Essa é, talvez, a coletânea de gibis mais coletânea que já li. O motivo é bem simples: uns 90% dessas histórias não se sustentam sozinhas. Até os curtas dos superstars Alan Moore e Neil Gaiman se complicam: Moore escreve dois contos meio herméticos demais (embora de altíssimo nível de qualidade) e Gaiman continua no piloto automático e meio que reescreve um conto dele em Coisas Frágeis.

Mas tudo junto se sustenta como deve e torna essa HQ um negócio deveras bonito. Mas antes das histórias você deve ler a introdução de Rogério de Campos. O cara não é uma das melhores mentes do mercado de gibis brasileiros sem méritos. Em 10 páginas Rogério discorre sobre os situacionistas, psicogeografia, teoria da deriva, Sex Pistols, movimento punk e a porra toda. Sem ler esse texto você perde coisa de 25% de todo esse gibi, acredite em mim, vale a pena demais.

Antes de Rogério, é preciso dar os parabéns também para o Oscar Zarate, que fez a seleção das histórias. Se a ordem não é tão fundamental, o tom das histórias é para tornar a coletânea algo acima da média. Por colocar Londres em um mitologia fundamental na descrição do papel da cidade em categorias metafísicas mundiais, por destrinchar lendas e nos apresentar um universo longe de ser realista, mas um tanto crível.

São 176 páginas de um mergulho pela capital britânica que a distancia das nossas principais impressões mais modernas, de cidade financeira e cosmopolita, e apresenta algo sombrio que adormece e pode ser visto em cada esquina. Os formatos são variados: contos curtos de duas páginas, colagens e pequenas histórias em quadrinhos. O lance aqui não é apenas chocar, mas te fazer pensar na própria fundação das cidades, ainda mais uma tão icônica como Londres, aqui destrinchada quase como um organismo.

A psicogeografia — o estudo das emoções humanas a partir das interações com o ambiente urbano — é um tema importante aqui, por demonstrar uma cidade que respira e parece ter objetivos próprios. Os locais citados são de vital entendimento para sacar o que tá rolando ali, embora um leitor leigo (e estrangeiro) possa absorver de uma forma quase externa a linha que as histórias expressam, mas apenas pelos caminhos de Londres elas possam ser conhecidas a fundo.

Como disse, as histórias não serão as melhores que você já leu, mas juntas formam um quadro que merece ser revisitado a todo momento para uma compreensão completa. O ponto alto narrativo é a beleza O Ovo do Grifo, parceria de Iain Sinclair com Dave McKean, uma história sobre investigações, vigilância, paranoia e delírio, que pode muito bem ser o símbolo da Londres das trevas retratadas no livro.

Eu Continuo Voltando, que une Moore e Zarate, não encerra a edição por acaso: a história é quase um apêndice que debulha o misticismo londrino por completo, através da presença de uma de suas figuras mais importantes, Jack, o Estripador. Outro ponto altíssimo da HQ.

Através da sucessão de histórias será possível perceber o papel humano presente em todos os capítulos. Não são apenas as ruas da cidade que têm vida, mas seus habitantes também desempenham papel importante em suas histórias e futuros. Seus personagens descabeçados, depressivos e dramáticos existem como porções que se movimentam das cidades, como parte delas, como sopros de seu espírito.

Essa compreensão ampla do papel das cidades é o que torna A Vida Secreta de Londres algo tão único. Pela capacidade de descrever uma cidade tão interessante de forma tão prolongada e visceral. Se o leitor focar nesse ponto, entenderá o objetivo central da obra. Se a qualidade narrativa não alcança os píncaros do que os gibis podem nos oferecer, tenha certeza que os deuses subterrâneos estão muito felizes com esse tributo — comandado por um argentino, o que prova o poder de corromper que essa cidade possui.

A Vida Secreta de Londres

Páginas: 176

Autores: Oscar Zarate, Alan Moore, Neil Gaiman, Dave McKean, Stewart Home, Woodrow Phoenix, Tony Grisoni e Iain Sinclair.

Editora: Veneta

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