiais militares que quebraram a janela das próprias viaturas (para acusar manifestantes, calculo sem qualquer esforço mental).

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Queria fazer um elogio às lideranças do movimento [de Passe Livre, o mais próximo de alguma organização que as manifestações possui] e também à segurança pública e à Polícia Militar“, disse o governador, que depois anunciou veto às balas de borracha para reprimir manifestantes, e mais parcimônia no uso de gás – duas ordens que pareciam vazias num primeiro momento, mas que realmente foram cumpridas posteriormente. Já Fernando Haddad, prefeito de São Paulo e a outra metade responsável pelo aumento da tarifa do transporte público de R$ 3 para R$ 3,20, que representou o estopim simbólico para essa Onda de Protestos, ficou calado. Em uma coisa eles concordavam: a tarifa não ia baixar, sob nenhuma hipótese ou ângulo de análise, o aumento havia sido menor que a inflação, e há seis meses ambos os governos subsidiavam a passagem a pedido do Governo Federal – a Folha de São Paulo nos fazia o favor de lembrar desses dados a cada parágrafo de suas matérias e editoriais que pareciam tiros apontados por cegos.

A Dupla de Governantes chamou os manifestantes para conversar, mas em declarações nos jornais já deixavam claro que o diálogo só envolveria explicações dos motivos que os levavam a considerar sem qualquer sombra de dúvidas, as passagens com um preço justo.

No mesmo dia, Pondé, Reinaldo Azevedo e outros “pensadores” da mesma estirpe que só consigo classificar como enojante e digna de ser ignorada, fizeram coro aos manifestantes, e consideraram os protestos legítimos  (o que soa imbecil, pois legítimos eles são desde o começo, visto que numa democracia o descontentamento deva ser expressado no momento que a população desejar). Esse fato, que passou despercebido para muitos, levantou um clima de tensão no ar, e as primeiras Teorias da Conspiração começaram a pipocar por aí.

*****

Corta para dia 19, por volta das 19h30. Alckmin e Haddad ombro a ombro, sorrisos falsos como o momento exigia, proferindo sem muita alegria o que uma multidão de manifestantes que invadiram as ruas do estado queria ouvir: a tarifa recuaria 20 centavos, mesmo os dois encarando o aumento como algo perfeitamente justo e economicamente aceitável. O que mudou em um dia? Como uma onda de protestos que arrancou elogios justamente da dupla de governantes que deveriam receber o recado de que as coisas não iam bem, mudou algo em tão pouco tempo?

O segredo estava na explosão potencialmente incontrolável de violência das manifestações do dia anterior. O dia 18 foi um marco e um ponto de virada no rumo dos protestos que sacudiu a coragem até do anarquista mais aguerrido. Por mais que na Teoria ver o mundo pegar fogo de modo sem volta, seja algo ansiado, ver a Realidade & a Rotina derreter à sua frente é algo que causa um certo baque. É até um pouco amedrontador. Sentir o cheiro de gás lacrimogênio, sentir uma bala de borracha passar a centímetros de sua orelha, desviar de um grupo de cinco universitários com os olhos avermelhados e fedendo a pimenta; é como uma iniciação; você a partir daquele momento sabe que sua vida não será mais a mesma, é como se a Revolta fosse algo biologicamente viciante e se tornasse um pico de sua experiência de vida, a rotina se tornasse um mero respiro até o próximo momento de Rebeldia Catártica. E a Catarse acompanha o Medo e Temor, isso é necessário, ou vira burrice e insanidade.

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Isso não ocorre somente num nível individual, mas no campo psíquico, e (ainda mais perigosamente) na Psique Coletiva. Uma olhadela em como isso funciona pode ser vista no ato final antes da tarifa recuar para R$ 3 novamente:

Haddad não esperava que parte dos manifestantes protagonizasse uma tentativa de invasão ao prédio da Prefeitura, o que abriu caminho para uma onda de violência e saques no entorno de seu gabinete, e com transmissão ao vivo pela TV.

