Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr “Pense num homem de capa preta. Com caninos grandes. E um sotaque engraçado Agora esqueça a capa, os caninos e o sotaque engraçado. Esqueça tudo o que é engraçado.“ Guillermo del Toro é um diretor de talento transbordante, guardião de um universo próprio e único em seu subconsciente. E sempre consegue mostrá-lo de formas inéditas. Como em seu primeiro longa, Cronos, sobre o terror e o vazio da imortalidade. Ou em A Espinha do Diabo, onde a Guerra Civil espanhola impôs à população uma espécie de não-existência. E Labirinto do Fauno, em que mesmo contando uma história fantástica, com faunos e outra criaturas bizarras foca o lado humano. Os seres nada mais são que frutos da imaginação de uma menina para tentar suportar o horror do fascismo. Por isso quando soube que ele ia lançar um romance sobre vampiros minha expectativa foi gigantesca. Afinal, Del Toro sempre teve afinidade com o horror e, como ele mesmo diz, é dono orgulhoso de uma coleção de livros, filmes, brinquedos e outras bugigangas de vampiros. Mas não aqueles vampiros que se apaixonam por uma donzela, ou seja, seu próprio alimento, por mais paradoxal e absurdo que isto seja (É com você mesmo, Crepúsculo!). Ele é fã daqueles mortos-vivos repulsivos que se erguem das covas durante a noite na ânsia de satisfazer a mais trivial das necessidades. De comida. Sangue. Aparentemente, o único empecilho para que Noturno fosse pelo menos um bom romance era o fato de del Toro nunca ter se aventurado como escritor. Seria um empecilho, se um autor já testado pelo público não estivesse na empreitada, Chuck Hogan (Ainda não pude conferir seu trabalho solo). Reunindo a capacidade visual e psicológica do diretor mexicano à experiência de Hogan não podia sair um livro ruim daí. Bem, não podia… Mas Noturno, a primeira parte da Trilogia da Escuridão, não é tudo o que eu esperava. E eu esperava muito, é verdade. Ele não foi o início de um marco. Um novo caminho para o gênero dos vampiros como poderia ter sido. O divisor de águas de um arquétipo que quase sempre é mostrado da mesma forma. Não me leve a mal. Não estou dizendo com isso que o livro é uma bomba. Se fosse talvez não me esforçasse tanto para elaborar esse texto. É um romance envolvente, com grandes passagens, mas alguns detalhes acabam prejudicando o resultado final. Mas vamos pelo começo, por enquanto. Dissecarei mais abaixo as virtudes e defeitos de Noturno. Tudo teve início com um fenômeno inesperado no mundo do entretenimento. Enquanto o cinema se afogava cada vez mais numa crise de criatividade, com seus remakes, reimaginações, reboots, adaptações e seqüência infinitas, as emissoras americanas buscavam um novo formato. As séries passaram a explorar caminhos inéditos e a ter roteiros mais complexos e elaborados. Um exemplo é House, que por fora é uma série médica, mas, analisando bem, é uma série de investigação que se passa num hospital. Logo essa qualidade começou a atrair astros consagrados do cinema, do nível de Steven Spielberg e Tom Hanks e a lançar programas muito superiores a muito filme por aí. Certamente que um nome como Guillermo Del Toro, cedo ou tarde, também se interessaria por essa mídia promissora. Ele chegou a apresentar o projeto de uma série de TV, que seria aceita pelos executivos do canal com a seguinte condição: O de mudar o enfoque da série para uma comédia. Acho que não preciso dizer qual foi a resposta de Guillermo del Toro. Isso foi em 2005. Cerca de um ano depois ele contatou o premiado escritor de thrillers Chuck Hogan para fazerem da história uma série de livros. O resultado é que Noturno se transformou em um dos livros mais cinematográficos que já li, talvez só perdendo para As Ruínas de Scott Smith (romance de horror que se sairia melhor se focasse apenas a situação extrema dos protagonistas e não em uma planta altamente desenvolvida e macabra.) “(…) os crucifixos e a água benta? Produtos de sua época. Frutos da febril imaginação irlandesa de um escritor vitoriano e do