Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr [quote_box_center]Leia a parte 01: Diário de um antropologo numa ecovila Leia a parte 02: Diário de um antropólogo numa ecovila Leia a parte 03: Mito e realidade da criação de Itapeba Leia a parte 04: Ritual da ~Amizade~ Leia a parte 05: Convite para ação Leia a parte 06: Minha apresentação à comunidade Leia a parte 07: Dialética sujeito/objeto em cheque Leia a parte 08: VOCÊ ESTÁ DEMITIDO Leia a parte 09: Uma luz no fim do túnel [/quote_box_center] Depois de tanta confusão, conflito e até uma demissão, procurei estreitar as relações com Cristina e os guardiões para não inviabilizar minha pesquisa. Supreendentemente, isso não foi tão difícil quanto eu havia previsto. O fato de que eles haviam tentado cancelar as reuniões e não conseguiram devido à voz ativa dos membros da ecovila me isentou da responsabilidade pelo que estava acontecendo. Ficou claro para Cristina e os guardiões que continuar com as reuniões não era uma iniciativa minha, e que independente do meu envolvimento, estes encontros continuariam a acontecer. Eles consentiram que eu continuasse a observar os encontros da associação e quaisquer outras reuniões que acontecessem dali em diante, mas até o fim da minha estadia em Itapeba, nunca me convidaram para uma reunião de seu pequeno grupo. O próximo passo era conseguir me desvencilhar do papel de facilitador da criação da associação. A reunião seguinte contou apenas com os membros da comunidade que não fazem parte do Centro. Era minha oportunidade de me retirar do processo. O encontro foi pautado por um clima de perplexidade e tristeza. Muitos desabafaram, indignados, pelos rumos que a ecovila estava tomando. Moksha declarou que não tinha vontade de vir à reunião, mas que o fez para honrar o compromisso que havia assumido. Afirmou que não tinha nada contra Cristina, mas não se sentia identificado com o grupo ligado ao Centro. Disse que também não se identificava com o outro grupo, mas considerava essencial criar uma organização interna, uma associação de moradores. Ele se sentiu ferido pelos últimos acontecimentos, mas estava feliz de despertar para a realidade. Maria, espanhola que tem uma casa em Itapeba e mora lá há 3 anos, afirmou que estava confusa com a situação, sem conseguir ter clareza do que estava acontecendo. Ela reconhece que existe uma divisão entre a frente (Centro) e o fundo (Ecovila), mas não afirma que, em muitos momentos, não consegue entender pelo que estão lutando ou o que os divide, apesar de saber que o problema acontece. Fazendo alusão à questão racial, ela afirmou: Quando perguntamos a um branco se ele acha que existe racismo e discriminação no Brasil, ele provavelmente irá responder que não existe. Se fizermos a mesma pergunta a um negro, ele provavelmente irá responder que sim, existe racismo e discriminação no país. O grupo dominante nunca reconhece que existe desigualdade e opressão, apenas os oprimidos sofrem com os efeitos da exclusão social. Analogamente, é isso que o Centro vem fazendo, ao negar a existência de injustiças na ecovila ou a legitimidade dos conflitos. Mas eles existem e nós sabemos disso (Maria). Outros afirmaram que já estavam questionando se iriam mesmo continuar morando em Itapeba. Uma das recém-chegadas que estava negociando a compra de um lote na ecovila afirmou que não sabia mais se iria fechar ou não negócio. Lídia, britânica, afirmou que já estava ficando cansada de assistir pessoas boas chegando em Itapeba com vontade de ficar e depois indo embora por causa dos conflitos. Ela lamentou o fato de que o Centro é o responsável por receber as pessoas que chegam na Ecovila, pois muitas se decepcionam com o que encontram e vão embora. Ela gostaria de criar uma associação que pudesse receber as pessoas novas e que conseguisse reter pessoas que hoje estão sendo afugentadas pelo Centro. Paulo, brasileiro residente em Itapeba há quase 3 anos, fez um desabafo emocionado: O que aconteceu na semana passada mudou minha percepção da ecovila. Não falo tanto a respeito das pessoas que vem e vão. Eu falo por mim e por tudo que foi feito, coisas que presenciei. Me senti abusado, magoado. Todas as vezes que alguém tentou falar sobre algum aspecto de Itapeba que não fosse incrível e maravilhoso, essa pessoa se tornou o diabo. Amigos foram taxados de endemoniados e eu não me posicionei, apesar de estar me sentido abusado. Conheci pessoas maravilhosas, tive esperança que ficassem em Itapeba, e depois tive que vê-los indo embora, excluídos da comunidade com a minha conivência. Acordos foram feitos e depois desfeitos. Pessoas colocam seu coração nas suas falas e um grupo, o Centro, destrói isso Basta! Quero ser ouvido! Quero fazer alguma coisa! (Paulo) A solução que o grupo foi encontrando para suas angústias foi tentar criar alguma