Neste texto desejo discutir profundamente algumas questões envolvidas num dos movimentos literários mais influentes do século XX. Sua história, influências, os passos dados em direção ao diferente e principalmente uma análise mais detalhada daquele que na mentalidade genérica se tornou o grande representante de uma geração, no caso, Jack Kerouac e suas múltiplas facetas.

A geração Beat cresceu entre a Primeira Guerra Mundial e a depressão de 29. Sua “maturidade” artística aconteceu entre a Segunda Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria, sendo conhecido como parte da geração baby boom. Por isso aponto pelo menos três motivos que de modo óbvio influenciaram o surgimento dos Beats: 1) As duas guerras mundiais e seus contra-efeitos na sociedade ocidental; 2) A popularização da psicanálise, que possibilitou a luta pela desrepressão psíquica (luta perfeitamente representada em “Estranho no ninho”, livro de Ken Kesey); e 3) O clima de repressão que pairava nos Estados Unidos durante o período pós-guerra.

O mundo ia muito bem, pelo menos era o que as pessoas em geral acreditavam no começo do século XX, nunca havia tido tanto progresso em tão poucos anos! Até que a Primeira Guerra Mundial explodiu como um contrafeitiço da sociedade industrial. Foi quando o progresso mostrou pela primeira vez de forma descarada e irrefutável a selvajaria que a simples continuação de um sistema econômico baseado na escassez e busca de domínio do mercado consumidor poderia causar. Uma guerra que ocorreu exatamente pelo imperativo da necessidade de expansão de pessoas prontas para consumir, já que o avanço tecnológico fazia com que a produção crescesse cada vez mais rápido e o consumo normal não era demanda o suficiente para manter o mercado aquecido.

Ao termino da Primeira Guerra Mundial as certezas provenientes do pensamento iluminista começam a ser abaladas, porém ainda resistem como uma fortaleza no coração do ocidente a todos os ataques em sua direção. Principalmente porque a crença no irrefreável progresso através da história consolava a realidade de terra arrasada das regiões devastadas pelas batalhas e dava esperança frente a uma economia deixada em frangalhos pela grande guerra.

Entretanto, a Segunda Guerra Mundial se mostrou bem menos benevolente com a filosofia das luzes. Era evidente que a capacidade de destruição em massa era fruto do progresso tecnológico, o que renovou um sentimento romântico de desprezo ao conhecimento técnico-científico, e o desejo da volta a uma filosofia natural e comunal. Pela primeira vez em sua história o homem poderia acabar com toda a vida no planeta com apenas um gesto, apenas o apertar de um botão! E tudo isso era fruto do progresso racional e não dos obscurantismos religiosos.

As explosões das bombas atômicas no Japão não fragmentaram apenas os corpos que se mantinham vivos naquela terra. Junto com a detonação da bomba, todas as certezas seculares ficaram suspensas no vácuo da imoralidade humana. A humanidade perdeu a fé em si mesma, já não havia mais benevolência que justificasse as atrocidades que aconteceram. As bombas atômicas eram um “beneficio” para a sociedade americana, já que encurtava a guerra, fazendo com que seu exército voltasse mais rapidamente para casa. Com a eficiência de uma indústria de automóvel centenas de milhares foram mortos instantaneamente.

Os horrores nazistas eram auto-justificados em parte pela atividade científica; a criação da bomba H era justificada como tecnologia de ponta necessária para a defesa dos países aliados; e o consumismo exacerbado era incentivado como necessário para recuperação da economia mundial. Por causa desse último ponto que ao termino da Primeira Guerra Mundial, Grande Depressão e Segunda Guerra os cidadãos americanos se orgulhavam tanto de consumir. Era considerado um ato patriótico, consumir irrefreavelmente era uma ação que contribuía para a soberania do país. Aqueles que não consumiam, que cultivavam outros valores eram anti-patriotas, vagabundos dispensáveis e por isso sobrepujados socialmente.