Com assessores, secretários municipais e até guardas-civis metropolitanos encurralados na Prefeitura, Haddad foi buscar sossego em casa, no bairro do Paraíso, zona sul de São Paulo. A trégua, porém, durou pouco. Por volta das 22h, o prédio do prefeito já estava tomado pelos manifestantes, que o chamavam de “covarde” e “ladrão”.

O coro assustou não só o petista, mas sua família. Segundo pessoas próximas, a filha do prefeito, Ana Carolina, de 13 anos, chorou com medo de que o apartamento fosse invadido. Os vizinhos ameaçaram chamar a polícia. Foi aí que ele resolveu ceder.  [Estadão].

É clichezaça, mas perfeita a referência à frase proferida por V, em V de Vingança: “O povo não deve temer seu governo. O governo deve temer seu povo“. Haddad teve medo, sentiu o peso de representar e administrar bens públicos, e por isso a tarifa abaixou. De outra forma, provavelmente veríamos apenas gráficos de como o preço é aceitável, de como é menor que a inflação (que nesse momento deve deixar de ser parâmetro, visto seu valor exorbitante), e coisas similares.

O Medo, a Violência e a Subversão são as armas finais, tanto de governantes quanto do Povo. Os dois lados estão em lutas constantes e diárias por interesses intrínsecos e complexos que dependem de um fio de equilíbrio tão sutil e perigoso, quanto o fio de corte de uma navalha extremamente afiada. No geral o Povo é mais fraco, sem qualquer sombra de dúvida: não tem lideranças, precisa alimentar a família, é massacrado rotineiramente por transporte público de qualidade não maior que razoável, enfrenta empregos pouco estimulantes em sua vasta maioria, olha pras contas e decide quais delas irá pagar somente 30 dias após o vencimento, enfrenta vizinhos geralmente entediantes quando tem alguma sorte de não se deparar com alguns realmente enervantes e espalhadores de boatos, ouve gritos e choros de crianças capazes de levar qualquer um a insanidade total, etc; isso apenas em uma família de Classe Média (seja lá o que for isso, após o governo do PT remarcar tudo que sabemos sobre classes econômicas nos últimos 13 anos) comum que mora num bairro razoavelmente seguro e tranquilo duma metrópole próspera. Se considerarmos famílias de baixa renda da periferia devemos incluir toda uma gama de violência social rotineira: coisas como tiroteios, falta de comida, suborno de autoridades para conseguir água minimamente consumível, fora a sorte de permanecer longe de áreas que não sofrerão especulação imobiliária futuramente, entre outros.

Tudo isso é como uma Máquina de Fazer Salsichas, pronta para homogeneizar o povo e tirar todo e qualquer ânimo para investigar falcatruas governamentais – ficou sabendo que o Super-Herói Brasileiro da Moralidade, Joaquim Barbosa, o Homem Mais Poderoso do Já Poderoso Poder Judiciário, usará meros R$ 90 mil para uma reforma no banheiro do apartamento dele? Pois é -, sair de casa para reclamar de corrupção, da nova Emenda Constitucional Revoltante, ou coisa que o valha. Parece papo de sociólogo esquerdão com alguma saudade da Guerra Fria, mas só um tipo de pessoa extremamente cega e alheia ao mundo para não ver alguma carga de erro numa rotina massacrante, na falência dos serviços públicos, do descaso das grandes corporações que visam (vasta e esmagadoramente) o lucro astronômico – já ouviu falar sobre o Escândalo de Fraudes da taxa Libon, que agora faz dupla com  novos escândalos de remarcação de taxas que ampliaram o lucro dos 18 maiores bancos do mundo por meio de pequenos atos de fraudes e formação de quadrilha, num esquema que faz qualquer Mega Conspiração Financeira Mundial a là Família Rothschild ou Clube de Bilderberg parecer um conto bobinho dos Irmãos Grimm?

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Do outro lado, está o governo, que no Brasil possui três esferas (Federal, Estadual e Municipal) e três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). O Governo tem bilhões, tem as Polícias Militares e Civis, e as Forças Armadas (e Guardas Municipais, em algumas cidades maiores), o monopólio da violência, o controle financeiro, o controle dos territórios, e por aí vai.

