Sei que não fui o único a ver em Clube da Luta o exemplo mais explosivo da ficção para o vindouro novo milênio, onde a verve destruidora estava acima de necessidades narrativas. Onde a ideia principal era produzir uma bomba-relógio para despertar uma geração adormecida de homens bem-sucedidos e conformistas de meia idade.

Infelizmente, estávamos enganados.

O filme continua muitíssimo bom, um dos que mais me influenciaram, mas desconfio que sem ele, o autor do livro que o baseou, Chuck Palahniuk, hoje seria pouco mais que uma nota de rodapé.

Escritor com um estilo próprio e influente, Chuck, no entanto, não conseguiu levar à frente o que conseguiu com Clube da Luta. Os motivos são um tanto claros: ele se repete em cima dos mesmos temas repuxados, faz as mesmas piadas sem parar, nos empurra situações absurdas querendo nos fazer acreditar que aquilo é uma crítica social inédita e original quando na verdade soa como uma redação de adolescente que leu seu primeiro livro de Filosofia e crítica e se sente o centro do universo, capaz de mudar o mundo.

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Acredite, dei muitas chances a esse cara, pois realmente sentia que ele representaria para mim como um recém-adulto o que Ken Follet representou quando adolescente: me apresentar um novo mundo empolgante e que importa. Ken foi o cara da minha adolescência de fato. Que me fez ler compulsivamente — 10 livros ao todo, um deles de 800 páginas. Me fez comprar uma lanterna para ler a noite quando todos dormiam (tenho dois irmãos e todos dormiam no mesmo quarto). Seus livros eram sobre as coisas que mais curtia: espionagem, guerras, conspirações. Poucas coisas que li na época se comparavam a O Buraco da Agulha, Os Pilares da Terra, Na Toca do Leão. Aventuras desenfreadas ao redor do mundo e heróis capazes de mudar o curso da história e voltarem ilesos para casa.

Palahniuk parecia um degrau acima e seus trabalhos representavam aventuras interiores, mudança social, a descoberta de quem éramos num planeta dominado pelo capital e a América irrefreável. Nesse contexto, Clube da Luta era o livro perfeito. Rápido, fálico, indigesto e sem concessões narrativas. Lembro de ter lido sentado em uma cadeira de escritório vagabunda num PDF a coisa de 40 centímetros de um monitor CRT. Parecia que o mundo dera uma boa acelerada ali, mesmo já tendo visto o filme uns dois anos antes.

Demorou até ler o próximo, Sobrevivente [compre aqui]. É uma versão de Clube da Luta sem multiplayer, um passo atrás no que o autor já havia conseguido em seu primeiro livro. O lance é que o principal problema do autor está exposto lá em todas as suas cores, uma ferida aberta e mal cheirosa. Ele pretende dar tapas na cara da sociedade ocidental antes mesmo de criar uma boa história e uma boa narrativa.

A ideia principal por trás da literatura de Palahniuk envolve o choque. É possível ver ele em plena atividade de encontrar as formas mais chocantes de finalizar um conto ou livro, sem fazer concessões e ainda cutucar toda a sociedade americana. Mas várias das soluções narrativas dele soam artificiais o bastante para não incomodar ninguém na maioria dos momentos. Não me entenda mal: sei que o irrealismo que se aproxima da fábula é capaz de promover o mesmo tipo de choque de qualquer livro realista e hiperdescritivo, mas por trás do tom fantástico é necessário carregar uma porção simbólica que nos conecte com um objeto real ou psíquico que busca-se representar. Se essa ligação é mal feita, temos apenas piração — mesmo que muitíssimo bem escrita. Isso não é capaz de transgredir nada pois não se conecta com nada.

Várias histórias de Chuck, por outro lado, ficam em um limbo descarregadas de simbolismo e exageradas demais para fazer qualquer conexão com o real. Os personagens também têm muita culpa. Temos os mesmos problemas de adaptação social, a mesma idade, a mesma inconformidade. Seria algo bom a repetição de temas se víssemos uma evolução entre eles, mas Chuck queimou a largada com Tyler Durden — tanto que fez uma sequência em quadrinhos para Clube da Luta, mas o resultado é apenas vergonhoso. Tyler é bom demais, o inconformado-mor, um degenerado que torna suas fraquezas um combustível de explosão social e nem mesmo existe sem seu alter-ego explosivo.

