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Alguns diretores talentosos, depois de se consagrarem com algum filme deixam o sucesso subir à cabeça. Foi assim com Richard Kelly, que após Donnie Darko, ganhou seguidores e foi eleito pela crítica o grande autor contemporâneo, mas nunca mais fez um filme decente; e M. Night Shyamalan, diretor que nunca repetiu o sucesso e aceitação de O Sexto Sentido. Por isso, eu gosto de me perguntar o que passava na cabeça de Stanley Kubrick depois de lançar 2001- Uma Odisséia no Espaço, uma das ficções científicas mais cultuadas de todos os tempos (Nota da edição: e sonolentas). Era a época dos protestos contra a Guerra do Vietnã, da explosão da delinquência juvenil, de Charles Manson chocando o mundo com seus crimes bárbaros. Consequentemente, a insegurança vertiginosamente. Surgiam as discussões sobre a reeducação social e as polêmicas que envolviam esse assunto. No caso de Kubrick, após fazer filmes como Lolita, ele correu atrás de outra boa história e a encontrou no livro Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, gerando em sua adaptação um dos filmes mais influentes e polêmicos de todos os tempos.

Em um futuro próximo, Alex DeLarge é um jovem sádico que engana os pais dizendo que trabalha à noite para sair com sua gangue para praticar a ultraviolência: espancar pessoas, massacrar gangues rivais, roubar casas e estuprar mulheres – ou realizar o velho entra-e-sai, como o próprio Alex gosta de dizer. Ele só se diverte às custas do sofrimento, da desgraça  alheia. Tão violento que não consegue se conter. Um dia, após invadir uma casa, ele é traído por seus companheiros e acaba sendo preso por assassinato. Na cadeia, para poder ser solto mais rápido, o jovem aceita passar por um experimento revolucionário, que prometia devolver à sociedade criminosos completamente recuperados e incapazes de trazer mais perigo às pessoas. O chamado Método Ludovico faz com que Alex sinta uma dor terrível e uma ânsia de vômito sempre que sente um impulso de espancar ou estuprar alguém. Com o sucesso do procedimento, Alex é libertado. Mas não sem perceber que o mundo é tão cruel e terrível quanto ele, cheio de hipocrisia e violência.

É com o método Ludovico que o Ministro do Interior pretende vencer as eleições. Por isso, Alex vira peça de propaganda do governo, como uma prova de que eles podem acabar com a criminalidade e com o medo no coração das pessoas. O procedimento se revela muito mais uma tortura física e mental, quase uma lavagem cerebral que impede o indivíduo de cometer delitos. Uma nova forma de controle do governo, que não se importa em usar os mais terríveis métodos para alcançar seus objetivos.

Todos os personagens ganham nuances interessantes e os atores são excelentes, mas não há quem não saia ofuscado por Alex, interpretado com maestria por Malcolm McDowel. Sua atuação foi tão brilhante que Kubrick chegou a falar, depois do lançamento do filme, que se não contasse com um talento como o dele provavelmente não conseguiria rodar nenhuma cena. E com razão, sem ele o filme não teria a mesma complexidade. Malcolm conseguiu criar uma expressão de loucura e satisfação que meteria medo no escritor Jack Torrance, personagem de Jack Nicholson em O Iluminado. Alex não consegue controlar seus impulsos de violência, gerando cenas extremamente fortes, mesmo sem mostrar uma gota de sangue ou osso quebrado. E tudo com um clima debochado, como quando espanca um escritor e o força a vê-lo estuprando sua esposa, tudo enquanto canta I’m Singing in the Rain, do Dançando na Chuva, uma das cenas mais icônicas do filme. Curiosamente, essa música só foi escolhida porque era a única que Malcom sabia cantar inteira.  Algumas pessoas sentem desprezo por ele durante o filme, mas acaba simpatizando com ele no final do filme, em uma coisa que só um ator muito talentoso conseguiria: pular de vilão para mocinho em poucos minutos. Tudo isso em uma composição de cena lenta, onde um mero diálogo é cheio de significado.

Os colegas de gangue de Alex são tão sem rumo quanto ele. Todos se vestem de branco, usam uma cueca sobre as calças e cílios postiços. Alguns do grupo não conseguem aceitar a liderança do protagonista, questionando-o todo tempo, até finalmente o traírem. Mas Alex não aceita a submissão, ele nasceu para comandar. Ele se acha um grande líder, como Alexandre o Grande. O livro nunca chega a citar o nome do protagonista e esse acaba sendo o nome dele no filme Alex(xander) DeLarge (o grande).