ambiente religioso da época.” A verdade é que Guillermo del Toro faz cinema até em livro. Algumas passagens parecem saídas de um roteiro. Há cenas de ação e terror vibrantes como também há uma série de clichês irritantes que só o cinema proporciona tão bem. O casal que você sabe que vai se formar no final, o personagem que serve de alívio cômico, o desastre pronunciado que nenhuma autoridade dá fé até que seja tarde demais (quem já viu 2012 ou O dia depois de amanhã sabe bem do que estou falando). Os personagens pouco visualmente descritos para caber a maior quantidade possível de atores e até mesmo frases de efeito. Não à toa muitos terminam de ler a obra se perguntando que atores farão os personagens numa adaptação que pra eles é quase certa. Entretanto, o livro não é todo cinematográfico. Noturno, em vários momentos é pura prosa. E das boas! Como quando finalmente acontece o eclipse solar (o narrador fica uma página nos explicando que na realidade o nome correto é ocultação), e é mostrado como cada personagem reage a ele, um presságio sombrio do que virá em breve. Ou a lenda do Sardu, com um tom que sugere uma lenda, mas que de fato aconteceu. Sugere o velho ditado de onde há fumaça há fogo. Que por trás de todo mito existe um pouco de verdade. Ou a passagem que nos lembra de quão sórdida a humanidade pode ser, no período em que Setrakian lutou por sua vida em um campo de extermínio. São momentos que destoam do restante do clima do livro e que mostra que Noturno poderia ser um grande livro, daqueles para guardar na lembrança como um dos melhores romances a explorar o arquétipo do vampiro. O avião 777 pousa no aeroporto JFK aparentemente morto: está completamente desligado, às escuras e, nenhum dos passageiros e dos funcionários dá, literalmente, sinal de vida. Com a possibilidade de um ataque terrorista iminente a polícia, o corpo de bombeiros e o Centro de Controle de Doenças são contatados. Mal sabiam eles da existência de terrores incompreensivos e antigos que se escondiam lá dentro. E que a tripulação estava completamente morta. Mas não morta no sentido em como conhecemos. Mesmo com um variado prisma de personagens ficamos rapidamente sabendo quem são os protagonistas. Eph e Nora, médicos do Centro de Controle de Doenças, que vão pouco a pouco a descobrir estranhos sintomas nos cadáveres do avião. E Setrakian, um velho e impetuoso professor que se dedica há anos a encontrar e eliminar o Mal que agora ameaça extinguir a raça humana. Reuniu artilharia pesada, conhecimentos e coragem para a hora da luta final. O Van Helsing que abre as portas da nossa percepção e prova o que parece impossível. E de certa forma é muito mais crível que o personagem de Bram Stoker. Os motivos da sua entrega, mesmo sacrificante sobre todos os aspectos, é muito mais crível. O tipo de personagem em que realmente acreditamos ser capaz de aniquilar uma Coisa que é praticamente um deus. Nem preciso dizer que é o meu personagem favorito no livro. “Eles sempre estiveram aqui. Fazendo ninhos e comendo. Em segredo e na escuridão” “É da natureza dos mortos-vivos atormentar os vivos.” A gama de personagens vai encolhendo conforme a infecção se propaga. Cada um tem sua própria personalidade, crenças, linguagens e defeitos. Cada personagem é distinto um dos outros e reage de forma diferente à doença. Não se perde tempo com classificações bobas e infantis como bom e mau. O ser humano é muito mais complexo que isso. Até o vilão da história tem seus próprios motivos para cometer as suas atrocidades. Não há espaço para julgamentos morais. Cabe ao leitor julgar o que ele considera certo ou errado. “A maioria das pessoas não sabia o que era marcar a existência com um alvoroçar de cada vez. A boa saúde era um presente era um preço recebido ao nascer e a vida uma série de dias a ser ultrapassados. Eles não conheciam a proximidade da morte. A intimidade da escuridão final.” Por conta da demora no lançamento Noturno acabou ficando atrasado em relação à Crepúsculo e a Diários de Um Vampiro, sendo