Mas a Raiva, a Impotência, o Medo, e todos esses sentimentos extremamente negativos e voláteis como combustíveis fósseis ficam guardados no que conhecemos como Inconsciente  Coletivo, à espera de uma fagulha razoável para externá-los. Para alguns essa fagulha foi o aumento da tarifa, para outros (a esmagadora maioria) foi a violência da PM paulista ao reprimir uma série de manifestações pacíficas, principalmente aquela do dia 13.

Dia 18 mostrou isso: a Prefeitura foi depredada, e vimos guardas civis municipais a ponto de tomarem um pau de manifestantes raivosos. Teve até um vilão meio heroico (ou um herói meio vilanesco, você escolhe), um cara fortão daqueles de academia, vestido como aqueles baderneiros de balada que ficam bêbados com algumas doses de Ice (calça skinny, e camisa branca de botão e gola, além de uma máscara de gás, o que lhe valeu o apelido de Bane Brasuca), que chutou vidraças da prefeitura, jogou barricadas em janelas e incitou a multidão a fazer o mesmo, sem muito sucesso (depois, ele foi preso e acabou chorando e prometendo pagar pelos prejuízos, o que confirmou o apelido de Bane). A calçada de mosaicos, inclusive, virou munição numa guerra que fazia décadas que o Brasil não protagonizava.

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Bancos foram destruídos, relojoarias saqueadas e até o Teatro Municipal pichado. O prédio da Companhia de Engenharia de Tráfego teve o mesmo destino. Caco Barcellos, um dos poucos jornalistas de primeira qualidade e integridade do Brasil, foi agredido. Um carro-link da Record foi incendiado, o que nos leva a entender que o ódio a imprensa (alimentado por coberturas, em sua maioria, parciais e mudando de lado sem qualquer parcimônia) também esteve na pauta de alguns dos que lá estiveram. Em resumo: enquanto manifestantes tornavam a Prefeitura um alvo de ódio, outros saqueavam lojas no centro de São Paulo – a PM demorou a pará-los alegando que não havia sido chamada, mesmo que o Brasil inteiro já tivesse ciência da situação ao vivo.

Foi esse mergulho no Caos que trouxe a primeira vitória das Manifestações.

*****

Pisamos na Avenida Paulista, justamente de onde o grupo que seguimos manifestando pela Avenida Rebouças, Avenida Brigadeiro Faria Lima, para algumas ruas depois desembocar na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, havia saído. Para os que nunca pisaram em São Paulo (recomendo se curtem rango [um pouco caro, devo dizer], shoppings gigantescos, trânsito e uma vida noturna praticamente interminável), a Avenida Paulista é o principal ponto da cidade – não por sua importância estratégica ou exuberância ímpar, mas por conter uma síntese bem representativa do clima da cidade. Normalmente ela reúne uma mistura bem dosada de boêmios enchendo a cara, jogando conversa fora e beliscando petiscos em algum bar que cobra mais caro do que deveria; grandes grupos adolescentes bêbados com visual gótico formados majoritariamente por lésbicas saidinhas e garotos gays que parecem demorar à noite inteira para escolher a roupa mais estranha e chamativa possível; artistas de calçada que dividem espaço com representantes de ONGs (Greenpeace e PETA são as principais) que fazem malabarismos impressionantes, mas nada admiráveis, para chamar sua atenção. Além de carros, muitos carros.

A Chegada da Massa Manifestante à Avenida Paulista ampliou a rotina típica de um fim de semana de lá em umas 100 vezes – menos a parte dos carros. Até para quem estava com a cabeça entupida de raiva, negativismo e asco dos governantes, provavelmente parou alguns segundos para admirar uma Avenida Paulista cheia de gente. Foi uma visão que só consigo classificar como orgânica. Pra quem tá acostumado a chegar na Paulista saindo pelo Metrô Consolação, ver uma onda de carros na rua, e logo depois disputar com algumas pessoas semi-bêbadas a calçada que desce para a Baixa Augusta; ver a principal avenida da mais importante cidade da América Latina tomada unicamente de pessoas é algo tão inacreditável quanto aguardado: mais ou menos como encontrar um oásis a poucos minutos de decidir arrancar as papilas gustativas com as próprias mãos.