Esse era o caso dos hipsters (não me refiro aqui a nada que se compare aos hipsters contemporâneos, e sim a grupos de jovens boêmios deslocados socialmente pós-Segunda Guerra, que eram chamados nos jornais por tal nomenclatura). Com a suspensão dos valores seculares, as guerras mundiais e seus contra-efeitos instauraram um vazio existencial que foi superado pela maioria da população norte-americana através do consumo exacerbado de bens. No entanto, em termos de questionamento radical da sociedade, uma resposta surgiu na Europa com o existencialismo e teve sua contrapartida americana nos hipsters, cujo um grupo seleto se tornariam posteriormente os Beats. Ambas as visões de mundo, existencialistas e Beats, são muito diferentes, isto é certo, contudo são frutos de um mesmo mal, a devastação causada pelas guerras e do vazio de sentidos latentes nas culturas das sociedades do mundo inteiro.

Os Beats também eram chamados de Beatniks, termo forjado pelo colunista Herb Caen no San Francisco Chronicle em maio de 1958, nas palavras de Peter Tamony num registro para o Western Folklore:

Sputnik explodiu em outubro de 1957. A palavra eslava -nik foi aparecendo nas histórias em quadrinho de Al Capp durante os anos: nogudnik, McNooknik, Liddle Noodnik. Em 04 de maio de 1958, Caen Observou: ‘O romancista Jack ‘On the Road’ Kerouac, a voz dos Beatniks…’”.

A psicanálise havia se popularizado muito desde sua primeira exposição por Freud, e era usada como instrumento teórico por intelectuais de esquerda para questionar a sociedade industrial, pois como apontado em O mal-estar na civilização por Freud, o homem nunca será plenamente feliz, já que a civilização reprime veemente seus desejos a ponto de se tornar ela mesmo paranoica e a civilização ser quase sinônimo de repressão. A falha da psicanálise para teóricos como Marcuse e Norman O. Brown, seria a tentativa de adequar o sujeito a essa sociedade que já é “doente”. Por isso os anos 50 viu uma radicalização teórica que partia de Freud, mas que ia muito além.

Os Beats desejavam deixar a vida fluir em seu próprio fluxo, por isso desobstruir os mecanismos mentais repressivos era uma questão mais central em suas discussões do que uma revolução política em termos tradicionais. Era a busca de uma revolução do sujeito, a quebra de todas as amarras psíquicas era mais urgente e deveria preceder qualquer outra mudança. Durante esse período dos Beats começava a se formar a nova-esquerda, cujos principais representantes eram Herbert Marcuse, Wilhelm Reich e Norman O. Brown. Disso brotava a discussão de desnaturalização do sujeito de seu ambiente social, através de buscas alternativas de  modo de viver, modos que fossem menos ou de nenhuma forma repressivos.

Por isso a paixão dos Beats presente em seus tantos livros pela filosofia oriental, vida errante, natureza e indígenas americanos. Eram estrangeiros em sua própria cultura, isso acontecia porque eram viajantes errantes, então observavam várias culturas diferentes, sendo capazes por tanto de julgarem as diferenças e tirarem suas próprias conclusões dos pontos positivos e negativos de cada uma.

Isso favoreceu a criação de uma linguagem informal, libertária e até mesmo erótica. Era a linguagem que passava por um modo de vida que contrariava o conformismo consumista americano, e as pessoas que a usavam tinham seus próprios gestos, modo de vestir e formas de se relacionar afetivamente uns com os outros. A linguagem literária se transforma num discurso informalizado que rompendo com as regras gramaticais e seguindo o fluxo de pensamento do escritor, como feito em Uivo de Ginsberg e nas diversas obras de Jack Kerouac, dava uma liberdade total tanto na prosa quanto no verso.

Sendo essa linguagem a chamada prosódia bop espontânea, segundo Gisele Pacola, no caso de Kerouac “não recorreu a modelos literários, mas aos musicais como o jazz de Thelonious Monk, Dizzy Gillespie e, principalmente, Charlie Parker. O encontro de Kerouac com o bop foi o momento decisivo para o autor criar a fusão da palavra com a música. Kerouac explicava seu método de composição com base na respiração e no improviso musical do bebop: Jazz e bop, no sentido de um saxofonista tomando fôlego e soprando uma frase em seu sax, até ficar sem ar novamente e, quando isso acontece, sua frase, sua declaração foi feita…. É assim que separo minhas frases, como separações respirantes da mente” [1]. Essa representação de prosa instantânea de Kerouc cabe muito bem a todo o grupo de Beats, se não em termo práticos ao menos em sentido conceitual.