Os outros personagens parecem mancos frente a ele. Victor Mancini de No Sufoco, Tender Branson de Sobrevivente. Falta alguma coisa nesses caras, pois eles parecem apenas um pedaço que ganhou vida de Tyler. É como se todos os livros de Chuck fossem subtextos de Clube da Luta em sua composição. Ainda que tenham histórias próprias, muitas vezes interessantes e resolvidas na velocidade de um tiro, o que Chuck busca alcançar já foi alcançado e ele sofre para continuar jogando sua acidez sobre a forma como vivemos.

E está perdendo a batalha.

E o pior: basta reler Clube da Luta para perceber que ele nem é um livro tão bom assim. Ele era produto de uma época e continua sendo.

Quando pensei em Chuck Palahniuk como o autor que me seguiria em toda a vida adulta, ainda não tinha sacado que já havia encontrado outros dois muito mais talentosos e importantes que já ocupavam tal vaga sem Eu perceber. O principal deles é Alan Moore. Alan também investe em um estilo próprio para frequentemente repetir-se nos mesmos temas, geralmente tratados anti-autoridade, heroísmo, crítica cultural e magia. Mesmo seus trabalhos mais rabugentos (Liga Extraordinária: Século, por exemplo) guardam uma concepção única na construção de personagens heroicos, frágeis e quebradiços. O inconformismo (e o consequente cinismo) tem muito mais a ver com sua própria impotência perante a indústria cultural que ele tanto gosta de apontar o dedo. De fato, os livros de Chuck propositalmente não possuem vilões: eles são representados pela própria América, mas sua descrição é tão batida (fanáticos religiosos, chefes ardilosos) e sem substância que os personagens principais parecem apenas bobos ao buscarem combater o meio onde estão inseridos.

A ideia aqui não é fazer uma relação direta entre os dois autores (que descobri em épocas parecidas), o que seria burro e sem sentido, mas entender como a obra dos dois pode se relacionar entre si na busca por encontrar uma evolução, temática e narrativa.

Chuck é um bom escritor, capaz de criar momentos de tensão, mas usa a literatura como um instrumento secundário. Ele não quer narrar histórias, mas descrever coisas absurdas, bizarras e interessantes. Nesse sentido, talvez ele se desse melhor como um jornalista sensacionalista. Ou um contista. Seria muito mais divertido para ele desencavar histórias malucas (afinal, a realidade é muito mais estranha que a ficção, como ele mesmo disse em um de seus livros) e contá-las sem os freios da concisão.

Como escolheu ser escritor, muitos de seus livros parecem pilhas de descrições de conhecimento inútil, nada muito diferente de ler uma edição da Mental Floss corrosiva. Nesse ínterim, a história naufraga.

No livro mais recente que li dele, Assombro [Compre aqui], Chuck conseguiu parcialmente resolver o problema. Mas Assombro é uma exceção que confirma a regra. O livro na real é uma metanarrativa. Sua história principal é de um retiro de três meses para escritores iniciado em um anúncio de jornal. Dezoito aspirantes a escritor respondem ao chamado e dão de cara com uma casa úmida, assustadora e com comida rarefeita. Logo as condições dele se tornam mais extremas. Ao mesmo tempo, a narrativa é entrecortada pelas obras — contos e poemas — escritos por cada um dos presentes.

O fato dos contos serem muitíssimo melhores e mais importantes que a história principal diz muito sobre como Chuck estrutura seus livros. A história principal é até instigante e parte dela é revelada pelos contos dos autores, mas se torna um empecilho quando contínuas descrições sobre a possibilidade de todos os ali escreverem um filme (e ficarem ricos) sobre a história de como ficaram presos logo se tornam enfadonhas. Chatas mesmo. Um porre, ao ponto de você querer pular tudo. Quando Chuck tenta mudar o quadro ao inserir uma narrativa sobre a filha de uma dessas aspirantes cuja filha olha dentro de uma caixa misteriosa e se mutila toda (ou é mutilada por alguém), o caldo já desandou.

Isso demonstra que Chuck pode ser melhor contista ou se dá melhor com novelas que não exigem centenas de páginas que nada mais são que informações empilhadas e personagens farsescos e desinteressantes. É o tipo de obra em que a premissa é melhor que execução, em que lendo o resumo geralmente se tem acesso a obra completa. É um problema irremediável e que faz parte da forma como Chuck estrutura suas histórias e estabelece prioridades narrativas.

