– Você é o Diabo?

– Costumam me chamar assim também.

– Então você é de fato o diabo?

– Posso ser isso. Na verdade eu posso ser muitas coisas.

– Tipo o quê?

A mesa preta de ferro servia de barreira entre aquelas duas mulheres. Uma reclinada no encosto da cadeira com um dos cotovelos apoiado no braço da mesma enquanto empunhava um cigarro aceso. A outra escondia as mãos no meio das pernas bem fechadas. Mantinha os ombros curvados para frente. Curiosa, mas com receio do que fosse ouvir.

Era uma tarde agradável com a iluminação e clima certos.

– Muitas coisas. Posso ser material, invisível, horrenda, linda, palpável, onipresente, sem peso, translúcida. Tudo depende.

– Depende do quê?

– De como as pessoas me vêem.

Aquela conversa não fazia sentido.

– E por que você veio me ver?

– Você me chamou por um bom tempo e, se eu não me engano, até tentou forçar um encontro entre nós duas. Mas eu trabalho com uma agenda bem rígida e cheia, Ainda não era a hora certa. Não me entenda por mal, são as regras.

– Regras? Que regras?

– Daqui a pouco você me entende – ela tragou o cigarro e soltou a fumaça com toda a calma que aquela tarde podia oferecer.

– Posso… Dar um trago? – a outra mulher sorriu e acatou com a pergunta.

“Como me ensinaram. Puxe a fumaça respirando. Não a mantenha na boca, inspire e depois exale. E pelo amor de deus não comece a tossir. Resista. Você não quer fazer papel de idiota e iniciante na frente de todo mundo.”

Inspirou.

Expirou.

Nada de garganta seca.

Nada de gosto amargo na boca.

Correu tudo bem.

Ela sorriu.

– Pode ficar com esse. Tenho um maço cheio comigo. Você não é a primeira a me pedir isso.

– É sempre bom andar preparada.

– E você? Está? – disse acendendo outro cigarro usando um isqueiro de prata.

“Igual ao de meu pai”

– Está o quê?

– Preparada.
– Pra quê?

– Ouça. Eu vou te fazer uma proposta. Você quer ficar aqui conversando amenidades comigo ou quer dar uma volta por ai? – Ela estendeu-lhe a mão num convite para que saíssem dali. Juntas.

Ponderou. Ir pra onde? Fazer o quê?

Como ela chegara ali?

Num lugar que personificava até nos mínimos detalhes suas concepção de calma e serenidade?

Como estava sentada na mesa preta de ferro que pertencia a sua avó?

Como?

E quem era aquela mulher? Aquele “Diabo” tão tranquilo e convidativo?

Sua visão ficou preta e seu peito foi brutalmente projetado para frente. Sentiu o ar fugir dos pulmões por um breve segundo. Os membros ficaram moles e acabou deixando cair o cigarro. O primeiro cigarro que conseguira tragar sem ter uma crise nem virar motivo de piada.

Seu peito foi lançado para a frente.

De novo.

De novo.

E de novo.

Abriu os olhos e viu aquela mão quente e macia. Aberta, bem diante dela, esperando por uma resposta.

– E ai, vem?

Ergueu o pulso mole e pousou-o desajeitadamente naquela palma firme e decidida. Conseguiu levantar sem muita dificuldade e começou a se sentir melhor. Seu peito não mais se moveu.

O susto do impacto passara.

– Você pode me dar outro cigarro? Eu derrubei o meu.

– Claro, aqui – acendeu-o e tragou sentindo-se leve. Despreocupada e de consciência limpa. Fumar já não era mais um ato ilegal ou prejudicial. Agora só se importava com o próximo passo.

– E pra onde a gente vai?

– Pra um lugar muito legal, você vai ver.

– Então você não é o Diabo?

– Você me vê como um?

– No começo sim. Agora não, agora você parece… Inofensiva.

– É sempre assim. No início todo mundo morre de pavor, mas depois que o susto passa eles percebem que não faço mal pra ninguém. Sou pacífica.

Da morte, não se deve ter medo.

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