Fazendo questão de passar longe de Pasolini e até mesmo do próprio Boccaccio, os Irmãos Taviani apresentam um filme leve, performático e casto. Nesta estranha adaptação de Decamerão, revemos a história de dez jovens que fogem de Florença na busca de sobreviver o assolamento provocado pela Peste Negra no século XIV. Sete garotas e três rapazes isolam-se em uma casa no campo por 15 dias, enquanto “esperam a peste passar”. Durante seu refúgio elaboram uma espécie de jogo na qual cada deverá contar uma história a seus colegas. Assim, cada um torna-se o narrador de sua própria história, enquanto participam de uma sequência de dias bucólicos fazendo pães e nadando em lagos.

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O filme abre com a cena de um jovem rapaz, marcado pelos flagelos da peste. Este garoto, em momento de desespero, comete suicídio atirando-se do alto do Campanário de Giotto. A ideia aqui é apresentar Florença como a distopia histórica efeito de uma praga. Essa construção tem por objetivo ser tensionada horizontalmente com o ato seguinte, no qual os jovens contornam o horror com histórias de amor, comédia e renovação. O Maravilhoso Boccaccio é uma tentativa dos irmãos Taviani de purificar tanto a narrativa quanto as formas de representação de um enredo que por si só tem como premissa uma catástrofe. A película ambiciona filtrar a pestilência dos “maus do mundo” através de uma peneira bordada com a bandeira do amor. Os Taviani parecem argumentar que estes tais “maus do mundo” giram em torno do tabu do toque, nas suas mais variadas conotações, sendo esta a pedra angular que liga não só as histórias narradas pelos personagens, mas o próprio desenrolar da narrativa dos jovens isolados.

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Nesse sentido, em Maravilhoso Boccaccio a definição de amor é: aventurar-se no toque daquilo que é proibido. O que poderia funcionar como uma forte tese a ser trabalhada na película. Porém, o filme não resiste à sedução de também fazer grandes apostas na transmissão narrativa como cura. Aqui há ideia aristotélica de que transmissão através da repetição de uma história possa levar a purificação está presente – algo como “curar a peste via catarse”. É perceptível o investimento em ambas as teses: o amor como agenciamento do tabu do toque e a transmissão da história como catarse. Poder-se-ia até formular algum tipo de resolução, buscando no intuito dos irmãos a ideia de que o tabu do toque de alguma maneira também se articula com uma importante problematização da transmissão em outros níveis. Por exemplo, no caso da peste negra e na contaminação via toque, porém, acredito que afirmar essa conexão é fazer o trabalho pelos cineastas – isso não está no filme.

O que tem de ambicioso o objetivo de purificar os maus do mundo através do agenciamento do tabu do toque e da arte de contar histórias, também o tem de ingênuo. Isso fica muito claro em determinada cena quando os três rapazes e as três garotas que formavam três casais fazem um pacto ao chegarem ao refúgio no campo. Segundo o pacto durante o exílio os casais não poderiam transar, pois o fazendo iriam produzir inveja nas outras quatro garotas solteiras. Até este momento do filme já estava óbvio para qualquer espectador que história não desbancaria para o apelo erótico, ao ponto em que tal pacto produz certa obscenidade excessiva. Neste caso, o obsceno não está relacionado ao sexual ou até mesmo ao sensual, mas está no ímpeto garantir a compreensão do óbvio. A questão é que no fim das contas, pouco importa para a construção narrativa a revelação haver relações sexuais entre os três casais, pois se trata de um pacto que não leva a direcionamento algum. Ele apenas aponta para a tentativa forçada de manter tais personagens imaculados.

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Vemos que tal ímpeto está presente na encenação das histórias narradas. A primeira conta a história de uma vítima da peste que é dada como morta pelo marido que abandona seu corpo em uma cripta. A defunta é revivida por seu amante secreto que após beijar o cadáver, toca seus seios e ouve seu coração voltar a bater. A história seguinte diz sobre um parvo que é engando por seus colegas sobre a existência de uma pedra mágica que fazia de qualquer invisível quando tocada. O terceiro conto narra à história de uma jovem nobre que se apaixona pelo escultor do castelo. Ao descobrir o romance, o pai da garota decide por punir o aldeão por se atrever a tocar em uma nobre. Na sequência acompanhamos a história de uma noviça que é flagrada nua e com um homem em seu quarto pelas irmãs do convento. Por fim, assistimos a história de um falcoeiro que perde todos os seus pertences por amar uma mulher casada. Quando lhe surge à oportunidade de ter algum tipo de relação com a mesma mulher (agora viúva), ele precisa cozinhar seu companheiro falcão com as próprias mãos.

Se recortarmos os temas das histórias temos um copilado de contos sobre necrofilia, traição, erotismo, heresia e crueldade, porém o impacto estético (vertical) destes temas é completamente abafado pela proposta ingênua de releitura da obra boccacciana como um grande hino trovadoresco sobre o amor e a esperança. O filme tem bom ritmo e é agradável de assistir. Peca por ter boas intenções e não consegue cumprir as pequenas e constantes promessas que levanta ao longo de sua execução. Os irmãos Taviani buscam filtrar a peste bubônica com flores, mas se esquecem de deixar o malandro infectado roubar o beijo da donzela.

[quote_box_center]Maravilhoso Boccaccio (Maraviglioso Boccaccio)

Direção: Paolo Taviani, Vittorio Taviani.

Elenco: Lello Arena, Paola Cortellesi, Carolina Crescentini.

Gênero: Comédia

País: Itália / França (2015)

Distribuidora: Califórnia Filmes

Lançamento no Brasil: 05/05/2016 [/quote_box_center]

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