tratado como mero oportunista da última onda de popularidade desses seres que fascinam e amedrontam gerações. Não poderia haver maior injustiça. Os vampiros de Hogan e Del Toro não têm absolutamente nada em comum com vampiros que frequentam escolas em vez de curtir um sanguinho. O que estou dizendo? Eles são totalmente diferentes do que se convencionou dessa criatura nos últimos dois séculos. Esqueça das figuras fortes de Drácula e Lestat por enquanto. Os monstros (eles merecem ser chamados assim) não são aristocráticos e sensuais, nem capazes de se transmutar em animais. Cruzes e água benta são meras superstições. Eles não precisam de convite para entrar. Entram e pronto! Fazem sua boquinha. Um lanche rápido. Eles guardam resquícios das antigas lendas dos bebedores de sangue que existem em todas as regiões do mundo. Mortos-vivos sedentos que erguem-se das covas durante a noite. Um caminho pouco explorado por escritores nos últimos dois séculos. Mas são os vampiros como realmente seriam se existissem no nosso mundo e não no fantástico mundo da ficção e na mente de Bram Stoker ou Anne Rice. E para isso todos os detalhes são mostrados. O passo-a-passo da dolorosa transformação, o funcionamento do organismo, fraquezas e forma de contágio. É, isso mesmo que você leu. O vampirismo aqui é uma patologia, um vírus extremamente perigoso. Uma praga que ameaça se espalhar pelo mundo em poucos meses. Uma mordida ou o contato com fluxo corporal e já era. Começam todos os sintomas capazes de fazer qualquer fanático pensar duas vezes antes de dizer que queria ser um vampiro. Só um exemplo mais imediato: seu órgão genital apodrece até cair. “O sistema corporal é consumido e transformado. O vírus toma conta. Eles já não respiram. Sorvem o ar, meramente como um reflexo residual, não se oxigenam mais. Sem função os pulmões acabam murchando e são readaptados.” “Já antevia o futuro: famílias despedaçadas, aniquilação, um apocalipse de agonias. A escuridão reinando sobre a luz. O inferno na terra.” Os infectados regridem a estados animalescos, selvagens. Agem em bandos, espalham o vírus e se enterram sob a terra durante o dia. Donos de uma sede quase insaciável de sangue, olfato e audição apurados e sensor térmico, características para fazem deles os maiores dos predadores. E evoluem. Tornam-se mais poderosos e organizados a cada dia. A única coisa que os difere completamente de feras é a obediência que prestam ao criador, ao Mestre. Um ser de ordem superior que está no mundo desde os seus primórdios. Um ser comparável a um deus, tão poderoso que nem nos considera dignos de ser considerados adversários. Apenas alimento. Como se o mundo fosse um grande McDonald’s em liquidação. Noturno é o típico Best Seller que educa, bastante comum nos Estados Unidos. Em parte isso talvez se justifique pelo fato de os americanos adorarem saber como as coisas funcionam. O problema é que Hogan e Guillermo Del Toro não conseguem fazer isso como Chuck Palahniuk e Dan Brown (não sou fã o autor de Código da Vinci, mas ele insere curiosidades na trama como poucos). Em alguns trechos o ritmo de leitura tem que ser interrompido, para que um detalhe ou outro seja explicado. Modo de vida dos ratos, funcionamento de Centro de Controle de Doenças, propagação de epidemias, entre outros tantos. Às vezes funciona à perfeição, às vezes não. “Nos EUA, um grande número de mortes naturais têm causas inexplicáveis, e cerca de setecentos por ano são levados ao Centro de Controle de Doenças para que sejam feitas mais investigações.” “Cortar os pulsos é um dos métodos de menos eficientes para se cometer suicídio, com uma taxa de sucesso inferior a cinco por cento. É uma morte lenta e dolorosa, devido à estreiteza do antebraço e ao fato de só ser possível cortar um pulso: um corte profundo secciona os nervos, inutilizando aquela mão.” Aí chegamos a outro ponto relevante. Já faz muito tempo que o arquétipo dos vampiros, um dos mais utilizados pelo horror, não se limita apenas a este gênero. O monstrão virou desculpa pra