Existem certos termos, marcas e nomes que servem de elementos que rapidamente associamos a certos marcos definitivos na história de uma indústria.  Quando se vê a logomarca da HBO, a primeira conexão que fazemos é com séries que revolucionaram a televisão e reestruturaram toda a forma como essas produções eram feitas — os exemplos de evolução técnica e narrativa abundam: de Oz a Games Of Thrones.

Da mesma forma, basta ver juntos os nomes David Simon e George Pelecanos que o coração palpita quando lembra que foram esses dois rapazes de parcos recursos capilares os responsáveis pela quase melhor série de todos os tempos — o “quase” só existe porque The Sopranos está no meio de nós —, The Wire.

Por isso é de se esperar que quando a dupla resolve estar unida numa nova produção, o resultado deve ser aguardado com a mais alta expectativa.

Aí quando junta-se HBO e a dupla Simon e Pelecanos, sabe-se que decepção é uma alternativa fora de questão. O novo trabalho que surgiu daí essa junção não permite outra conclusão: The Deuce nasce obra-prima.

A série, que estreou ano passado, chegou quase despercebida e não causou nenhum alvoroço — exceto por aqueles que já conhecem Simon e Pelecanos e sabem do peso do selo HBO sobre o trabalho de ambos. O que é natural, até certo ponto, tendo em vista que a história que a dupla está interessada em contar não vai ser repleta de reviravoltas mirabolantes, não tem elenco infantil enfrentando monstro em mundos invertidos e nem roubos de banco onde os próprios bandidos produzem sua moeda. A fórmula aqui é outra.

Mergulhando na década mais conturbada dos EUA, os anos 70, The Deuce se volta para contar o surgimento da indústria pornográfica norte-americana. Enquanto na Europa a exploração audiovisual do sexo estava a todo vapor muitos anos antes, nos Estados Unidos, principalmente em Nova Iorque, o que ainda predominava era a prostituição aberta e direta no centro da cidade. É a partir dessa vida caótica que o enredo da série vai se desenhando.

O gancho inteiro está nos gêmeos Vincent e Frankie Martino, interpretados por James Franco — que está razoável no papel — e Candy, absurdamente interpretada por Maggie Gyllenhaal. Enquanto Vince está tentando ganhar a vida com a única coisa que sabe fazer, gerenciar bares, o seu irmão é um viciado em jogatina. É essa fusão que traz ao contato dos dois o mafioso italiano Rudy Pipilo (Michael Rispoli)  que administra os esquemas sujos de Manhattan. Nesse núcleo são apresentados os lances escusos que formam a nata da corrupção do lado mais famoso e que se capilarizam sutilmente pelos outros núcleos de personagens.

Já Candy é o vínculo que puxa para delinear o retrato da situação das prostitutas que precisam estar diuturnamente nas ruas sujeitas a todos os tipos de indivíduos e clientes. Esse é o núcleo que tem os contornos mais cruéis. Com exceção da própria Candy, todas as demais profissionais sexuais estão sob a tutela dos seus cafetões que as exploram de forma desumana e violenta, e o espectador vai mergulhando na rotina perigosa e absurda das ruas de Manhattan.

Com os irmãos Martino e Candy os demais personagens vão surgindo ao longo dos oito capítulos que compõem essa primeira temporada. O grande trufo de Simon e Pelecanos está justamente na organicidade que eles conferem a essa teia ampla de personagens, de como as histórias pessoais de cada um vão se cruzando, convergindo ou afastando-se sem com quem as fronteiras estejam de fato completamente demarcadas.

O ritmo não é frenético — talvez essa evolução lenta da temporada seja um indicativo do porquê da série ter passado “quase” despercebida pelo público brasileiro. O cuidado com o seguir da narrativa se reflete em todos os detalhes da produção. A direção é um ponto forte. O elenco é o aspecto mais impressionante de toda a série. Não existem pontas soltas, tirando algumas falhas ocasionais e escolhas que não fazem muito sentido ao mesmo tempo que não causam grandes impactos no arco narrativo da série.

Esse ritmo lento, pausado, paulatino é uma forma muito inteligente que os showrunners encontram para conseguir conduzir o emaranhado de tramas que se desenvolvem paralelamente sem perder a linha que costura todas os retalhos individuais numa colcha só.

A forma como resolvem abordar os problemas de uma Nova Iorque decadente se reflete na irretocável reconstituição da época. A reprodução de uma Manhattan dos anos 70 é espantosa. Nada foge da direção de arte. Para os  aficionados por detalhes, a série é um prato cheio. E aos que também se preocupam com as mensagens embutidas na narrativa, ela não falha em nada.

Ao retratar uma década de transição e completamente conturbada em termos políticos, éticos e morais, The Deuce não se permite engolir pelo recato do politicamente correto e entrega um cenário realista até o último fio de linha da roupa curta das prostitutas que colorem as calçadas junto com seus cafetões vestindo trajes bregas e chamativos.

Misoginia, o racismo, a corrupção das ruas e a institucional, homofobia, estão presentes em cada personagem, ao mesmo tempo que, atualizando as datas no calendário, refletem muito das reflexões que os anos 2000 fazem até hoje sobre esses problemas estruturais e sistêmicos.

A série não se perde no seu próprio tempo e nem se desvia dele. Essa primeira temporada foi um preparo para as próximas. Nada é adiantado de bandeja para o telespectador. É preciso calma e entender as minúcias do que e de quem foi apresentado nesse primeiro ano. A indústria pornográfica não surge com intensidade, o seu parto não é completamente apresentado. Somente de forma indireta, apesar da série acelerar os eventos nos episódios finais.

The Deuce nasce com ares de obra-prima. Não tem como fazer projeções para as próximas temporadas e saber como as narrativas iniciadas nessa primeira vão se desenvolver, mas não há dúvida de que a base foi bem construída e que os construtores desse edifício narrativo entendem bem do riscado. Agora é esperar e ver nascer mais uma grande série pelas mãos desses gênios.

 

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