Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr Se existe uma coisa que eu sinto vergonha em admitir é que até pouco tempo atrás eu conhecia nada sobre Bukowski. Mesmo no Brasil, país onde muitos nem sabem quem são autores geniais Dostoievski, Dumas e Emily Brönte, não deixa de ser uma falha minha. Falha que já estou suprindo lendo as obras dele. A começar por Misto-Quente, um dos melhores romances norte-americanos do último século. Alguns escritores iniciantes (muitos, na verdade) costumam explorar em seus primeiros livros o fantástico ou a ficção científica. Muitos não percebem que várias vezes o melhor caminho é falar sobre a realidade do dia-a-dia, do que já se conhece. Não que eu seja contra uma abordagem mais imaginativa, que fique claro. Sou fã de escritores que alcançarem resultados fabulosos nestes gêneros, como Tolkien, Douglas Adams, Neil Gaiman e William Gibson. O problema é que o escritor tem que ser muito talentoso e esforçado para criar algo sem encontrar uma referência, fazer ligações com o nosso mundo, não é qualquer um que alcança bons resultados. Bukowski percorreu o caminho inverso. Toda a sua obra é recheada de histórias autobiográficas. Ele escrevia tão bem que é impossível descobrir na leitura o que é ou não é ficção ou se tudo o que ele escreveu foi de fato realidade. Isso porque o tom do texto é de uma sinceridade absurda, ele nem mudava o nome das pessoas nos livros e ainda fazia duras críticas e piadas maldosas sobre elas. Enquanto a maioria dos escritores americanos explorava temas que pouco tinham a dizer às pessoas comuns, Bukowski foi ganhando notoriedade ao longo da sua vida por obras que se aproximavam do cotidiano dos leitores. Enquanto se embriagava Buk, ou Velho Safado, apelidos pelos quais é conhecido ao redor do mundo, escrevia compulsivamente as obras mais subestimadas da literatura. Ele é ainda visto por muitos como escritor de segunda linha, menor. Não só por alguns leitores, mas até por críticos. Não poderia haver maior injustiça. Se no seu começo como escritor se dedicava à poesia, foi com o divórcio que criou o personagem que o tornaria famoso, seu alter-ego Henry Chinaski. O primeiro livro onde apareceu foi Confessions of a Man Insane Enough to Live With the Beasts, de 1965. Depois deste ainda daria as caras em mais quatro livros, além de histórias curtas e poemas. Mas o livro que talvez seja o melhor de todos e uma base para se entender toda a obra de Bukowski é sem dúvida Misto-Quente. É por lá que descobrimos mais detalhes da vida de Chinaski e compreendemos porque ele se tornou a pessoa que é. Curiosamente, o livro só foi escrito em 1982, depois de quase vinte anos do lançamento de Confessions. “Estávamos todos juntos nisso. Todos juntos num grande vaso de merda. Não havia escapatória. Todos desceríamos juntos com a descarga.” Em Misto-Quente acompanhamos a história pelas palavras de Henry Chinaski, um garoto alemão que se muda para os bairros pobres de Los Angeles com apenas três anos de idade. O livro segue até o início da sua vida como adulto. No começo tudo parece muito solto, apenas lembranças de infância sem ligação entre si, mas percebemos o significado das passagens e o que ele queria acrescentar com cada uma delas. Quando Chinaski começa a falar sobre a sua vida a primeira impressão é de ela é um inferno. Seu pai é um sádico que o espanca sem o menor motivo pela mera satisfação de vê-lo sofrer. A mãe é ignorante, afirmando que o pai sempre está certo. Na escola é perseguido pelos colegas e sofre preconceito por todos os lados. O comportamento do pai o fez odia-lo com todas as suas forças. Em sua cabeça um pensamento recorrente, oriundo de Fiódor Dostoievski: “Quem não quer matar seu pai?” Essa raiva está presente em toda a obra de Charles Bukowski e até na dedicatória de Misto-Quente: “Para todos os pais.” Já pela sua mãe não nutre amor nenhum. Se dependesse dele, ficaria com a casa só para si, aproveitando sua solidão, sem precisar falar com mais ninguém. “Escutei um barulho ecoando para fora do banheiro. Fechou a porta atrás de si. As paredes eram lindas, a banheira era linda, a pia e a cortina do chuveiro eram lindas, e até mesmo a privada era linda. Meu pai se fora.” “Eu devo ter sido adotado” Provavelmente, quem nunca leu Misto-Quente está pensando que ele seja um relato amargo. Longe disso, me peguei rindo várias vezes durante a leitura. Chinaski não se fazia de coitadinho, ele sacaneava todo mundo a sua volta, com seu famoso sorrisinho de escárnio. Alguns trechos são mais hilariantes que livros que se dão ao trabalho de fazer seus leitores rirem. Mas há os momentos tocantes e melancólicos também, mas certamente Bukowski é bem conhecido pelo seu humor. São