A década de 1950 foi tumultuada e extremamente repressiva nos EUA. “Mudança” na mentalidade ocidental havia se tornado sinônimo de desordem, de problemas e de desastre, isso porque já havia se passado por tantos conflitos violentos em um espaço de tempo tão curto durante as guerras que o reacionarismo se tornou ordem do dia entre a população e os governantes, quanto mais familiar as coisas parecessem melhor. Para além do discurso da tecnocracia, houve uma verdadeira caça aberta aos comunistas com a política do marcathismo, este que

“foi um movimento iniciado nos Estados Unidos em 1951 pelo senador Joseph McCarthy, esse movimento tinha como finalidade perseguir as pessoas que eram a favor do comunismo, e também as pessoas que realizavam atividades antinorte-americanas. Esse intenso movimento deu-se por causa da política norte-americana, e a disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética na Guerra Fria pela hegemonia do planeta após a Segunda Guerra Mundial.” [2]

A verdade é que todos os inconformados, de comunistas a simples vagabundos, eram taxados de anti-americanos, sofrendo severa censura e repressão, tudo era simplificado numa acusão de ser comunista.

O conformismo consumista da população americana foi ainda contemplado com um conformismo político. A esquerda americana foi enfraquecida pela notícia das atrocidades stalinistas na URSS e o marcathismo ignorando isso já caçava e reprimia toda a esquerda, que acabou se refugiando em outros países ou se mantendo calada para não sofrer sanções físicas. No meio de tudo isso estava os Beats, desafinando o coro dos contentes ao se negarem a fazer parte dessa sociedade. Vivendo nela de sua própria maneira, se aproveitando de suas brechas e principalmente: vivendo em busca da liberdade mais plena! Claro que isso não aconteceria sem que houvesse alguns conflitos.

O primeiro livro de impacto lançado pela geração Beat foi Howl (Uivo) de Ginsberg (Junkie de Burroughs foi lançado em 1953, no entanto a princípio foi uma obra de pouca circulação, se tornando mais popular depois que os Beats estouraram), publicado em 1956 pela City Lights Books, a livraria de Lawrence Ferlinghetti, que publicava livros polêmicos e foi importantíssima para a consolidação e divulgação da poesia Beat. O livro de Ginsberg foi censurado por conter uma linguagem “suja” e “erótica”. Após um caloroso julgamento vencido pela livraria, o livro pôde circular livremente, abrindo a prerrogativa de liberdade de expressão muito importante na América do Norte, foi uma vitória travada e vencida dentro do próprio sistema.

O sistema social da época moldava as pessoas e as impediam de manifestações espontâneas do espírito, principal característica do misticismo que os beats vão tentar resgatar. Uma das principais características da Geração Beat é a percepção de que toda cultura em si é uma construção e por tanto pode ter seu fluxo revertido. Pelos motivos históricos que já vimos, acreditavam que nada é Sagrado, embora tenham chegado a essa percepção por uma via estranha, já que perceberam pelo seu contato com a cultura oriental que tudo é Sagrado, se tudo é Sagrado não há porquê algo em específico ser mais Sagrado. Por isso os anos 60-70 viu uma discussão fervorosa sobre a linguagem, que nas palavras de Alan Wattz, grande budista da época:

“é o grande problema da civilização ocidental, de todas as civilizações. Civilização é um sistema muito complexo no qual usamos símbolos – palavras, números, imagens e conceitos – para representar o mundo real da natureza. Usamos o dinheiro para representar a riqueza. Usamos jardas e polegadas para representar o espaço. Essas são medidas muito úteis. Porém, sempre se pode ter uma coisa boa em demasia. Você pode facilmente confundir a medida com aquilo que está medindo, tal como confundir o dinheiro com a riqueza. É como confundir o menu com o jantar. Você pode ficar encantado com os símbolos que os confunde inteiramente com a realidade. Essa é a doença da qual quase toda as pessoas civilizadas estão sofrendo. Estamos, portanto, na posição de comer o menu em vez do jantar, de viver em um mundo de palavras e símbolos.”