trama de romance escolar. E em Noturno embora vários momentos sejam eficientes em se tratando de horror, se percebe que ele não é isso. Pelo menos não o foco de boa parte do primeiro livro da Trilogia da Escuridão. É uma série policial, um grande CSI, como os próprios autores curtem dizer. Eu até consigo enxergar os closes dos órgãos durante as autópsias. Só mais perto do final do romance vemos os protagonistas tomando os rumos esperados: formando o grupo para exterminar vampiros, assim como Van Helsing e Jonathan Harker também fizeram, e também Ben Mears, Mark Petrie e seu bando em A Hora do Vampiro de Stephen King. A grande diferença é que eles não lutarão sozinhos. Não vai ser como na maioria dos livros, onde um vampiro faz o que quer e só meia dúzia fica sabendo do fato. O mundo inteiro estará sabendo por causa de um detalhe de Noturno que muitos livros deixam passar batido. Ele se passa no século XXI. As pessoas conversam entre si por Webcam, têm IPhones e, o que possibilita tudo, fazem upload de vídeos no YouTube. O que séculos antes ficaria restrito ao conhecimento de alguns poucos, se espalha pela internet em nível mundial. E não é só isso. As pessoas também convivem com o trauma pós 11 de Setembro dos atentados terroristas e sofrem com a Crise. O trauma é ponto forte no enredo. Estamos em Manhattan afinal. No coração onde tudo aconteceu. A cidade em que os habitantes ainda lutam para superar o crime e continuar suas vidas. Curar as feridas, deixando as cicatrizes na memória de povo e da história. Existem muitas formas de se classificar uma história de suspense/terror. Uma das simples e que mais gosto de usar é a do horror implícito e a do explícito. Não preciso dizer que o implícito costuma ser mais interessante em termos de história. Nada é dito abertamente, tudo é sugerido. Nossa imaginação faz todo o trabalho. Um bom escritor sabe que a imaginação sempre cria coisas mais terríveis que um monstro de 30 metros ou de 300 metros. Nossa mente sempre tende para o pior lado. O único defeito disso é que quando finalmente se revela o que está dentro da casa, ou por trás da porta, o escritor tem que ser bom para não decepcionar o leitor. Já o horror explícito é onde o monstro é apresentado rápido, com riqueza de detalhes. H. P Lovecraft, autor responsável por muito do que se viu no horror no século XX, é o maior nome desse estilo. Mas ele nunca escancarou a porta. Um dos poucos a fazer isso e ainda ter um resultado positivo foi Bram Stoker em Drácula. Não só conhecemos o vampiro, como sentimos até certa familiaridade com ele. Entramos em seu covil, sabemos seus hábitos, suas forças e fraquezas. E Noturno conseguiu recriar isso! Os vampiros são mostrados por completo. Chegamos a sentir que estamos dividindo as tocas com um deles, tamanho o conhecimento que adquirimos sobre estas criaturas. “Dieter Zimmer, um jovem oficial. No campo era um verdadeiro sádico, que se gabava de engraxar as botas toda noite para retirar a crosta de sangue judeu. Agora ele ansiava por esse sangue…” Mas os vampiros não são o único tema do livro. Ele também foca o pavor a epidemias, a falta de segurança. Critica duramente o Governo Americano e seu sistema de saúde ineficaz. Ridiculariza a polícia, que deixa passar os piores criminosos na ânsia de prender negros e mexicanos sem motivo algum. Além de mostrar que a humanidade pode ser pior que os infectados. Estes fazem porque não têm escolha. Já muitos de nós… Considere Noturno apenas como uma introdução da Trilogia da Escuridão. Milhares de questões ficam em aberto e o livro acaba quando o principal acontecimento da série, a guerra entre os vampiros antigos, ainda está prestes a estourar. Num tempo onde os vampiros se comportam como adolescentes, quando têm a vida inteira pela frente, as criaturas de Chuck Hogan e Guillermo Del Toro ainda permanecem como um dos melhores livros dos últimos anos sobre o tema. Autores: Guillermo del Toro & Chuck Hogan Editora: Rocco Páginas: 464 Nota: 7,0 Compre Noturno no Submarino por apenas R$46,50!!