As histórias de Chuck Palahniuk têm conceitos e descrevem conceitos. Assim que encerrar Assombro você será capaz de descrever o conceito da história, mas não se importará com sua definição. A mais famosa delas é também a melhor: o conto Tripas, que descreve técnicas muitíssimo hardcore de masturbação.

Segundo reportagens, pessoas saíram passando mal na turnê de leituras públicas feitas pelo autor.

Os outros contos também possuem conceitos. Especialistas em massagem capazes de matar com técnicas de reflexologia (massagem nos pés), contos de terror sobre pessoas que caem em gêiseres (muito bom), pessoas desesperançadas que vivem para tentar aparecer em programas de TV matutinos (bem mais ou menos), adolescentes com aparência de velho que dão golpes em senhoras de meia idade (chato), portadores de doenças incuráveis confinados em centros da Marinha (chato), ricaços que se tornam pobres para com a superexposição das ruas se tornarem anônimos de novo (risível) e por aí vai.

Quase nunca importa o destino dos personagens, mas apenas qual artéria social o autor quer expor. Isso não é boa ficção, mas sim uma espécie de trabalho jornalístico. Lembra daquelas descrições sobre como fazer napalm caseiro ou como é possível dispensar fertilizantes em Clube da Luta? É aquilo lá, mas por montanhas e montanhas de histórias. Sobrevivente [compre aqui] tinha a mesma pagada, já que o personagem Tender era especialista em limpeza e dava dicas e dicas de como limpar as coisas com material alternativo.

Ajudaria se entre suas descrições Chuck fosse capaz de criar um bom personagem que seja, mas ele parece não se importar com tal coisa. Uma prova são os nomes estúpidos dos personagens de Assombro. Diretor Negação, Reverendo Ímpio, Miss Espirro e todas essas coisas que parecem divertidas nas primeiras três páginas, mas lá pela 150 já te irritam bem mais que deveriam. Para piorar, todo o ponto da narrativa fora dos contos diz respeito a uma crítica sem qualquer graça ou importância sobre a cultura das celebridades e sobre pessoas que pensam na dor como um trampolim social.

Aqui os personagens não desejam apenas ser ricos, mas possuem uma gana imbecil pela fama — nem que para isso precisem cortar partes do próprio corpo, chegar perto da morte por inanição ou comer carne humana. Estamos aqui em uma versão automutilatória de 120 Dias de Sodoma, onde os personagens infligem eles próprios o mal guardado dentro de si e tentam imputá-lo em um tipo de fantasma que pensam estar morto.

A narrativa não seria uma tragédia adolescente completa se o autor se preocupasse, um pouquinho só que seja, em estabelecer as raízes da própria degradação psíquica de cada personagem, e não apenas seu gosto por serem famosos.

Logo qualquer leitor mais esperto vai perceber que a estrutura de histórias dentro de histórias é apenas uma desculpa para evitar contínuos flashbacks e assim os personagens descrevem a si mesmos ao decidirem inconscientemente que a realidade é muito mais impactante que a ficção.

Sua linguagem é pobre ao ponto de nos fazer ler frases como “A pobreza é a nova riqueza”, “estar ausente é o novo estar presente” (ambas do conto Favelando), que servem como metáforas de que o arsenal linguístico de Palahniuk está um tanto esgotado.

Ou ele descobre uma nova piada que parece boa e vai repetindo ela sem freios, tipo assim:

Então, ali com seu microfone, o santo diz à sua carga no ambiente refrigerado:
 — Este é São Mel.
E seu pai, forçando a vista para enxergar pelas janelas escurecidas do ônibus.
 — O Santo Padroeiro da Vergonha e da Raiva — diz Sem-Pança
Depois daquele dia, a excursão passou a incluir “O Altar de São Mel e Santa Betty”:
Santa Betty, no caso, a Santa Padroeira da Humilhação Pública.
Estacionado diante do condomínio da irmã, São Sem-Pança aponta para um andar alto. Lá em cima, o altar de Santa Wendy
 — A Santa Padroeira do Aborto Terapêutico.

É meio aquela pegada do Câncer de Jack, mas lá ainda era o primeiro uso do negócio e era mais bem encaixado na trama.