Nas palavras de Kerouac em On The Road:

“Estão preocupados, contando os quilômetros, pensando em onde irão dormir esta noite, quanto dinheiro vão gastar em gasolina, se o tempo estará bom, de que maneira chegarão onde pretendem – e quando terminarem de pensar já terão chegado onde queriam, percebe? Mas parece que eles têm que se preocupar e trair suas horas, cada minuto cada segundo, entregando-se a tarefas aparentemente urgentes, todas falsas; ou então a desejos caprichosos puramente angustiados e angustiantes, suas almas realmente não terão paz a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada, e tendo encontrado uma, assumem expressões faciais adequadas, graves e circunspectas, e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de pura infelicidade, e durante todo esse tempo a vida passa voando por eles e eles sabem disso, e isso também os preocupa num círculo vicioso que não tem fim. “

Geralmente os Beats são referidos como um grupo de literatos, entretanto isso não é estritamente verdade, muito mais do que literatos eles podem ser considerados um grupo de amigos dos mais diversos tipos sociais, gostos intelectuais e áreas da arte. Só pra exemplificar: Kerouac era um franco-canadense educado numa escola jesuíta; Ginsberg era filho de ativistas socialistas e tinha na mãe uma pessoa que foi várias vezes internada, desde cedo estando próximo daquilo que ele combateria posteriormente, a loucura considerada apenas como doença e o manicômio como repressão do desajustado socialmente; Burroughs era de uma família rica, neto do inventor da calculadora, embora tivesse pouca parte na herança recebia uma renda fixa e foi o mais experimental na vida e na literatura com o uso de diversas drogas para aumento da percepção; e Neal Cassady que se eternizou como Dean Moriarty em On The Road era um vagabundo autêntico, filho de outro vagabundo viajante acabou sendo morador de rua na infância e um deliquente juvenil que chegou a ser preso, típico retratado por James Dean no filme Rebel Without Cause.

Uma fonte que mostra em cores vivas como esses loucos iluminados urbanos operavam é o livro Subterrâneos de Jack Kerouc, que se descortina a cada frase desferida como um quadro sendo pintado diante dos nossos olhos. Durante essa alucinada prosa poética nos é mostrado noites regadas a álcool, drogas, literatura, jazz, sexo e disputas por conquistas de mulheres.

“Julien Alexander é o anjo dos subterrâneos, o nome subterrâneos é idéia de Adam Moorad que é poeta e amigo meu e disse ‘Eles estão por dentro das coisas mas não são esnobes, são inteligentes mas não são cafonas, são intelectuais paca e sabem tudo sobre Ezra Pound mas não são pretensiosos e não vivem falando nisso, são muito discretos, são bem do gênero Jesus Cristo’.” (Os Subterrâneos).

O núcleo narrativo de “Os Subterrâneos” é o relacionamento de Leo Percepied com a negra Mardou dentro do circulo social de hipsters em São Francisco. O narrador, porém, através de uma memória extremamente poderosa e lúcida não consegue se manter apenas nesse centro narrativo, a cada parágrafo ele se desvia para outras direções, chegando a fazer uma espécie de pedido de desculpa ao leitor, difícil fazer uma confissão de verdade e dizer o que aconteceu quando se é tão egomaníaco que se enche longo parágrafos com detalhes insignificantes sobre si próprio […]”(Os Subterrâneos).

O livro é uma verdadeira confissão sobre o amor, sobre a vida, sobre si mesmo e sua geração. Aliás, uma das características que se relacionam com a geração Beat enquanto movimento é a total entrega do autor em relação a sua vida na obra, há uma tentativa de não dividir a arte da vida pessoal. “Ah a dor de contar esses segredos que é tão importante contar, senão para que escrever ou viver” (Os Subterrâneos). Toda obra Beat é um documento desesperado e sincero sobre vários temas.