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Andamos, com aquele andar mole, sem compromisso, com alguma animação, mas naquele clima meio fim-de-festa, típico de uma madrugada de sábado – e devo acrescentar que é extremamente prazeroso sentir isso em pleno final da segunda-feira. Alguns deitavam na rua, outros corriam sem rumo, e passavam por outros ainda simplesmente esparramados em seu corredor central. O clima emulava as cenas finais de rodie movies. Abaixo do MASP, um guri de pouco mais de 18 anos sobe numa pedra e empunha a bandeira do Brasil e a tremula mais ou menos da mesma forma que aquele soldado protagonista daquela foto famosa da conquista soviética de Berlim. Os aplausos são uma espécie de auge, de Missão Cumprida. Nossa voz foi ouvida aquela noite, e arrancaríamos elogios até de autoridades (o que não é nem um pouco positivo, devo acrescentar).

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As Teorias para explicar a escalada de violência por parte dos manifestantes no dia seguinte a essa caminhada inteiramente pacífica, ordeira e feliz pela Paulista foram diversas, e disparadas por gente de todos os Quadrantes de Classificação de Posição política possíveis: alguns falaram em policiais infiltrados, que serviriam como elementos para incitar manifestantes a destruírem tudo (mais óbvia impossível); outros citaram neonazistas, reacionários diversos e outros grupos radicais do Lado de Lá, que saíram dos guetos deles e resolveram espalhar um pouco do ódio típico de pessoas de perfil psicológico Anal-Retentora-Extrema, que eles geralmente possuem; outros ainda citaram um aumento da violência policial, que agora agia cirurgicamente para chamar menos atenção e causar reações mais visíveis. Talvez nada disso, talvez um pouco de tudo (a segunda opção deve ser considerada fora da hipótese “nada disso”, já que está documentada fartamente, com ataques a militantes do PT e até bandeiras de movimentos em favor dos direitos dos negros rasgadas), mas a verdade é que depois da escalada de violência a mensagem foi passada, a tarifa reduzida… para logo depois dar origem a uma nova e ainda mais aparentemente incontrolável onda de violência impactante, regada a (ainda mais) saques em lojas, coquetéis Molotov no Congresso Nacional, depredações que fizeram as ações de fabricantes de vidros subirem vertiginosamente, e até ameças da saída da Copa das Confederações do Brasil – acompanhada da sombra de uma multa que com certeza carrega valores astronômicos. E isso porque estou me limitando a comentar os acontecimentos somente em São Paulo (e Brasília, em menor grau), porque se pularmos para o Rio a coisa se torna ainda mais assustadora.

Em um contexto histórico, essa onda de Raiva é perfeitamente entendível e esperada. Diariamente somos bombardeados por toneladas de notícias sobre corrupção, violência policial, desinformação por parte da mídia e por aí vai. Em um panorama geral, é um sistema de retroalimentação desgastante: todos falando mal de todos, na maioria do tempo. Por isso – apesar de chocantes, e anti-democráticas – o ódio a instituições públicas, grandes templos do consumo, bancos e similares é bem claro: na visão de muitos manifestantes (alguns jornais oficialmente receberam ordens de não chamarem quem faz esse tipo de ato violento de “manifestantes”, mas sim “baderneiros”, “vândalos”, ou “criminosos”, o que corrobora aquela frase famosa do Malcolm X sobre a mídia: “Se você não for cuidadoso, os jornais terão você odiando as pessoas que estão sendo oprimidas e amando as pessoas que estão fazendo a opressão”, que é parte de um pensamento ainda mais amplo e profundo, que se inicia com as frases: “A imprensa é tão poderosa no seu papel de construção de imagem que pode fazer um criminoso parecer que ele é a vítima e fazer a vítima parecer que ela é o criminoso. Esta é a imprensa, uma imprensa irresponsável”; e quando digo oficialmente, é oficialmente mesmo, com direito a minutas timbradas e assinadas por editores-chefe e diretores de redação) eles são alvos legítimos.

