Nós, Eles e Eu (NEY: Nosotros, Ellos y Yo, 2016) não é apenas o registro pessoal do argentino Nicolás Avruj sobre o início da segunda intifada, durante sua viagem por Tel Aviv, Jerusalém, Gaza e Cisjordânia. É uma construção narrativa de um jovem latino-americano criado em uma família tradicional judaica que busca dizer “Não” à própria lógica discursiva sulcada nos corpos e territórios que marcam a diferença entre os povos que vivem o conflito na “terra santa”.

A película abre com a cena de Avruj e sua avó de frente a um espelho, ambos divertindo-se com o jogo reflexivo presente entre seus corpos, suas imagens refletidas no espelho e as imagens captadas pela câmera. Essa cena é resignificada, quando se revela que a avó de Avruj é uma grande matriarca judia, que há muitos anos destaca-se como uma das fomentadoras do patrimônio judaico na Argentina. Assim sendo, acompanhamos uma festa tradicional bastante animada, na qual a avó, o diretor e a câmera participa da festa, dançando e cantando a tradição judaica.

Nicolás viaja à Tel Aviv para visitar um primo, que por desencontro não estava mais na cidade. Assim começa sua jornada solitária por Israel ao longo do ano 2000. Após caminhar por alguns minutos pela cidade, o jovem percebe-se estar entrando na região “árabe” da cidade. Uma vez lá, testemunha as primeiras manifestações de violência da segunda intifada. Porém, o que marca seu percurso, e por consequência o filme é a renúncia sustentada pelo cineasta ao dizer que odeia quando lhe perguntam de que lado ele está: do lado de Israel ou do lado Palestino. Daí a palavra “NEY”, sigla formada através da união das palavras “Nosostros”, “Ellos” e “Yo”. É a negação de Avruj, que em termos práticos transforma-se em um “sim” para a questão. Não assumindo lado algum, é lançado às histórias, imagens, narrativas, opiniões e enigmas que circulam em torno do laço violento que amarra os dois povos. Por diversas vezes no filme, quando indagado sobre sua posição, Nicolás reclama: “Por que tem de haver um lado? Por que essa pergunta? Eu me recuso a aceitar a pergunta!”.

O “Nós” de Nicolás refere-se ao seu âmbito familiar, aquele sob os olhos de sua avó. A mesma que o reconhece, dando um lugar ao neto dentro da brincadeira na cena inicial frente ao espelho. Em termos narrativos, “Nós” é a família judaica, que habita a Argentina, assim como Israel. Diz da familiaridade e da inserção social do personagem principal. Trata-se de um campo pré-estabelecido que lhe antecipa a chegada. Vêm de longe, anos a fio, reconstruindo a história de sua avó e de seus antepassados. Assim sendo, “Nós” é um lugar semântico que é imposto a Avruj. Apesar de sua “renuncia”, de não assumir lados, ele esconde sua origem judaica de seus colegas árabes, dando indícios de algo que o marca e lhe dá lugar à priori. Este “Nós” é um grande Outro que estava lá antes de Nicolás, a partir de onde ele se constitui e torna-se alguém. Entretanto, é exatamente este mesmo Outro que parece “alienar” o cineasta. A própria inconsistência deste “Nós” produz uma divisão em Avruj que em última instância o direciona para esta o enigma.

Quando Avruj cruza as fronteiras do bairro árabe, defronta-se com “Eles”. Lá encontra a figura do outro como representante do estranho, do estrangeiro. Uma vez sendo ele o judeu argentino em “território” árabe, a posição de estrangeiro lhe é ponto de identificação. Os árabes representam aqueles dos quais ele pode se relacionar através da diferenciação imposta por sua ancestralidade. Isso está em Freud, pois na constituição de um grupo, marca-se o outro enquanto diferença, fechando um conjunto que marca o “Nós” em diferença aos outros, que constituem o “Eles”. Nicolás encarna a ambiguidade da expressão “Eles” através da qual os outros podem ser seus aliados, assim como também figuram-se como inimigos em potencial. Os árabes passam a representar exatamente o lugar da ambiguidade para o cineasta-personagem, pois ao mesmo tempo em que lhes são hospitaleiros e afetivos, com o tempo, começam a manifestar o discurso massificado de ódio contra os judeus. Isto faz com que Avruj tenha de se posicionar frente a seus companheiros, seus amigos e aliados. Assim, omite sua origem judaica. A pergunta que fica implícita no filme é: “Como podem eles amarem Nicolás e ao mesmo tempo odiarem o judeu?”.

O “Eu” do filme é uma construção que somente surge ao fim da película, de maneira evanescente. Em parte é uma identificação do espectador com Avruj, em parte com a câmera-testemunha. Este “Eu” não é uma síntese “Cineasta-Câmera-Espectador” como poderia se esperar, mas uma linha ficcional através da qual se pode antecipar um sujeito que conclui. Em certa medida, se trata da conclusão dirigida pelo cineasta realizador e aí se encontra aquilo que ele busca transmitir: um testemunho em uma linha de ficção que diz sobre uma experiência particular e singular. Mas desta conclusão toma-se parte o espectador enquanto dirigido, isto é, enquanto aquele que vê o recorte e se antecipa em um limite lógico de conclusões. A principal e mais enxuta de todas elas é que a guerra entre Palestina e Israel é desigual.

Avruj mantém sua posição de renúncia, anunciada na expressão originária “NEY”. Porém, a sequência na qual vemos as cenas dos conflitos iniciais da intifada testemunha uma batalha entre o exército de Israel contra a população árabe. Assistimos um conflito em que a população árabe joga pedras e o exército revida com metralhadoras. A mesma hipótese está presente quando acompanhamos a dura realidade da família árabe que mora logo abaixo da construção de um novo assentamento israelense – na qual um trator insiste em trabalhar ali, onde logo a terra irá ceder e a casa em que vivem dezenas de pessoas será soterrada. As reações palestinas e a presença de grupos terroristas não estão presentes neste testemunho. Teria o cineasta omitido à violência árabe organizada intencionalmente? Ou de fato o conflito é desigual? De qualquer maneira, o filme não parece defender lados, pois enquanto espectadores, não sentimos o peso de um discurso ideológico com determinados fins – à favor da Palestina no caso. Entretanto, não podemos ignorar que a câmera como mediadora do testemunho já marca uma posição ideológica frente aos “acontecimentos” transmutados em narrativa.

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A história de Nós, Eles e Eu (2016) não deve ser confundida com a história oficial da guerra entre Israel e Palestina. Porém, seria problemático entendê-la como uma história que afronta a história oficial. Isto se dá porque boa parte das tensões na “terra santa” estão relacionadas a um conflito de histórias oficiais. A questão é saber como a história da película compõe uma montagem na qual podemos incluir uma série de histórias que não formam uma verdade histórica única. Trata-se de uma montagem que não visa à verdade, pois reconhece que toda verdade tem estrutura de ficção. É uma história que deve ser olhada “meio de lado”, como qualquer história, pois é exatamente onde a verdade é omitida que ocorre a transmissão.

[quote_box_center]NEY: Nosotros, Ellos y Yo (2015, Argentina)

Direção: Nicolás Avruj

Duração: 88 minutos

Elenco: Nicolás Avruj, Nur Al Levi, Frieda Geffner, Abu Harbed, Sebastián Muller, Iosef Shai[/quote_box_center]

 

 

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