“Thoreaus urbanos”, escreveu Kerouac, “se interessavam em Whitman do ponto de vista da revolução sexual e Thoreau do ponto de vista contemplativo místico e anti-materialista” (Os Subterrâneos). Grupos animados de pessoas enrolando baseados no chão e colocando cervejas no gelo dentro de um apartamento em São Francisco, que vez ou outra faziam orgias, sempre discutindo literatura e filosofia: Dostoievski, Shakespeare, Whitman, Blake, Thoreau, Baudelaire, Ezra Pound, Rimbaud e Verlaine, tramando o fim da cultura ocidental na construção de um poema, escrevendo um parágrafo sobre a fusão do oriente com o ocidente, tentando o retorno à vida sem amarras psíquicas tão freqüentes de seus tempos, etc. Eram os Beats, os santos vagabundos viajantes heróis da América!

Eram observadores contemplativos da vida, como nos deixam atestado seus escritos. Sentavam e meditavam por dias sem dormir sustentados por maconha e benzendrina, e ficavam observando a mística natureza e a imprevisibilidade da mente humana e discutindo a sensação de vazio que percorria as suas cabeças e satisfazendo seus corpos e aprendendo a insignificância do homem diante do universo e desprezando todos aqueles homens sérios que defendiam a moral e bons costumes, meros fantasmas sociais, trabalhadores em constante luta para sobreviverem em regras artificiais que viviam sem saber onde iam parar, seguindo sempre em frente em uma estrada qualquer já que toda estrada sempre leva a algum lugar. Loucos e tão iluminados Beats.

O uso de alucinógenos como a mescalina mexicana era mais do que um simples escapismo da juventude daquela época. No caso dos Beats era um poderoso catalisador da meditação, uma forma de sentir Deus de uma maneira pulsante e visual, e não apenas como um contato frio através de uma oração ou de leitura. Além de influenciar na escrita, a deixando fora de qualquer “forma”.

O uso de alucinógenos ou quaisquer outras substâncias que alteravam a consciência por parte dos beats era parte de sua viagem eremita em busca da liberdade total. Uma busca inversa daquelas na estrada, ou no mínimo complementar a ela. Kerouac e seus amigos apesar da influência budista de Gary Snyder, não largaram exatamente a religião ocidental, Jesus, por exemplo, era para eles um Buda desperto, como várias outras figuras da história.

Na filosofia de Kerouac Deus fez o corpo humano perecível, mas o espírito é indissolúvel e eterno. Nós homens apesar do que diz nosso ego, somos insignificantes em relação ao todo da criação do Universo. A vida na terra é como que um sonho divino. Só ao percebermos isso podemos viver livres de verdade, aceitando a morte como algo habitual e longe de um fim definitivo da existência. Livre de seus preconceitos com a morte, o homem pode “despertar” como um Buda e por alguns instantes compreender toda a vida e passar a experimentá-la plenamente.

Esse despertar exige dos homens sofrimento e peregrinação, por isso Kerouac louvava os vagabundos de todo o mundo e épocas, que com suas experiências de vida já haviam, mesmo que não percebessem, despertado. Esses vagabundos através do sofrimento haviam percebido o quanto eram um profundo nada no universo e por isso eram a matéria de que tudo era feito. Daí surge a eloqüente frase de Os Vagabundos Iluminados: “Eu sou Deus, eu sou o Buda, eu sou o imperfeito Ray Smith, tudo ao mesmo tempo, sou o espaço vazio, sou todas as coisas” (Vagabundos Iluminados).

Em outra obra, Viajante Solitário, Kerouac nos mostra o outro lado da vida Beat: meditação, contemplação e solidão profunda. Cansado das confusões urbanas e buscando um contato mais intimo consigo mesmo e a natureza, Kerouac se alista para ser vigia de incêndios numa região montanhosa e isolada no noroeste dos EUA. Kerouac ficará 63 dias e noites no Pico da Desolação e isso não o assustava, “estava em busca de uma experiência que os homens raramente obtêm nesse mundo moderno: solidão completa e tranqüila em meio a um ambiente selvagem” (Viajante Solitário).

