“Eu observara muito bem que, se jejuasse durante um período bastante longo, era como se os miolos me escorressem suavemente do cérebro, esvaziando-o. A cabeça tornava-se leve, como que ausente; já não lhe sentia o peso sobre os ombros; e, se olhava para alguém, tinha a sensação de que meus olhos estavam fixos, arregalados.”

Knut Hamsun é um escritor norueguês controverso e muito pouco conhecido nos dias de hoje. Na juventude tinha uma escrita oscilando do humanismo profundo a uma violência de desprezo pela espécie humana. Sendo conhecido pelos europeus como o “Dostóievski escandinavo” chegou a ganhar um prêmio Nobel em 1920 com o livro “Frutos da terra”. Conhecido por sua personalidade arisca não fez qualquer discurso no dia da premiação e intentou entregar o cheque ganho e a medalha a um empregado do hotel em que ficou hospedado, mas apenas o esqueceu por lá e lhe foi devolvido posteriormente.

Com o passar dos anos e a idade batendo à sua porta, se tornou cada vez mais recluso e ranzinza, nutriu um ódio em particular pela sociedade ocidental moderna, sendo alimentado por teorias distorcidas e no mínimo estranhas sobre o “super-homem nietzscheano”. Odiando a opinião geral da imprensa Norueguesa por algum motivo a mais que me foge o conhecimento passou a apoiar os alemães durante a Primeira Grande Guerra, ajudando até mesmo na invasão deste país à Noruega. Ao se iniciar a Segunda Guerra Mundial Hamsun apoiou a Alemanha Nazista, chegando a entregar à Goebbels sua medalha do Nobel e a ter encontros com Hitler.

Essa relação de Hamsun com o nazismo levou a uma confusão sobre os sentidos de suas obras. Seria ele sempre um anti-semita enrustido? Acreditava que a lei do mundo era a vitória dos fortes sobre os fracos? Superioridade da raça? Isso o levou a um estado de silenciamento após termino do confronto com vitória dos aliados contra o eixo, com suas obras sendo resgatadas apenas muitos anos depois de sua morte, quando o ranço da Segunda Guerra foi parcialmente superado.

“Que doença era a minha? Teria sido eu apontado pelo indicador da mão de Deus? Mas por que precisamente eu? Por que não, por exemplo, um homem que estivesse na América do Sul? Quanto mais refletia nisso, mais me parecia inconcebível que a Graça Divina me tivesse escolhido justamente como cobaia, para realizar seus caprichos. Que modo estranho de agir: saltar por cima do mundo inteiro para me atingir a mim, quando Ela tinha debaixo da mão tanto um livreiro-antiquário, Pacha, como um comissário marítimo, Hennechen.”

Fome foi o sexto livro da carreira de Hamsun, publicado no ano de 1880. O personagem é um misto de experiências do autor com ficção, naquele gênero de literatura que nos anos 1960 ficou conhecido como “transgressor”, pois a arte era uma experiência de vida e não algo separado dela, através dos livros de John Fante, Kerouac, Bukowski e Burroughs. Porém, a obra de Hamsun por sua temporalidade nos trás um personagem bem diferente dos destes autores.

Em vez de um personagem fugindo do ‘mundo moderno’ (racional-científico) do século XIX, o personagem de Hamsun é um típico exemplo de homem moderno. Com alma “elevada” ele é filósofo e escritor, é senhor das letras e por isso um homem sensível e intelectual, porém o mundo em sua volta é justamente o oposto, é bruto e insensível, o joga na sarjeta e o desola. No entanto Hamsun não quer uma alternativa pra esse mundo, não quer outra realidade, sua luta é pra ser inserido, ser aceito por esse sistema social que o rejeita, uma luta que na maior parte parece vã, então ele pragueja contra a humanidade um ódio virulento e doloroso.

A luta sustentada em Fome é justamente pela manutenção da sanidade que a ausência de alimentação vai destruindo. A grande preocupação do personagem de Hamsun é que a loucura gerada pela fome tire seu maior trunfo: a inteligência. Por isso a todo momento escreve artigos de filosofia que tenta vender para descolar algum dinheiro e provar a si mesmo que ainda está com a cabeça funcionando bem.

“A fome começava a ficar terrível. Extenuado, vinham-me náuseas; e enquanto caminhava, ia vomitando de vez em quando, disfarçadamente. Desci até o Restaurante Popular, li o cardápio e sacudi com desdém os ombros, como se carne de porco e presunto defumado não fossem comida para mim. De lá, desci para a Praça da Estrada de Ferro.
Um torpor estranho invadiu-me de súbito. Não quis prestar-lhe atenção, mas a coisa ia de mal a pior, e fui obrigado a sentar-me num patamar. Operava-se uma transformação total em minha alma; era como se no fundo do ser se houvesse aberto uma cortina, ou um tecido se houvesse rasgado no cérebro.”