Todo o filme é narrado por Alex em uma língua chamada Nadsat, idioma que mistura inglês, russo e o cockney, língua falada na classe operária britânica. Por isso algumas cenas são melhor entendidas se observando o comportamento dos personagens. A língua foi criada pelo próprio escritor do livro, Anthony Burgerss, e acabou sendo utilizada também no filme. Parte da força do filme está na narração de Alex e nos diálogos. Cada frase tem vários significados diferentes, você pode ver o filme centenas de vezes e ainda assim ter uma interpretação diferente de alguma cena. Cada personagem tem uma forma de falar única. Alex com comentários sarcásticos e inteligência, o companheiro Dim se limitando a repetir incansáveis as frases dos colegas de gangue, enquanto outros personagens se escondem atrás das suas frases-poços-de-hipocrisia.

Um detalhe interessante é que em diversas cenas do filme aparecem quadros ou símbolos associados ao sexo. Quadros, esculturas, fotos de mulheres fazendo poses sexuais, como a deixar claro o estado de presença constante da sexualidade na sociedade. O filme foi rodado na época dos hippies, do sexo livre, bem antes da AIDS aparecer e acabar com tudo. Alex transa com quem e quando quer, independente da mulher querer ou não.

Laranja Mecânica é famoso por suas cenas de violência. Todo mundo que comenta o filme lembra logo delas. Mas elas compõem apenas 20% do filme. E não mostram nem um pingo de uma maior violência visual. E ainda assim conseguem chocar seus telespectadores. O segredo do choque? Kubrick deixa tudo para a sua imaginação, uma lição que filmes como Jogos Mortais e Albergue deveriam aprender.

Kubrick também caprichou na trilha sonora.  A Nona Sinfonia de Beethoven é quase um personagem do filme, tamanha a importância que ela tem na história. Alex é fascinado por ela, ouvindo-a enquanto se imagina estuprando mulheres e espancando pessoas. A música ficou tão marcada pelo filme, que sempre a que ouço lembro das cenas de Laranja Mecânica. O resto da trilha é arrebatadora, conseguindo traduzir todo o clima das cenas. Ela não foi escolhida ao acaso, nunca dando aquela sensação de não combinar com o filme.

O final do filme é diferente do livro, e isso pode desagradar quem leu o livro antes de procurar a versão cinematográfica. Mas quem conhece Kubrick sabe que ele não se limitava a simplesmente transcrever elemento por elemento dos livros que adaptava. Não queria ter sua criatividade limitada. Foi assim com O Iluminado, considerado por alguns o maior filme de terror de todos os tempos, mas é repudiado pelo seu escritor Stephen King porque ele o considera pouco fiel ao seu livro. Mas o mestre do horror esquece que esse filme foi um dos principais responsáveis para que hoje ele fosse conhecido justamente como o Mestre do Horror. Laranja Mecânica ganhou ares mais politizados no filme. São questões sérias passadas de forma que não subestimam a inteligência do espectador. Não é igual a filmes em que o vilão explica todo o seu plano no final. O que o Kubrick queria falar com seu filme é você que tem que prestar atenção para compreender perfeitamente, e ainda assim há margem para as mais diversas interpretações.

Laranja Mecânica não incentiva a violência, mas nem todos conseguiram compreender isso na época do seu lançamento. Na Inglaterra, surgiram várias gangues repetindo os feitos do grupo do Alex, arrasando o país. Isso obrigou Stanley Kubrick a tirar seu filme de circulação por lá e este acabou sendo proibido. O filme só era encontrado no comércio pirata. Assistindo-o por vias ilegais, jovens e talentosos diretores compreenderam a mensagem e a levaram para seus filmes. Alguns deles são John Singleton, diretor de Os Donos da Rua, Sam Mendes, de Beleza Americana, Tony Kaye, de A Outra História Americana, e Steven Spielberg, que dizia lutar para imitá-lo. Assim, as idéias de Kubrick são propagadas até hoje, nesse que é um dos mais importantes diretores de todos os tempos e que se comparado com a maioria dos filmes lançados nos dias de hoje, época negra de crise criativa em Hollywood, parece muito mais impressionante e talentoso do que foi considerado em sua época.

[quote_box_center]Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) (Grã Bretanha, 1971)

Direção: Stanley Kubrick

Duração: 137 minutos.

Nota: 10[/quote_box_center]


 

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No Comments

  1. Alice

    17 de fevereiro de 2012 at 17:41

    Clássico!!!
    Mas não recomendado a pessoas puritanas kkkk

    Reply

  2. Bianca

    23 de fevereiro de 2012 at 16:32

    “A Nona Sinfonia de Beethoven é quase um personagem do filme, tamanha a importância que ela tem na história.” – Acho que não poderia descrever de maneira melhor o que a sinfonia representa.

    Reply

    • David

      28 de abril de 2012 at 23:03

      Eu posso: “É como mercúrio líquido flutuando no espaço”.

      Reply

  3. […] está o motivo da brincadeira no título. Poderia ser esse o Laranja Mecânica dos dias atuais, em se tratando sobre discutir a violência? O filme claramente foi inspirado […]

    Reply

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