Enquanto segue em direção ao topo de sua montanha, Kerouac descreve impressionantemente com uma riqueza de detalhes a geografia do lugar. A posição das montanhas, lagos e florestas, tudo isso parece ir engolindo o frágil homem no meio de tanta coisa bela e imprevisível. Embora embevecido pela força emanada do lugar, Kerouac após dormir em seu pobre barraco no topo da montanha onde vai passar todo o verão, desabafa:

“No meio da noite acordei bruscamente com os cabelos em pé – vi uma enorme sombra negra da minha janela. – Depois vi que havia uma estrela acima dela e percebi que se tratava do monte Hozomeen (2.425 metros) espiando pela minha janela a quilômetros de distância, lá perto do Canadá. – Levantei do catre soturno com os ratos a roer embaixo dele, saí e fiquei pasmo ao ver vultos negros de montanhas se agigantando ao redor, e não apenas isso, mas também a cortina ondulante das luzes do norte se movendo por trás das nuvens. – Foi um pouco demais para um garoto urbano – o medo de que o Abominável Homem das Neves pudesse estar respirando às minhas costas , no escuro , me fez voltar para a cama e enterrar a cabeça dentro do saco de dormir.” (Viajante Solitário)

Era o medo do homem urbano se tornando latente e se dissipando na natureza e solidão, acentuando o caráter da transcendência espiritual. Após algum tempo, finalmente Kerouac chegou à “iluminação” proporcionada pelo isolamento e fala de que modo essa solidão ajuda a “despertar” os homens.

“Nenhum homem deveria passar pela vida sem experimentar pelo menos uma vez a saudável e até aborrecida solidão em um lugar selvagem, dependendo exclusivamente de si mesmo e, com isso, aprendendo a descobrir sua verdadeira força oculta. – Aprendendo, por exemplo, a comer quando tem fome e a dormir quando tem sono”.  (Viajante Solitário).

Os dias inteiros eram entregues à procura do sentido das coisas e do preenchimento do vazio interior. Kerouac graças ao contato com o budismo, chegou a conclusões misericordiosas, misturando a teologia cristã com o pensamento oriental.

“Visto que, ao compreender que Deus é Tudo, você percebe que deve amar tudo por pior que seja, em ultima analise nada é bom nem mau (pense na poeira), é apenas o que é, ou seja, o que se faz parecer. – Uma espécie de drama para ensinar algo a alguma coisa, alguma ‘substancia menosprezada do mais divino dos shows’.” (Viajante Solitário, p. 162)

“Porque a sensação é vazio, envelhecimento é vazio. – Tudo é apenas a Dourada Eternidade da Mente de Deus; por isso pratique a bondade e a compreensão, lembre que os homens não são responsáveis por si mesmos, por sua ignorância e maldade, se deve ter pena deles, Deus se compadece porque o que há pra dizer a respeito de qualquer coisa visto que tudo é apenas o que é, livre de interpretações? – Deus não é ‘aquele que alcança’, ele é o ‘viajante’ naquilo em que tudo é, o ‘que subsiste’ – uma lagarta, mil cabelos de Deus. – Portanto, saiba sempre que isto é apenas você, Deus, vazio, desperto e eternamente livre como os incontáveis átomos da vacuidade em todos os lugares”. (Viajante Solitário, p. 163)

Kerouac em “Despertar: uma vida de Buda”, livro escrito em 1955 e publicado apenas em 2008, no qual narra a trajetória da vida do grande Buda Gautama, mostra que seu conhecimento do budismo não é superficial como se vinha supondo através de análises de “Vagabundos Iluminados” e “On the Road”. Essa análise errada da obra de Kerouac se deu porque ao misturar cristianismo e budismo, ele tendia para o lado católico no uso de imagens espirituais. Então se definia Kerouac como apenas superficialmente budista, infelizmente essa análise na verdade se expandiu para diversas outras pesquisas, como quando ao analisar Os Mutantes no Brasil ou os Beatles se diz que eram apenas superficialmente budistas, em partes tratando o orientalismo apenas como modinha dos anos 70, como se seus propagadores não tivessem conhecimento do que diziam. Nas palavras de Robert A. F. Thurman, professor de estudos budistas Indo-Tibetanos da Universidade de Columbia:

