Escrever não é difícil. Não que seja fácil, muito menos simples. Principalmente escrever bem. Mas é irrefutável que qualquer pessoa devidamente alfabetizada é capaz de escrever de modo compreensível e satisfatório, embora estas sejam raras. Entretanto, a parte que trata simplesmente da qualidade do texto em termos de clareza e coesão não é a essencial. E, por incrível que pareça, nem aquela que se refere ao prazer da leitura.  A questão na qual “o bicho pega” (não somente na literatura, é lógico) é o conteúdo.

Diariamente somos devastados por tempestades de informação, o que por um lado é ótimo, mas apresenta alguns efeitos colaterais bem desagradáveis. Em geral a quantidade é associada ao detrimento da qualidade, pois a maioria dos emissores de informação, além de não ter conteúdo mesmo, não tem bagagem, nem base, nem nada em que se apoiar para desenvolver uma ideia que os leve a produzir algo relevante. Isso se deve, assim imagino, principalmente ao fato de que a produção de conteúdo relevante se relaciona muito com as experiências do emissor.

Ter algo para contar está intimamente relacionado ao fato de se ter vivido “algo”, mesmo que não necessariamente para narrar tal experiência do modo como aconteceu. Certas experiências estimulam idéias que podem se desenvolver para obras de ficção que tenham algo a dizer. Seja alguém que levou muita porrada nessa vida, ou que simplesmente teve azar, sofreu traumas, ou pessoas que decidem sair dos trilhos, buscar experiências fora do seu quadrado, seja em busca de fontes de inspiração para produção artística ou qualquer razão que seja.

Alguns vão para a “natureza selvagem”, outros buscam aventuras radicais, alguns desses se acidentam nas referidas aventuras radicais, determinados indivíduos ainda dão um jeito de prender o braço em uma pedra e ficar lá por dezenas de horas e por aí vai: não há limites, regras ou controle para onde ou como se deve ir ou onde isso vai dar.

Aliado a um admirável senso de justiça e revolta com a realidade, o que mais diferenciou Eric Arthur Blair, mais conhecido como George Orwell, foi sua coragem de decidir abandonar o conforto da vida com sua família burguesa para viver como um mendigo no final dos anos 1920.

Na pior em Paris e Londres, publicado no Brasil em 2006, pela Companhia das Letras, é uma espécie de diário dos anos em que Orwell, nos moldes de Jack London, observou e, aos poucos,  passou a fazer parte dos mendigos de Londres e, posteriormente, de Paris. Método conhecido no Jornalismo como imersão, e também enquadrável como Jornalismo Literário e Jornalismo Gonzo, o relato de Orwell é leve, divertido e até engraçado, apesar de todas as coisas duras, tristes e complicadas contidas nele. Primeiro observando os mendigos, até aos poucos juntar-se a eles, mudando de albergue em albergue, dormindo em lugares sujos, comendo pouco e muito mal, vivendo na constante companhia de insetos nojentos e ratos (um de seus piores pavores) e, em Paris, trabalhando como lavador de pratos em um hotel de luxo, função na qual era explorado, humilhado e onde viu como funcionam hotéis e restaurantes caros em Paris: quanto mais sujo melhor – e mais caro.

 

A árdua experiência foi importantíssima para aguçar os questionamentos de Orwell a respeito do modo como a sociedade (ainda) funciona. Além de ser munido de um grande poder de raciocínio e lá sua prévia pitada de revolta com todo o sistema, coisa que se agravou ainda mais depois de viver na base da pirâmide, entre os mais azarados, desprezados e mal tratados.

Ao final do livro, sempre bem humorado, Orwell dá sua conclusão sobre a experiência:

Nunca mais vou pensar que todos os vagabundos são patifes bêbados, nem esperar que um mendigo se mostre agradecido quando eu lhe der uma esmola, nem ficar surpreso se homens desempregados carecem de energia, nem contribuir para o Exército da Salvação, nem empenhar minhas roupas, nem recusar um folheto de propaganda, nem me deleitar com uma refeição em um restaurante chique. Já é um começo”.

Embora seja incomparável com vivenciar a experiência, a leitura em si serve muito bem para revoltar o leitor com todas as dificuldades e injustiças que vemos e vivemos diariamente e nos lembrar de que elas estão aí em qualquer lugar do globo e de que são praticamente atemporais. E também com os restaurantes e hotéis de luxo de Paris.

Além de ser enriquecedor como conhecimento sobre o modo com as coisas funcionam, o livro também dá um belo vislumbre sobre a trajetória galgada pelo autor de obras célebres como Revolução dos Bichos e 1984, duas das mais importantes da literatura mundial.

Na pior em Paris e Londres (Companhia das Letras, 2006)

Autor: George Orwell

Páginas: 256

Nota: 10

 

 

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No Comments

  1. Gabriel Dread

    1 de março de 2012 at 00:17

    Dos 3 livros do George Orwell citados, eu só não li o que você resenhou. Uma falha que pretendo corrigir muito em breve.

    Muito boa resenha, me deixou com mais vontade ainda de ler essa obra do gênio…

    Abração

    Reply

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