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Se a humanidade tivesse feito um plebiscito, Arthur Dent muito provavelmente seria eleito a pessoa menos adequada para carregar as esperanças da humanidade ao espaço.

Um dia, diante de um balde de caranguejo-joias, o Governo Imperial Galáctico decidiu que era necessário construir uma via expressa hiperespacial na região mais brega da Galáxia. Essa decisão passou por cima de vários canais oficiais, com a desculpa de que serviria para impedir engarrafamentos num futuro distante. Na verdade, a finalidade era dar emprego a alguns primos dos ministros que viviam de vagabundagem na Praça do Governo.

O Guia. 42. O slogan NÃO ENTRE EM PÂNICO. A toalha. Os peixes-babel. Quando se recorda destas e das muitas outras criações geniais de Douglas Adams parece pouco dizer que ele é um dos escritores pop mais importantes de todos os tempos. Dono de um humor único e uma imaginação aparentemente inesgotável, fez história com sua obra-prima O Guia do Mochileiro das Galáxias. A partir de uma versão em rádio e posteriormente em fitas cassete, uma trilogia de cinco livros, série na BBC, filme, peça de teatro, game, história em quadrinhos e até uma edição impressa em uma toalha, Adams gerou toda uma mitologia nerd obrigatória para fãs de humor inteligente e ficção científica, além de uma rica galeria de personagens incríveis. É impossível não sentir saudades de Arthur Dent, Tricia McMillan, Ford Prefect, Zaphod Beeblebrox e Marvin após muito tempo de leitura.

Assim, não foi de se estranhar o alvoroço dos fãs quando foi lançada em 2009 uma continuação para Praticamente Inofensiva, o último volume da Trilogia de Cinco. Oito anos após a morte de Adams e com a permissão de sua esposa, o escritor irlandês Eoin Colfer tomava as rédeas da série com E tem outra coisa… Famoso pelos seus livros infanto-juvenis sobre Artemis Fowl, ele prometia dar um novo destino para os personagens de O Guia do Mochileiro das Galáxias, continuar o legado da história. Não à toa, o novo livro foi encarado com desconfiança de antemão pelos fãs. O romance era apenas um caça-níquel, era o que a maioria afirmava, um jeito de faturar mais alguns milhões, manchando o final da obra. Afinal quem Colfer achava que era pra ousar tentar substituir Adams? Seria como se alguém escrevesse uma continuação de O Retorno do Rei ou um novo volume da série Fundação de Asimov. Tomado por esse e outros questionamentos resolvi ler E tem outra coisa… e tirar minhas próprias conclusões a respeito dele.

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Lembrar-se geralmente é um processo que envolve dois estágios no cérebro, implicando diálogo entre as partes inconsciente e subconsciente. O subconsciente inicia esse procedimento vomitando memórias relevantes, um ato que libera um jorro de endorfinas autocongratulatórias.

– Muito bem, cara – diz o consciente. – Esta lembrança é realmente útil nesse momento, e eu tinha me esquecido onde tinha guardado.

– Você e eu parceiro – diz o subconsciente, feliz por ver sua colaboração sendo reconhecida pelo menos uma vez. – Nós estamos juntos nessa.

Depois, o consciente revê a lembrança em sua mesa de trabalho e manda uma mensagem dizendo para o esfíncter se preparar para o pior.

– Por que me lembrou disso? – grita ele com o subconsciente. – Isso é medonho. É terrível. Não queria me lembrar. Por que zark você acha que eu a enfiei no fundo do cérebro?

– Essa é a última vez que eu te ajudo – choraminga o subconsciente enquanto se recolhe para as partes mais escuras de si mesmo, onde os pensamentos malignos se abrigam. –Não preciso dele – diz a si mesmo. – Posso fazer uma personalidade nova para mim com as coisas que ele descartou. – E assim, as sementes da esquizofrenia são plantadas junto com adubos de bullying, negligência, baixa autoestima e preconceito.

Contrariando a norma quase universal, é o flaybooz macho que alimenta o filho. Um flaybooz adulto pode carregar até 50 bebês na bolsa, mas geralmente só há espaço para duas, já que eles também gostam de ter à mão um pequeno kit de ferramentas para emergências, algumas cervejas e o último exemplar da revista trimestral Bolas de Pelos.

