Muitos odiaram, outros amaram, mas quem gosta de séries de TV deve ao menos ter visto. Twin Peaks: The Return (ou terceira temporada) é o que de mais importante e impactante a TV mundial vai nos oferecer este ano. Não vai ganhar montes de Emmys, mas colocou um pé na história, tudo por mais uma vez buscar ser um trabalho diferente de praticamente tudo que está no ar, e inclusive diferente do que foram as duas primeiras temporadas da série.

Quando estreou, Twin Peaks tinha um objetivo mais ou menos claro: brincar com a estrutura básica das telenovelas que inundavam as TVs dos anos 90 e servir como plataforma para o diretor e showrunner David Lynch amplificar as estranhezas que povoam sua mente. A série durou apenas duas temporadas, mas se tornou cult — e influenciou alguns dos roteiristas mais importantes da atualidade, gente do calibre de David Chase (Sopranos) e Damon Lindelof (Leftovers).

Essa é uma série cercada de lendas e cada uma delas ganha proporções gigantescas graças ao mistério que Lynch cerca sua cria. Em The Returnatingimos um tipo de ápice na cultura colaborativa global em volta de decifrar enigmas e tecer teorias sobre séries de TV: cenas deletadas do filme viraram fonte, bem como um livro sobre a história “secreta” da cidade (escrito por um personagem que é uma fonte não-confiável), sites alternativos, outros filmes do diretor e por aí vai. Aparentemente, qualquer coisa pode entrar no radar para entendermos o que de fato é Twin Peaks.

Uma das delícias da série é justamente o fato de nem David Lynch saber muito bem o que ela é. Se duvida, é só se atentar para o fato do grande vilão de Twin Peaks (a entidade maléfica BOB) ter sido criado pela visão do diretor de um preparador de set (Frank Silva) que tentava se esconder em meio às gravações em uma posição ameaçadora. Mais? O colega de Black Lodge dele, Philip Gerard (ou MIKE), originalmente só faria uma curta aparição porque Lynch achou que seria uma referência a O Fugitivo (atente para o fato do policial perseguidor do Dr. Richard Kimble se chamar Gerard), mas quando ele (Gerard) leu o monólogo Fire Walk With Me, acabou se tornando um personagem importante para a série por ter uma voz inesquecível — e mais ainda nesse retorno.

É esse tipo de construção instintiva que torna Twin Peaks uma jornada tão tortuosa, irregular, estranha, e por isso sensacional. Por sabermos que um artista encara sua obra mais importante como sempre quis, 25 anos depois desse direito lhe ser tirado.

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Primeiramente é preciso entender esse retorno da série como um pedaço (talvez) final da filmografia de David Lynch. Sacar isso é evitar frustrações com as similaridades que esses capítulos têm com Império dos Sonhos, por exemplo, um filme mais experimental que qualquer outra coisa. Como o diretor deixou claro, estamos diante de um filme em 18 partes, em que o ritmo trabalha de uma forma completamente diferente — os episódios às vezes não são exatamente episódios, mas pedaços de uma coisa maior, o que alguns podem pensar não ter diferença, mas muda completamente o ritmo e a forma como um roteirista gerencia inícios e finais e também dá mais importância para o diretor, que em séries de TV não importam muito na maioria das vezes.

O Retorno é um negócio estranho, mas grandioso. Não estamos mais unicamente em Twin Peaks, não temos mais apenas BOB, temos um mal muito maior enraizado. A história básica fala sobre como Cooper consegue sair de Black Lodge após décadas presos e lidar com sua versão maligna que está na Terra, além de uma trama envolvendo cassinos, aparições sombrias e, claro, a luta final entre o Bem e o Mal. Também é um resgate do passado, um desenvolvimento de mitologias que se iniciaram há décadas atrás.

Lynch nos ensina a esperar sempre o menos esperado. O inesperado. O retorno de Cooper a sair da vida de Doug é talvez o grande mote da série, embora a cada momento somos submetidos a uma série de coitos interrompidos pensando que a cada momento Cooper voltará e beberá montes de café, mas esse retorno não chega. Porque Lynch quer nos ensinar como é o ser humano e o que importa nele. Serão as características externas ou um tipo de essência quase metafísica impossível de definir de forma clara?