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E apesar do roubo ser um crime grave e condenável, cercar e depredar prédios que representam o poder público é algo perfeitamente natural, esperado e aplaudível. É em momentos como esse, que entendemos os motivos que levaram a capital nacional ser deslocada para Brasília: enquanto em Brasília foram registrados 25 mil pessoas nas ruas nos protestos do dia 20, em São Paulo foram 150 mil e no Rio o número chegou a 300 mil (alguns falaram em 500 mil). Se uma massa de pelo menos 150 mil pessoas encarasse um Congresso como um alvo, é possível que não fossem apenas janelas que tivessem sido quebradas, mas as entranhas do prédio talvez fossem violadas e sabe-se lá mais o que rolasse (o que me leva a pensar no tipo de sentimento ambíguo que Oscar Niemeyer, um comunista de carteirinha, teria ao ver a cidade que ele projetou, ter suas belas e amplas vidraças destruídas [realmente as manifestações nunca foram muito esperadas em Brasília, só assim para explicar vidraças tão gigantescas em prédios públicos, que em outros países {tipo o Kremlin russo} são verdadeiras fortalezas labirínticas e inexpugnáveis], e as bases do Palácio do Itamaraty [que simboliza a política externa brasileira, com políticos concedendo asilo a gente da índole de Cesare Battisti {que atualmente está morando nos Jardins, aqui em São Paulo, e contou com Eduardo Suplicy como “fiador moral” } e não tem pulso para condenar regimes ditatoriais] açoitadas por Molotovs).

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A Escalada de Violência coincidiu com elogios dos britânicos – “Brasileiros têm coragem de dizer o que os britânicos não tiveram”, afirmou o Guardian, em texto assinado pelo premiado jornalista Simon Jenkins – e o início de protestos em outros países da América Latina – Argentina e Paraguai, até o momento. Do outro lado, militantes esquerdistas criticaram a falta de foco das manifestações (o que as manifestações desejam? quem as lidera? quando elas irão parar? são perguntas feitas por aqueles que recebem alguma grana para se debruçar sobre livros e tentar traçar um panorama acerca de tudo que tá rolando, se possível linkando com os acontecimentos turcos [e se aqui, também criticaram as marchas com o argumento barato que diz “tudo isso por 20 centavos?”, lá na Turquia devem ter dito coisas similares das batalhas violentas na Praça Taksim, que tiveram seu estopim com os planos de urbanização da região europeia de Istambul, que inclui a derrubada de 600 árvores centenárias… sim, “tudo isso por causa de algumas árvores velhas {aliás, infelizmente a polícia turca retomou o controle da praça na madrugada do dia 23, no exato instante escrevo esse texto e não faço ideia ainda de quando irá ao ar}]) e uma possível (tão possível que até Eu considero possível, apesar do tom megalomaniacamente conspiracionista da afirmação) tomada dos protestos por grupos violentos de direita e agrupamentos, tão díspares quanto neonazistas e movimentos white power  (justamente os primeiros a falarem mal das manifestações em seus primórdios).

O fato concreto desee monte de acontecimentos é: não conseguiremos saber para onde vai isso tudo. É teoria demais, gente demais envolvida, de forma que desenhar um possível fim ou direção dessas manifestações é um exercício digno de cigano querendo alguns trocados, após ler as linhas das mãos de alguém. Uma análise do impacto e da ruptura gerada por toda essa fúria incontida e guardada só ganhará alguma acurácia daqui a uns cinco ou sete anos. Até porque, 2014 é ano de Copa do Mundo e é possível que esses levantes (Eu estou me coçando para classificar tudo como uma Rebelião) retornem com ainda mais força e violência. E talvez mudem o rumo das eleições presidenciais, que há um mês atrás, poucos tinham a coragem de ir contra o senso comum (bem fundamentado, por sinal) que a Dilma seria reeleita sem grandes problemas.