trocadilhos, comentários sarcásticos e trechos em que ele ironiza a sua situação difícil. Ele não perdoa nada nem ninguém. Há trechos impagáveis como quando lhe explicam o que é fuder, catecismo ou masturbação. Ainda há uma cômica e aparente depravação em alguns personagens, num estado de sexualidade latente, além de alguns trechos “preconceituosos”. “Os chineses são amarelos porque bebem xixi em vez de água… …As mulheres são apenas bucetas… …Só retardados acreditam em Deus.” “Era difícil para mim acreditar. Minha mãe tinha um buraco e meu pai um pinto que espirrava suco. Como eles podiam ter coisas como essas e continuar caminhando como se tudo fosse normal, conversando sobre banalidades, e então fazem aquilo e não contam nada para ninguém? Sentia realmente vontade de vomitar quando encarava a idéia de ter começado a partir do suco do meu pai.” “Essa coisa de trepar era bacana. Dava às pessoas mais coisas em que pensar.” Mas Misto-Quente não é só um livro engraçado. Henry Chinaski não tem nenhuma perspectiva de futuro e não consegue emprego nem como lavador de pratos. É alguém que não consegue aceitar a forma como a sociedade se comporta e que acha que nunca será feliz, casará ou terá filhos. Talvez virasse assaltante de bancos, a vida era uma só, afinal. Vivia num mundo fedido, onde somente os corpos das mulheres eram bonitos, mas só de longe. De perto, quando se ouviam as coisas que elas falavam Hank sentia vontade de se enterrar no chão. A linguagem também é incapaz de agradar a todos. Fico imaginando como foi a reação dos puritanos que não aguentam ler um “fuck” quando se depararam com a obra de Bukowski. Escrita sem pudores, com todos os caralho, porra, foda, trepar, merda, boceta, puta, cu e bosta que você possa imaginar. Só um escritor que estivesse pouco se lixando para as regras usuais da literatura poderia fazer isso. É como um grande FODA-SE para tudo. Até por isso Buk foi considerado como um escritor maldito, o último a receber a “honra”. Alguns leitores se limitam a esse palavreado sujo e não percebem o quanto ele deixa detalhes implícitos e profundos nas suas linhas. Uma coisa que hoje talvez passe despercebido, mas são momentos que dizem muito mais do que os meros caracteres impressos no papel, demonstrando que Misto-Quente é sim uma obra-prima. A adolescência em Misto-Quente não é falsa e artificial como em Malhação. Os jovens se comportam como são na realidade. Sacaneiam uns aos outros, contam piadas sujas, bebem e fumam, falam palavrões, enrolam professores e discutem com a maior importância sobre a aluna mais gostosa da sala. São coisas que a maioria dos adolescentes homens fazem ou fizeram. Até o maior objetivo de vida de todo adolescente está lá: perder a virgindade. Durante o livro, Hank encontra duas válvulas de escape. A bebida, a ponte para suportar sua vida medíocre, que sem ela, como disse, cortaria sua garganta, portanto decide passar o resto dos seus dias embriagado. E passou mesmo. Procure uma foto de Bukowski no Google para você ter uma idéia. Também vemos até como Chinaski descobre um talento. Certo dia sua professora de Inglês manda a turma assistir um discurso do presidente. Ele sabe que não pode ir, era de dia aparar a grama e sabia que apanharia ainda mais se não fizesse isso. Então ele inventa um discurso e entrega para a professora de qualquer jeito. Ainda que soubesse ser um discurso inventado, a professora lhe dá dez e lê em voz alta a redação para a turma. Então ele percebe uma coisa fundamental da sociedade: As pessoas desejam mentiras. A estrutura semiautobiográfica faz de Misto-Quente um livro importante para se compreender o passado. Ver como as pessoas reagiram à Grande Depressão, a onda de desempregos e conseqüentemente a de suicídios, além das guerras. “O que eram médicos, advogados, cientistas? Apenas homens que tinham permitido que sua liberdade de pensamento e a capacidade de agir como indivíduo lhes fosse retirada.” Eu me pergunto se todos são capazes de compreender Misto-Quente e a visão de mundo amarga de Henry Chinaski. Ao menos esse não é exatamente o tipo de livro que as pessoas que gostam de final feliz iriam querer ler. A visão aqui é de pessimismo, negatividade, sem sombra de esperança no futuro. Mas quem sabe? Afinal Chinaski é o alter-ego de Bukowski, que morreu aos 74 anos, como uma celebridade, convivendo com artistas e sendo a leitura favorita de pessoas que nunca haviam encontrado prazer nas páginas de um livro. Até herdeiros do seu estilo surgiram, no cinema e na literatura, sem, porém, superá-lo. No fundo, no fundo, Henry Chinaski deve ter tido um final feliz. Misto-Quente Autor: Charles Bukowski Páginas: 481 Preço: R$ 22,00 Nota: 9,5 COMPRE AQUI: Saraiva