Esse é um dos temas centrais da série, uma busca nas sombras, um mergulho no que está abaixo de uma superfície tão obscura quanto estranha. Twin Peaks não quer descortinar esse acúmulo de enganos, ruídos ou terror inseridos em todo o tipo de relação humana, seja pessoal ou social, mas nos aprofundar em cada um deles. Talvez até aceitar a existência delas, aprender nos desviar delas.

Dentro dessa dimensão há ainda o componente espiritual, que a série destrincha em seus mais mínimos detalhes. Se há alguma coisa que Lynch faz muito bem é nos mostrar como o espiritual permeia todas as bordas da existência. Seja nas intenções de uma dupla de donos de cassinos milionários, ou na cadeia de acontecimentos que leva Doug/Cooper a finalmente se encontrarem, tudo aparentemente conduzido por uma estância da realidade chamada Black Lodge que nunca fica claro como de fato influencia o nosso mundo.

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Twin Peaks: The Return nos prova que a série original está na raiz do desenvolvimento da TV. Por mais que Sopranos seja o modelo formal da estrutura das séries, em que cada episódio possui uma estrutura própria e finita e se intercala com o restante da temporada, Twin Peaks é a inspiração temática da própria TV americana. Não apenas por ter nos ensinado como criar um labirinto ao redor dos espectadores, os prender ali dentro e ainda assim manter a qualidade, mas por fugir até do convencional criado por ela (a série) mesma.

Lynch e Frost vão ainda mais longe nesse retorno. Para início de conversa, há uma gigantesca inversão de expectativas ao esconder o personagem principal em uma segunda (terceira, na verdade) personalidade. Cooper é massacrado ao assumir a persona de Doug, um sujeito já imbecil, mas que ficou ainda mais imbecilizado por representar justamente o retorno de Cooper a ser quem ele era.

Pode ser uma típica forma dos fãs tentarem adequar a realidade aos maneirismos esquisitos da série e buscarem algum tipo de sentido em um reino onde apenas a piração tem alguma ordem, mas a realidade ficcional se mostra muito mais complicada que isso.

O fato é que existe uma ordem tênue nas montanhas de simbologias da mente de Lynch e Frost e de seu universo de Twin Peaks. Se duvide, pegue o episódio mais simbólico dessa terceira temporada, o já clássico Got a Light?. Parece uma montanha de maluquice alicerçada em coisas que não fazem sentido algum, mas faz sentido sim. É até mais explicado do que o esperado, embora a resposta central (quem é a menina que recebe o híbrido em sua boca?) nunca é de fato dada.

Vemos a chegada do Mal ao planeta na visão da série: o experimento Trinity, onde o homem deu para si a capacidade destruir a própria espécie. É por esse portal que Judy consegue dar seu sopro maligno e habitar a superfície do planeta com entidades como BOB. Laura Palmer é uma tentativa desesperada de contrapor esse mal. Se na série original aprendemos que ela é uma desvairada, no filme Fire Walk With Me a equação muda um pouco e Laura se mostra uma figura torturada, que suporta em seus ombros os malefícios secretos da vida em sociedade. E nesse episódio, a série constrói o último pilar em torno de Laura e a coloca com uma missão clara — que claramente não deu certo. Soou um pouco exagerado, mas encaixa perfeitamente com a proposta do personagem.

Assim como simboliza a trajetória de seu personagem principal, O Retornotambém é sobre a passagem e os efeitos do tempo. Sobre como as coisas mudam, mas conseguem manter um tipo de núcleo inalterado. Sobre o nosso lugar no mundo. Tudo mudou não apenas em Twin Peaks, mas no próprio coração da América, mas há algo de rígido em seu centro. Aqui ele é simbolizado pelo Terror, não pelo medo da violência (e sua influência numa típica família, um dos temas centrais de Sopranos), mas sim pela porção inumana que move a todos nós, ao ponto dele sobreviver até nas almas mais improváveis e deformar até pessoas destinadas ao Bem.