O que poucas pessoas parecem admitir – especialmente as politizadas que precisam cobrir todo esse complexo conjunto de manifestações em um único rótulo – é que 1,5 milhão de pessoas (Eu chuto 3 milhões) muito dificilmente possuem uma única bandeira, uma única vontade e cabe aos articulados tentaram inflamar o máximo possível de manifestantes com alguma verve, alguma causa única.

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No Brasil isso é um pouco mais difícil por motivos históricos: nossa Independência foi uma grande mentira, a Proclamação de República foi igualmente corrupta, e pelo menos 90% dos nossos heróis se tornam vilões completos na primeira análise superficial. Mesmo o movimento de Diretas Já e o Fora Collor não foi totalmente popular, tendo apoio de grandes veículos de mídia e até de governadores. O Povo, nesse contexto de análise, parece mera massa de manobra, coadjuvante de sua própria história.

Já a atual Onda de Manifestações é algo completamente nascido do povo, e por isso carece de toda e qualquer coordenação, e de grupos articulados para conseguir alguma coisa. Essa raiz amplamente popular mostra um alto grau de fragmentação das causas e um embaçamento de todo e qualquer foco ou objetivo das manifestações.

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Da Avenida Paulista, enquanto caçamos algum lugar para comer algo decente (Eu e a Carla acabaríamos por comer cachorros quentes numa estação de metrô), lemos no Twitter alguns relatos de focos de violência no Palácio dos Bandeirantes (onde Geraldo Alckmin esquenta cadeira), que contrastavam com tweets sobre policiais que sentaram ao lado dos manifestantes na região da Berrini (na Zona Oeste, uma área mais rica da cidade) e foram aplaudidos. Em Belo Horizonte, chegavam denúncias de helicópteros que jogaram bombas de gás sobre manifestantes e gente caindo de viadutos e quebrando ossos, o que gerou fraturas expostas.

As primeiras pessoas começam a ir embora, em meio a um clima de fim de festa. Os metrôs estão com um clima tranquilo, alegre – parece que torcidas de futebol amigas estão indo para casa discutindo pacificamente os resultados de partidas completamente ficcionais onde todos os times ganharam.

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Paira no ar uma tensão pré-Londres 2011 – outro protesto popular que até hoje não foi devidamente analisado – quando o assassinato de Mark Duggan (29 anos) por parte da polícia gerou uma manifestação pacífica, que desaguou numa série de tumultos assustadores, com saques e ataques incendiários gigantescos – que quase pode ser rasgada com uma faca bem afiada. Na capital inglesa de 2011, “a onda de distúrbios (…) ampliou-se na segunda-feira (8/08/2011) para novos bairros, e pela terceira noite consecutiva jovens encapuzados incendiaram carros e imóveis, atiraram rojões em policiais e saquearam o comércio, nos piores incidentes registrados em várias décadas na capital britânica [G1]”.

Parece que os londrinos só foram direto ao ponto e já protestaram em cima de uma morte, enquanto os protestos brasileiros esperam um mártir para realmente explodirem de forma sem precedentes (apesar das manifestações brasileiras já registrarem dois mortos: o estudante Marcos Delefrate (18 anos), atropelado pelas rodas da Land Rover dirigido pelo empresário Alexsandro Ishisato, em Ribeirão Preto; e a gari Cleonice Vieira de Moraes (54 anos), que morreu de parada cardíaca, após inalar gás lacrimogênio).

Da mesma forma que aqui, poucos encontraram motivos, objetivos ou fins nos protestos londrinos. O que ficou claro é que a exclusão social e o racismo policial esteve no centro de tudo (Mark era negro), mas até o rap foi apontado como um dos culpados pelo gagsterismo violento dos tumultos (especificamente numa matéria do jornalista Paul Routledge, do Daily Mirror). Foi uma explosão de indignação, e assim ela passou a história.