Para a minha surpresa e a de muitos que se arriscaram a dar uma chance a ele, E tem outra coisa… se revelou uma grande homenagem ao legado de Douglas Adams. Colfer é um grande fã do Guia e viu na figura de Adams um dos autores que mais o inspiraram a seguir a carreira de escritor. Como ele mesmo faz questão de definir no prefácio do seu livro: este nada mais que um mero apêndice à história original da Trilogia de Cinco livros, podendo ser considerado ou descartado ao bel-prazer dos leitores como um acréscimo à história de Arthur e seus amigos.

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O livro também se revela quase um trabalho mediúnico de Colfer nos seus mais inspirados e hilários momentos. Recriando o estilo de humor característico de Adams, quando você menos espera se descobre rindo com vontade e, por vezes, até esquecendo qualquer questão de autoria. Tudo isso graças à quantidade acavalante de referências aos livros anteriores e às piadas e críticas que remetem ou aperfeiçoam o que Adams já fazia. Aliás, as figuras de Arthur, Ford e companhia falam mais alto. É irresistível acompanhá-los novamente em mais uma aventura espacial, em sua última vez. Colfer compreendeu a essência de cada um deles e soube reproduzi-los com perfeição.

Ironicamente, Trillian estava em Hastromil para cobrir uma passeata que pretendia chamar a atenção para a situação dos DSTs quando foi atropelada por um carro alegórico representando um Saliva Turquesa feito unicamente (e ainda mais ironicamente) de peles dos Saliva Turquesa. A ironia atingiu o nível máximo quando ela recebeu uma transfusão de Saliva Turquesa enquanto usava uma camiseta com os dizeres ‘ Salve os Saliva Turquesa’.

Douglas Adams não se tornou tão conhecido apenas por ser muito engraçado, pela sua visão crítica e mordaz da sociedade. Colfer não fica para trás, sendo ainda mais direto, atacando sem dó ou piedade. Entre as suas várias críticas estão a falta de sentimentos por trás da morosidade do sistema burocrático, a hipocrisia dos movimentos em favor dos animais, a futilidade dos ricos, o efeito decadente de repetidas plásticas e, ainda mais fortemente, a sede de ilusão do homem pela religião e pela promessa de uma boa vida após a morte. E é justamente nesse ponto que se encontra o melhor do livro. Os líderes religiosos são mostrados como pessoas ignóbeis, capazes de acreditar nas próprias besteiras que inventam apenas para ganhar dinheiro, alimentando a fé dos fiéis pelo medo da punição e falsas visões. Pior que isso, os fiéis são pessoas dispostas a acreditar em tudo que lhe dê uma dose de conforto maior que a simples realidade lhe propicia e até a matar por esse direito. Séculos de guerras santas provam que esse tipo de sátira está muito longe de ser fora da realidade.

Desde pequenos, os peixes Costaços de Ameglia Maior ouvem histórias sobre um místico paraíso que existe no Outro Lado da Linha de Pesca. Portanto, eles passam a maior parte de seus dias perto de fiordes, procurando um anzol e esperando pela salvação. As imprecisões dessas histórias se tornariam óbvias para qualquer um no momento em que fosse arrancado violentamente de seu habitat natural para ser jogado numa frigideira fervente. Porém, a fé dos Costaços é tão grande que eles simplesmente pulam para fora da água recitando os Doze Salmos Sagrados Submarinos da Salvação e esperam pela prometida bola dourada de plâncton.

– Mas deuses não podem morrer. – disse Hillman. – Essa é a questão.

Cthulhu desejou que Hastur estivesse com ele. Hastur era sempre mais rápido nas respostas.

– Bom… isso é verdade. Mas, acredito que tecnicamente, e enfatizo o tecnicamente, não sou, de fato, um deus. Sou um dos Grandes Antigos. Um semideus, podemos dizer.

Hillman fechou a pasta.

– Ah. Entendo

– É quase a mesma coisa. – insistiu Cthulhu. – Eu faço tudo que vem no pacote: aparições para os verdadeiros crentes, engravido mulheres, o que você quiser. Tenho carteira de sócio para os salões de Asgard e do Olimpo. Membro vip.

Como se não bastasse nem mesmo os deuses são poupados na história. Figuras como Thor, Gaia, Hermes e até o temível Cthulhu são tratados como figuras que perderam seu espaço no universo, como ex-celebridades que entraram em depressão por perderem seus milhares de fãs.

Colfer também não desperdiça a chance que tem e deixa a história do Guia ainda mais atual. O Guia é como o Google do universo, indicando a cada busca milhares de resultados e páginas relacionadas. A rede subeta como um grande canal de vídeos, onde um viral pode erguer ou destruir uma carreira em questão de segundos.