Talvez BOB e seus companheiros da Black Lodge representem a entropia a que o Universo está destinado a abraçar. Os humanos e seres vivos são a ponta de resistência a aceitação desse destino, devorando a entropia. É essa guerra pela organização da informação e dos sinais ao redor que representa a própria luta do Bem contra o Mal. Dessas duas porções espelhadas, Black e White Lodge, surgem as áreas cinzas e as respostas do que ocorre na Terra.

Vemos Shelly que testemunha como sua filha se envolve nos mesmos problemas que ela. A Dama do Tronco que enfrenta a morte e proporciona algumas das cenas mais emocionantes e sinceras dessa temporada. Audrey Horne, uma de nossas personagens preferidas, foi estuprada e parece traumatizada e presa num limbo psíquico que nunca descobrimos completamente o que é. Harry Truman, o xerife, também enfrenta problemas similares. Daiane também age da forma mais estranha possível até entendermos todos os motivos dela. Todos estão presos de certa forma ao passado, enquanto Bad Cooper empreende um tipo de luta particular para vencer a própria natureza entrópica de sua missão. O próprio Cooper está preso e só consegue se libertar graças a uma série de gatilhos externos empreendidos por MIKE.

Dentro dessas sucessivas camadas enigmáticas, onde espíritos e dimensões se conflitam, há a própria essência da ficção: entender como o Homem funciona, em seus aspectos intelectuais e emocionais. É preciso muita suspensão para não identificar em diversas cenas um peso emocional muito patente. É aqui que a série brilha de verdade.

Exatamente por isso, por representar algo tão fundamental e cíclico, Twin Peaks não se reserva a finais felizes. Se o final da segunda temporada foi um dos ganchos mais depressivos e cruéis que a televisão já testemunhou, o final da terceira temporada não corre muito atrás. Aliás, ele é um negócio um tanto estranho por ter gente falando que ele representa um final feliz e uma vitória do Bem, enquanto outros apontam o último episódio como o triunfo do Mal cíclico que percorre a própria história global.

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Mais importante que isso, estamos diante do enigma da própria existência e da quebra de regras dela. Por mais que sejamos os seres da ordem por excelência, há tanta coisa que provavelmente jamais seremos capazes de entender, e a frustração de chegar a uma conclusão dessas se reflete nas próprias reações à construção do show. Twin Peaks é sobre as coisas que nos escapam durante a existência, sobre o que não conseguimos descrever ou entender.

A série não representa um tipo de evolução de todas as sucessivas eras de ouro da TV, mas uma ruptura repleta de rebeldia. O que você assistiu em The Return dificilmente assistirá de novo. O motivo envolve justamente a escassez de criadores com visão única do que realmente importa. Não estou querendo dizer que todas as séries deveriam tentar ser uma pequena revolução narrativa, mas sim que seus criadores deveriam se sentir livres para embutir em suas criações esse lado cinzento do que nos torna humanos.

O que nos leva ao final. Lost nos mostrou como o final de uma série (ou toda a temporada final, para ser fiel ao exemplo) podem ser ruins o bastante para fazer os fãs vomitarem em toda as outras temporadas. Um final pode ser não apenas ruim, mas uma enganação completa se não fechar as pontas iniciadas nas temporadas anteriores. Se não for capaz de ser um ponto de fechamento para a jornada de seus personagens principais.

Twin Peaks é estranho até quando se debruça sobre regras básicas. Os 18 episódios dessa temporada foram uma aula de como não satisfazer quem estava assistindo. De todas as formas. Desde cenas com pessoas varrendo o chão por cinco minutos (o que parece muito bobo contando assim, mas foi uma forma de Lynch brincar com nossas expectativas quanto ao final de cada episódio, sempre com um número musical), até os minutos com o odiado James no ar, Doug e suas atitudes escalafobéticas, Audrey e seus sucessivos diálogos angustiantes e por aí vai. Em alguns momentos, aparentemente a ideia dos roteiristas parecia ser nos decepcionar, deixar um gosto amargo sempre.