Chuck Palahniuk e essa vontade constante de nos CHOCAR ou apenas CUTUCAR é o grande incômodo na literatura do cara. É mais ou menos o Hunter Thompson no auge do seu jornalismo gonzo que todos tentaram copiar sem entender que: a) só funcionou com ele, b) Hunter era muito melhor jornalista e escritor sóbrio ou aparentemente sóbrio. Não acredite em mim e leia Medo e Delírio em Las Vegas e depois Hell Angels. O primeiro é importante em um contexto histórico de metralhar o jornalismo que era feito na época, e o segundo é tudo isso e ainda um livraço jornalístico lindo de se ler e sem forçação de barra. Ou ainda compare A Grande Caçada aos Tubarões e Reino do Medo. O primeiro livro é uma coletânea de textos jornalísticos que cobriu o gonzo e outras fases do autor e é sensacional, mas a autobiografia do autor, já escrita no fim da vida dele e sob profunda desilusão, é talvez o melhor retrato da América da virada do século, algo histórico que nos dá de bandeja alguns dos melhores momentos do jornalismo americano dos últimos tempos.

É mais ou menos também como Lester Bangs, que produziu suas melhores críticas quando se despiu do próprio personagem obrigatoriamente amalucado e produziu alguns dos textos musicais mais sinceros de todos. Compare o histórico texto Vamos Louvar os Duendes da Morte (sobre a adoração do autor a Lou Reed, escrito em 75, no calor do momento) e compare com Astral Weeks, onde ele disseca passionalmente o álbum do Van Morrison. Diferente de Thompson, a diferença é um pouco mais sutil, mas o recado é o mesmo: nos textos malucos concluímos “Olha do que esse cara é capaz” e nos textos de fato jornalísticos o resultado é que o conteúdo é o que fica exacerbado e imaginamos que pensamos exatamente assim.

(E a comparação é meio injusta porque os dois autores aí são melhores jornalistas do que Chuck é escritor)

Obviamente esse texto não é para dizer ao final que escritores devem se esconder atrás do seu texto cheio de regras e esqueminhas já prontos ou outra cagação de regra qualquer. Embora isso seja impossível (o autor se esconder completamente), a mensagem é outra — e vou repetir pela quarta ou quinta vez para ficar bem claro: todas as suas sacadas espertas, toda a sua cutucada social e crítica ao modo de vida americano (o que é o alvo de 90% das obras de arte com algum teor de fato crítico atual, porque o modo de vida América é o modo de vida mundial em uma proporção ou outra) elas devem servir para produzir boa ficção.

Se o objetivo do livro é unicamente jogar ácido na cara do leitor — e, no caso de Palahniuk, quase sempre criar esquizofrênicos de tal nível que nós que lemos não conseguimos nos ver em nenhuma situação e rimos sossegados com a conclusão que o problema são os outros — é melhor ser sincero contigo mesmo e seja jornalista opinativo. Não que distribuir opiniões seja o melhor jornalismo possível, mas faça isso com alguma honestidade.

Os bons contos do livro são exatamente os que se despem dessas obrigações autoimpostas pelo autor e realmente contam uma história e essa instabilidade do livro é exatamente a confirmação do que Chuck Palahniuk é: um sujeito que sabe escrever bem, mas parece preso dentro de necessidades inventadas pelo próprio e que destroem boa parte das possibilidades da ficção dele ser boa e… transgressiva.

Pegue o conto Ritual, do mesmo livro Assombros. O conto é bom porque esconde a tal transgressão dentro de uma boa história e apenas ao final nos revela. Para quem não for ler completo no link, a história é sobre nazistas obrigando prisioneiros de guerra a lhes darem boquetes. É pesado demais e engraçado ao mesmo tempo e tal síntese é exatamente o que Chuck quer ser a todo momento, mas estraga por colocar o choque e os conceitos logo de cara e preencher o restante com piadas repetitivas e frases de efeito ri.

*****

Se ele vai se tornar um escritor brilhante daqui pra frente, não vou saber, pois não pretendo ler outros livros do autor (talvez o Monstros Invisíveis, que sempre quis ler mas está sempre esgotado) e consegui identificar muito pouca evolução em sua literatura. Mas duvido que ele mude após 15 livros e um gibi (gibi bem ruim, por sinal).

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