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Os vogons não são exatamente maus. É fato que ninguém gosta deles e que suas habilidades interpessoais não vão muito além de tentar não cuspir na pessoa com quem estão falando, mas nem por isso são maus. Isto é, eles não explodem o planeta dos outros sem ter a papelada necessária. Com a papelada, aí sim, eles viajariam até o fim do Universo, e a tantos outros universos paralelos quantos fossem necessários, para fazer o serviço. E, para dizer a verdade, a maioria deles não se importa nem um pouco de cobrir de cuspe a pessoa com quem está falando.

Embora certos momentos de E tem outra coisa... beirem à genialidade de tão hilários ainda fica muito claro que Colfer, obviamente, não é Douglas Adams. Alguns trechos, principalmente os da abertura, simplesmente não funcionam enquanto piadas e em outros só se faz necessário um pouco de atenção para perceber que Colfer está se reutilizando de fórmulas de velhas piadas da Trilogia. Ele também se mostra tão temeroso em ofender os fãs da série que evita criar elementos novos, limitando-se a aprofundar o que já havia sido feito. Isso acaba por tirar aquele senso de ineditismo tão presente do Guia, a marca registrada de Adams de surpreender o leitor por completo, tirar todas as suas defesas. Nunca se sabia em que ponto a história iria parar, ao contrário deste livro, onde é possível até adivinhar o final. Estes problemas vão sendo atenuados ao longo das páginas, conforme Colfer vai pegando o jeito, mas não deixam de incomodar.

Era tudo loucura. E, nesse exato momento, ele provavelmente estava sendo observado por um grupo de estudantes de faculdade que, sem dúvida alguma, estariam de porre devido a qualquer comemoração espalhafatosa da noite anterior e não podiam se importar menos com os sentimentos da Cobaia Arthur Dent.

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Claro que é muito bom rever os personagens do Guia na visão de um autor que realmente curte e entende sobre ela. No entanto, provavelmente o maior defeito de E tem outra coisa… e de Eoin Colfer seja a sua falta de ambição artística. Com todo um universo (literalmente) a explorar, novas raças e personagens, aqui se enfocam basicamente os mesmos que já vimos. Que a capacidade de recriar o estilo de Adams é digna de todos os aplausos que recebeu, não tenho dúvidas. Contudo, a oportunidade de incutir sua própria visão poderia ser ainda mais louvável. Além disso, as melhores piadas, as de fato brilhantes, poderiam estar em outro livro, não apenas no Guia. Colfer poderia ter bolado uma história completamente nova e sua, mas preferiu se contentar em fazer o SEXTO volume de uma série de outro autor mais famoso. Num tempo em que escritores fazem vários volumes de seus livros mesmo sem ter idéias suficientes para preenchê-los, Colfer só tomou a decisão que hoje em dia é encarada como a mais correta: a de ganhar dinheiro.

e tem outra coisa...  Autor: Eoin Colfer

  Editora: Record

  Páginas: 366

  Nota: 7,5

 

 

 

 

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No Comments

  1. Joelma Alves

    23 de fevereiro de 2013 at 22:41

    Oi, Murilo! Lá vem você me fazer gastar $$, rs. Já tem um tempo que eu queria comprar esse livro, mas estava com medo de ser muito ruim…
    Já li um livro da Série Artemis Fowl e não gostei.
    E confesso que o último livro da trilogia de cinco me decepcionou bastante também… Aquele final deu vontade de chorar de tão ruim, rs.
    Mas darei uma chance, afinal tenho que completar minha coleção.

    =)

    Reply

  2. Miquéias

    1 de agosto de 2013 at 14:29

    Não entendo o que as pessoas esperavam do 5º livro. Um final feliz? Poxa, de longe eu achei o fim do 5º volume ruim. A unica vez em que o achei ruim foi na primeira vez que o li, em que o fiz de forma apressada e sem maior análise. Sim, eu o achei horrível, mas foi por que eu realmente não o entendi! Por isso re-li a série recentemente, o que me deu outra visão e entendimento do fim. Pefeito! Ao terminar me arrisquei ao ler o sexto volume, chegando a mesma conclusão da sua análise Murilo. Gostei muito do livro, apesar de não me impressionar como o quinto. Ele realmente não inova muito, e transformou Wowbagger de um típico alien franzino e cabeçudo em um em um ser verde bombado. Nada contra, só preferia a primeira versão, tornando a coisa toda mais irônica. Ainda assim bom livro, apesar de o final dar um ar de continuação. Se vier mais um livro, fico feliz; se não, o fim do sexto livro é sem graça na minha opinião, realmente pior que o quinto tão condenado.

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