ATENÇÃO: spoilers do final da temporada à frente

Mas esses momentos eram alternados com episódios onde as coisas eram amarradas, ainda que cercadas de maluquices adversas e incompreensíveis. O final foi justamente uma alternância desses dois polos da série.

São dois episódios muito distintos. O primeiro deles envolve uma escalada de satisfação, com batalhas épicas, BOB derrotado, personagens que encontram (alguma) redenção e o dia salvo. Tudo bem, né?!

Não!

Existe um segundo episódio que subverte não apenas as regras da série, mas da própria ficção. Lynch nos dá uma série de pistas que indicam que essa realidade é parte de um sonho de Cooper (ou, para tentar ser mais exato, o agente é como um espectador externo da própria realidade, algo que evoca estranhamente 2001: Uma Odisseia no Espaço) e somos levados ao momento em que Laura Palmer embarca em uma série de eventos que resultariam em sua morte. Cooper a salva ao puxar sua mão e impedir que ela encontre com os homens que a arrastam para um assassinato brutal.

Mas para onde vamos daí? Sarah protagoniza uma cena que foi encarada de maneira dúbia: ela esfaqueia uma foto de Laura, o que pode significar que ela (provavelmente possuída por Judy, uma entidade maligna que é como a mãe de BOB) não se deu por vencida e conseguiu sequestrar Laura novamente com o ato, ou que ela foi derrotada e essa é a prova. As coisas não são simples em Twin Peaks.

Vemos Cooper e Diana mudarem de dimensão (Mundo Invertido é para os fracos), transarem ao som de My Prayer (a música que embalou o inesquecível episódio 8, inclusive tem um sujeito chamado David Lynch na banda que canta essa música) e depois as coisas mudam de vez. Diane desaparece e Cooper sozinho busca Laura, a encontra, mas ela não é Laura, mas Carrie Page. Os dois seguem para Twin Peaks e visitam a casa onde ela está, mas lá não existe nenhum Leland ou Sarah, mas uma outra mulher (que de fato mora naquela casa, uma forma de Lynch reforçar que essa é a nossarealidade e o tempo aqui já deixou de ser uma entidade confiável) que se chama Alice Tremond, que por sua vez comprou a casa de uma tal Sra. Chalfont.

Quem viu a segunda temporada da série e o filme, sabe que os dois nomes pertencem à mesma pessoa: um provável espírito da Black Lodge com cara de velha e um neto muito estranho — vivido pelo filho de Lynch.

Nesse momento, testemunhamos o pesadelo final: Cooper pergunta “Em que ano estamos?” e Laura apenas grita após ouvir seu nome sendo gritado na casa. E tudo se apaga. E somos jogados no escuro. É como se a luta contra o mal não tivesse fim, mas vale a pena sempre tentar.

Assistir Twin Peaks é quase um exercício de masoquismo. Sua terceira temporada (Lynch não descarta uma quarta temporada, mas disse que se acontecer, vai demorar. Mas essa terceira foi muitíssimo satisfatória, por sinal) ainda deixou uma série de pontas soltas (Audrey), mas representou um arco emocional e narrativo que terminou como deveria: com violência, mais mistérios e múltiplas interpretações —algumas teorias apontam até que devemos ver os dois últimos episódios sincronizados, o que dá a série um final feliz.

A grande lição de Lynch com esse novo capítulo de sua mais importante criação não é apenas que o passado dita o futuro, mas que a velha Twin Peaks não existe mais. Não apenas a cidade, mas a própria série. Os tempos modernos apagaram esse lugar peculiar. Ela não existe sem estar inserida em uma teia de acontecimentos que envolve metade dos EUA e até a Argentina. É uma lembrança que não existe um cantinho quente onde nos sentimos seguros, o pesadelo está em todo lugar, como a própria sombra da existência humana.

Entender isso é entender a si próprio. Exatamente por isso, nada em 2017 vai superar a jornada que David Lynch nos proporcionou — e ainda por cima nos fez ouvir uma das músicas mais lindas do ano, é só dar o play abaixo.

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