Orgulhoso de sua própria inteligência, o personagem de Fome se depara em vários momentos com o fracasso. Isso o leva a uma angustia profunda. Não tem amigos, não tem mulher, não tem emprego e nem o que comer. Com a moral de um aristocrata assolando seu espírito aquela situação vergonhosa se torna uma calamidade que cada vez mais vai em direção a um poço sem saída, e cada vez que ele vê uma luz, sua insensatez moralista o faz ser derrotado.

Sua consciência se divide em duas, o “ego superior” que zomba do “ego inferior”, é uma luta do intelecto que planeja contra o fracasso já ocorrido, com frases de auto-ironia e escárnio impetuoso que se tornam marcantes para o leitor. A narrativa do livro é completamente uma enxurrada de diálogos internos numa luta contra a irracionalidade e contra a vergonha e pobreza.

Não demora muito pra ficar claro o quanto Hamsun era conservador, e isso nem sequer chega a atrapalhar o grandioso valor humanista da obra. Hamsun descreve de maneira surpreendente os estados sombrios que sua mente vai atingindo a cada dia que passa sem comer (chegando a mascar galhos de árvores pra passar a ânsia que a fome provoca), ficando lentamente com as idéias mais confusas ao ponto de ter alucinações poderosas, a poucos passos de uma loucura sem retorno.

“Abri os olhos. Para que fechá-los, se não podia dormir? As mesmas trevas reinavam em torno, a mesma insondável e negra eternidade, contra a qual o espírito se revoltava, incapaz de assimilá-la. A que poderia compará-la? Fiz os mais desesperados esforços para achar uma palavra bastante negra a meu gosto, que designasse aquela escuridão; palavra tão pavorosamente negra que me enegrecesse a boca, ao ser pronunciada. Santo Deus! Que escuridão! Eis-me de novo a pensar no porto, em navios, em monstros negros à espera. Iam aspirar-me, engolir-me, reter-me como prisioneiro, e navegar, levando-me através de mares e terras, através de reinos sombrios, jamais vistos por alguém. Estou a bordo; sou atirado à água; pairo entre nuvens; vou descendo, descendo…. Solto um grito rouco, de angústia, e agarro-me à cama. Fizera uma perigosa viagem, degringolando pelos ares como um pacote. Que sentimento de salvação, ao apalpar o catre duro! ‘É assim que a gente morre – pensei comigo – e tu vais morrer.’ Fico um instante a refletir: vou morrer. Sento-me na cama e pergunto severamente: ‘Quem disse que vou morrer? Fui eu que achei a palavra, tenho pleno direito de decidir o que deve significar.’ Sentir que delirava; senti-o antes que acabasse de falar. Era um delírio feito de fraqueza e de esgotamento, porém não perdera a consciência. De repente, uma idéia varou-me o cérebro, a idéia de que enlouquecera. Tomado de pavor, saltei da cama, fui cambaleando até à porta, e tentei abri-la; arremessei-me duas ou três vezes contra ela, para arrombá-la; mordi os dedos, chorei, praguejei…”

Em um trecho fantástico Hamsun descreve que quando conseguiu dinheiro vendendo um artigo para um jornal local, ao comprar alimento e comer, vomitou tudo poucos minutos depois. Estava a tanto tempo sem comer que seu estômago rejeitava alimentos sólidos!

Fome é um livro fantástico que narra a vida de um atormentado intelectual faminto vagando pelas ruas de Cristiânia (atual Oslo, Noruega), tendo que lidar além da sua situação de lamentável pobreza, com a ostentação de seu orgulho aristocrata. Situação que foi vivida de verdade por Knut Hamsun.

Confesso que depois de ler em descrições detalhadas a que estado terrível chega o homem em estado de fome neste livro, passei a nunca mais me questionar sobre as pessoas que pedem esmolas nas ruas. Prefiro imaginar que mesmo que estejam me enganando essas pessoas tem o que comer do que imaginá-las passando algo próximo do que o personagem de Hamsun passou. Não era o objetivo da obra de Hamsun fazer qualquer denuncia social sobre a pobreza ou fome, mas o livro serve perfeitamente para entendermos essas pessoas que são marginalizados por sua condição financeira, incapazes de obter o mínimo suficiente para sobreviver ou manter um lapso de dignidade.

 

Autor: Knut Hamsun

Páginas: 199

Nota: 8,5

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