Em 2005 havia sido a vez de Paris sediar uma revolta vinda dos subúrbios. Na verdade, não foi uma revolta, já que a capital francesa já possui revoltas quase diárias, mas A Revolta. Mais uma vez, mortes com participação da polícia estiveram envolvidas no processo; mais uma vez a morte de negros – os adolescentes Bouna Traoré e Zyed Benna, que se eletrocutaram acidentalmente ao fugirem de uma blitz, nos subúrbios de Paris e serem perseguidos pela polícia.

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O Guardian descreveu as revoltas assim: “os distúrbios puseram abaixo a cortina que existe entre as cidades ricas e os subúrbios que abrigam em sua maioria imigrados do Magreb e da África Ocidental, que nunca puderam se integrar à sociedade francesa, e se transformaram em uma subclasse acostumada com a discriminação e falta de esperanças“. Em 19 noites de protestos, 8.970 carros foram incendiados, 2.888 jovens foram presos (3.100 em Londres), e os prejuízos estimados chegaram aos  US$ 200 milhões (200 milhões de libras esterlinas, no Reino Unido).

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As manifestações brasileiras possuem um corpo parecido com as europeias: explodiram por um estopim claro, mas continuaram por uma série de motivos difusos, geraram violência incendiária, se espalharam por várias cidades e distritos, foram reprimidas por uma grande força policial que não se sustentou por muito tempo, e gerou uma série de teorias conspiratórias admiráveis. As teorias aqui já falam até em Golpe Militar, ou Joaquim Barbosa sendo eleito presidente pelo Partido Militar Brasileiro (sim, a minha ficha ao saber da existência de um Partido Militar Brasileiro ainda não caiu também), e a paranoia resultante dessas reflexões são ainda mais negativamente contagiantes.

Alguns querem sair das ruas e deixar que os violentos se queimem sozinhos, enquanto outros acham que chegou o momento de se organizar e “retomar o rumo dos protestos”. Até o Movimento de Passe Livre está confuso: após o anúncio do recuo sobre o aumento das tarifas paulistas, eles anunciaram que não convocariam mais protestos… para logo depois voltarem atrás e convocarem novos protestos.

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O tão xingado e mal-usado Pós-Modernismo finalmente chegou ao Ativismo (na verdade já havia chegado, e o marco dessa união foram as Manifestações contra o encontro da OMC em Seattle, 1999, quando até magistas e feiticeiros se uniram numa série de ações que misturaram pedras, veículos destruídos, Guerrilha Psíquica e Caos. Não à toa, Hakim Bey, que harmonizou esse cabedal de métodos inusitados num coquetel teórico e prático, tão atraente quanto complexo [o chamado Anarquismo Ontológico], foi eleito o Filósofo do momento), e isso complicou a vida de toda uma categoria de profissionais pagos para comentar – Jornalistas inclusos – a Realidade sob alguma ótica. Os protestos brasileiros são metamorfos, e cada dia apresentam algum aspecto distinto, e por isso exigirão algum distanciamento temporal para serem devidamente analisados. Não é possível identificar líderes nas Manifestações, objetivos claros, metodologia. Só está claro o papel da Internet, seja em levantes no Brasil, seja no Irã.

Nas nossas terras, talvez, seja unicamente um grito de independência da população, tão acostumada a ser massacrada, e identificada unicamente com a dupla inseparável Futebol & Carnaval. Talvez seja uma mudança histórica que levará o povo a efetivamente protestar e cobrar de seus governantes o papel que eles devem exercer, e não apenas palavras vazias e promessas – vamos ver quanto do discurso da Dilma dado na sexta (21) será cumprido. O fato é que esse é o momento de ir à Rua.

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Chegamos em casa, a Carla e Eu. Nossas pernas mal obedecem nossos comandos (no dia seguinte, estimamos nossa caminhada em cerca de 10 Km), os braços mal conseguem se levantar, após serem erguidos incontáveis vezes em meio a gritos rasgantes, o cansaço se mistura com uma certa sensação de alegria. É o fim do Pacifismo nos protestos, é o fim das passeatas e o início das Revoltas. O dia seguinte (18) já testemunharia essa reviravolta, que com toda a sinceridade, ninguém sabe onde vai dar.

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