coisa por si mesmos, sem ajuda do Centro, apesar do Centro. Eles decidiram que deveriam organizar um mutirão, alguma atividade coletiva, para promover a união e a integração entre as pessoas e para reverter o clima de apatia. De acordo com eles, a falta de trabalho coletivo, da “mão na massa”, era um dos componentes que fomentava a discórdia. Eles consideraram que, no momento em que fizessem um mutirão, poderiam atrair até mesmo os integrantes do Centro para a atividade, promovendo a integração dos grupos fragmentados. Os presentes decidiram ainda “tomar as rédeas” do processo, autogerindo-se, sem a necessidade de um facilitador, o que tornou simples a minha saída. Consegui sair da confusão, conseguindo conquistar/manter o respeito de ambos os grupos. Todos se mantiveram abertos para que eu continuasse a observar as reuniões e encontros. No fim, o saldo foi positivo, pois ambos os lados puderam ver que eu procurava agir de maneira neutra e livre de interesses. Acredito que toda essa experiência contou pontos para que eu conquistasse a confiança da comunidade. Nesse ponto, me lembrei de Heinberg, que alertava para os perigos de uma comunidade disfuncional: Intentional communities can be influential centers of social and artistic innovation (…). However, at their worst such communities can be as dysfunctional as any troubled family (…). If a group has strong authority figures whose opinions must be accepted unquestioningly, abuses of power are inevitable. A strong sense of group identity is often accompanied by feelings of superiority to outsiders. And while members may share high ideals, sometimes they merely convince themselves they are making a difference in the world while in fact they are fairly insulated from the rest of society and concerned mostly with the promotion and welfare of the group itself (HEINBERG, 2007, p. XIII). Estaria Itapeba passando pela síndrome messiânica descrita por Heinberg? Ou seria injusto de minha parte afirmar que eles estavam preocupados apenas com seus próprios problemas, ignorando inclusive outros moradores e vizinhos. Durante a fase de busca e escolha de um local para realizar minha observação participante, eu havia recebido o relato de um morador de uma ecovila em Santa Catarina com a qual eu havia entrado em contato. Seu desabafo parecia corroborar minha percepção sobre Itapeba: Bom dia Gabriel, moramos na ecovila X. Nossa ecovila está um caos total. Ninguém se entende e parece não haver o mínimo interesse em haver qualquer trabalho na busca de entendimento. Nos venderam uma ecovila, e um dos princípios básicos de uma ecovila é a administração ser participativa num formato de democracia profunda, e na prática é uma ditadura egoísta total. Eu estou revoltado e junto comigo estão alguns outros compradores que estão se rebelando. Na prática… ninguém está vivendo nessa ecovila fora a ditadora – ninguém aguentou conviver com ela. Estamos morando há 400m dessa ecovila, numa casa alugada. Lá mesmo… só fachada no site – tudo não se transformou em realidade (fora as construções que existem mesmo). Por essa condição não vemos a mínima disponibilidade de novos estudos. Não há com quem estudar, fora a “DONA” que vive sozinha isolada, estudando tudo e não praticando nada. Para traduzir nosso sentimento,…. “parece a síndica que se sente dona do prédio!” e inferniza a vida de todo mundo, porque só ela pode, só ela sabe, só ela tem razão, ela quem idealizou e por isso manda e os outros que obedeçam. Infelizmente não cremos que podemos ajudá-lo neste momento, porque não existe ecovila, porque pra ser vila precisa-se de pessoas e pessoas não existe lá (aqui) – é uma ecovila fantasma. Abraços e ficamos à disposição para qualquer dúvida. Falando especificamente das comunidades espirituais, Christian (2005) adverte que estes grupos parecem enfrentar mais conflitos estruturais do que a maioria dos casos. Os conflitos geralmente envolvem questões fundiárias, financeiras e concentração de poder. Ela atribui este fenômeno à falta de clareza, habilidade ou mesmo ausência de interesse por parte dos fundadores em tratar com questões que envolvam dinheiro, institucionalização e tomada de decisões. Chegou ajuda dos Orixás! Não restavam dúvidas de que estava observando conflitos entre um grupo estabelecido que detém o poder e um outro grupo que está insatisfeito. O grupo que detém o poder me parece agir de maneira calculista e manipuladora para atingir fins, apesar destes não serem puramente econômicos. Na verdade, entre as pessoas do Centro, incluindo Cristina, parece haver uma confusão entre os objetivos da empresa de ter lucro e os objetivos da comunidade de se desenvolver e ter uma existência ética. Um terreno fértil para observar a tensão entre racionalidade instrumental e racionalidade substantiva, sem dúvida alguma.