“Kerouac foi criado como católico. Sua família era profundamente católica e parece que desconfiava do seu envolvimento com Buda e com o budismo. Os muitos intérpretes e críticos de Kerouac parecem insistir que ele permaneceu católico , e ele com certeza possuía forte apego a Jesus e Maria. Não há dúvida de que ele amava tanto Jesus quanto Buda. A maioria dos estudiosos sustenta que Kerouac era ‘realmente’ cristão por completo e que seu budismo era uma espécie de interesse secundário. Sendo eu mesmo um apóstata protestante, notei que os americanos do tipo culto ainda ficam desconfortáveis em relação ao budismo, perplexos, e mesmo artista com enorme dívida para com o budismo ou ‘o Oriente’ relutam em reconhecer esse débito a não ser talvez em uma fase tardia de suas carreiras”.

Os Beats precederam os movimentos contraculturais que explodiriam nos anos 60 e 70 em muitas questões. Entre elas a anti-intelectualidade, espiritualidade oriental, desprezo dos valores sociais tecnocráticos, culto à natureza e práticas sexuais livres. Sua influência foi definitiva em muitos movimentos de vanguarda que explodiram nos EUA, Europa e América Latina posteriormente. Os ecos da geração Beat ressoam na cultura moderna até os dias de hoje, mesmo que parcialmente desvirtuado e domesticado pela indústria do entretenimento.

O blues, rock and roll, música progressiva, hippies, punks, acid-houses, cyber-punks, jornalismo gonzo, entre tantas outras inovações culturais do século XX que ocorreram depois dos anos 50 foram de alguma forma influenciados pela literatura, melhor, pela arte beat. Nas palavras de Eduardo Bueno, um dos tradutores de Kerouac:

“Difícil imaginar a obra de Sam Shepard, de Bob Dylan, de Charles Bukowski, de Jim Morrison, de Lou Reed, de Tom Wolfe, de Bret Easton Ellis, de Joni Mitchell, de Wim Wenders, de Hunter Thompson, de Neil Young, de Jim Jarmush, de Jay Maclnerney, de Beck, de Bono, de Tom Waits, de Gus Van Sant, de Bob Wilson sem On the road. Todos eles pagam tributo à franqueza fluídica e generosa do católico louco e místico que viu a luz nos trilhos e trilhas da América”. (presente em On The Road)

O que os Beats de fato queriam era viver aquele sonho americano que povoava o imaginário sobre a constituição dos Estados Unidos. Eles queriam uma América livre, para todas as raças, crenças e formas de pensar, uma América completa e livre. Dentro das suas possibilidades eles viveram essa América mítica mais do que todos os seus outros contemporâneos.

LEIAM ÇAPORRA DE LIVROS DA L&PM DO/SOBRE O CARA:

WILLER, Claudio. Geração Beat, Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

KEROUAC, Jack. Despertar de uma vida de Buda. Trad. Lúcia Brito. Porto Alegre: L&PM, 2010.

KEROUAC, Jack. Livro dos sonhos. Trad. Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 2010.

KEROUAC, Jack. On The Road. Trad. Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2010.

KEROUAC, Jack. Os Subterrâneos. Trad. Paulo Henrique Britto. Porto Alegre: L&PM, 2010.

KEROUAC, Jack. Tristessa. Trad. Edmundo Barreiros. Porto Alegre: L&PM, 2008.

KEROUAC, Jack. Vagabundos Iluminados. Trad. Ana Ban. Porto Alegre: L&PM, 2010.

KEROUAC, Jack. Viajante Solitário. Trad. Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2010.


[1] PACOLA, Gisele. Jack & Bob.  Curitiba: Grafitec, 2010.

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No Comments

  1. Rodolfo Lôbo

    28 de julho de 2012 at 16:48

    Texto absolutamente fantástico.
    Uma análise franca e bem feita dessa geração que eu conhecia pouco e agora, após o filme e o texto, estou instigado a conhecer profundamente.

    Reply

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