Eu vivo o terror desde que me conheço por gente. Cresci amedrontado com a idéia de que um monstro poderia estar à espreita atrás da porta. Da certeza de que se fosse a um cemitério os mortos começariam a ser erguer dos túmulos, um por um. A desconfiança de que a qualquer momento poderia surgir um assassino serial pirado com uma serra elétrica e realizar uma matança e que um vampiro conspirava contra a humanidade na Transilvânia. De olhar no espelho e ver refletido ali um espírito. Isso me acompanhou por tanto tempo que apenas pra urinar no banheiro no meio da madrugada eu precisava ligar todas as luzes da casa.

O que poucos sabem é que nos tempos antigos o gênero terror (hoje sempre popular, independente da mídia) simplesmente não existia. O sobrenatural era tão normal quanto o natural, quanto o Sol nascer pela manhã e se pôr ao fim da tarde. As entidades eram sempre ligadas à religião ou à mitologia. Vampiros já existiam nos Vedas, Ulisses consulta os espíritos de Aquiles e seus companheiros em Odisséia, o Lobisomem era motivo de riso em Satiricon e Shakespeare se servia de espíritos e bruxas para representar a devassidão humana e agradar o público. Estes seres não eram vistos como ficção ou superstição e sim como pertencentes ao mundo real, com a garantia da vitória no final dada pela Igreja. O que se tornou costume também nos contos de fadas.

A própria noção de medo era diferente da de hoje. Era confundido com covardia. Os que tinham medo eram ridicularizados e a coragem era exaltada como a maior qualidade de um líder. De um homem. Os grandes heróis da literatura eram sinônimos de força, capazes de enfrentar os maiores perigos sem hesitar. Os reis e imperadores eram, ou faziam seus súditos acreditarem que eram, homens corajosos, sem temores. Mas já dizia E. Le-Roy Ladurei: “Sem o medo nenhuma espécie teria sobrevivido“. É o instinto que nos alerta do perigo eminente. Assaltados pelo medo, nosso organismo desperta forças inabituais. Corremos mais rápido e ficamos mais fortes.

Entre os séculos XVIII e XIX, esse quadro mudaria radicalmente. Surge a crescente causa na razão e na ciência, a descrédito da fé cega. O misticismo começa a ser associado à loucura e o ateísmo se transforma em um fenômeno ascendente. Estava aberto o caminho para o nascimento de um gênero que exploraria horrores já esquecidos há muito tempo e que daria origens a outros, como a novela detetivesca, a ficção científica (com o Frankenstein, de Mary Shelley) e o thriller de  terror ou espionagem: o gótico. Todo gênero advém de uma nova proposta que deu certo. O que faz sucesso e agrada o público é reaproveitado, até surgir um novo gênero. O texto definidor foi “O Castelo de Otranto”, de Horace Walpole, publicado em 1764. Muito do que se vê em muitas histórias de horror clássicas e modernas teve origem aqui. O castelo de incontáveis corredores e escadarias, a mocinha virginal e perseguida pelo terrível vilão, o anfitrião. Cabendo ao herói, cético, salvar a amada. Até mesmo essa estrutura não era completamente original. Nessa época choviam milhares de histórias de mulheres sendo salvas por um tipo forte e galante. Mas foi a primeira vez em que a história foi escrita de forma a despertar medo. Para ficar só com um exemplo mais clássico, a história do (obrigatório) Drácula tem praticamente todos esses elementos.

Foi aquilo, sem sombra de dúvida, que escancarou as visões negras cujo fim era mais profundo do que o inferno.

Entretanto o mérito não cabe inteiramente a Horace Walpole. Ele teve centenas de seguidores que desenvolveram o horror até o que ele é hoje. Alguns deles foram Matthew Gregory Lewis, Henry James, Mary Shelley, Robert Louis Stevenson e Edgar Allan Poe. Este último, um dos mais influentes escritores do século XIX, é considerado por muitos o maior autor de terror da história. Sua qualidade como escritor é inegável, mas talvez ele nunca tenha sido tão eloqüente quanto Howard Phillips Lovecraft. Americano, de saúde frágil, o autor se inspirou nas histórias góticas que tanto admirava, seus viscerais pesadelos e na sua capacidade de observar o comportamento humano que seu comportamento tímido e recluso lhe permitia. O resultado foram as obras mais marcantes e inovadoras do terror. Sua importância é tão grande que se faz sentir em livros e filmes clássicos posteriores. O próprio Stephen King, considerado rei do horror moderno (merecido), admite ter bebido bastante das características de Lovecraft para construir seu próprio estilo narrativo. H. P. publicou a maioria de suas histórias de forma não profissional e por isso, ao morrer, foi com a certeza de que sua obra estava assim fadada ao esquecimento. Por sorte, seus amigos mais chegados fundaram a editora Arkham House para publicar seu trabalho. Isso aconteceu também com o tema deste artigo, “O Caso de Charles Dexter Ward”, lançado 13 anos após sua morte provocada por um câncer de intestino.

É difícil explicar como a simples visão de um objeto concreto de dimensões mensuráveis poderia de tal modo abalar e mudar um homem; e podemos apenas dizer que certas figuras têm um poder de simbolismo e sugestão que agem de maneira assustadora sobre a visão de um pensador sensível e sussurram terríveis sugestões de obscuras relações cósmicas e realidades indescritíveis por trás das protetoras ilusões da visão comum.

“O Caso de Charles Dexter Ward” descreve a história como uma análise da loucura do personagem homônimo. Por isso a narrativa é fria, formada por teorias, cartas, depoimentos de pessoas envolvidas no caso. A proposta já era original por si só. A questão não é saber o que vai acontecer com Charles Ward. É como. Logo na primeira página a sua situação já é apresentada. Fora internado no hospício com uma aparência muito mais velha do que atestavam seus vinte e seis anos, como um idoso. A respiração e o funcionamento cardíaco tinham uma inexplicável falta de simetria. A voz sumira, limitando-se a um sussurro e a digestão era reduzida ao mínimo. A pele fria como a de um defunto e sua pele era áspera e frouxa. A sua loucura não tinha precedentes na literatura médica. Embora Ward sempre  houvesse sido um estudioso aplicado seu intelecto e capacidade mental ampliaram consideravelmente. Toda a sua memória sumira e seu conhecimento sobre o passado, mesmo para alguém interessado em antiguidades desde a infância, era mais do que impossível. Tão grande que só alguém que viveu em outra época poderia saber. Era como se tivesse se transferido para outro tempo.

Tudo começa quando o jovem Ward descobre por acidente ser descendente de Joseph Curwen, pessoa que vivera um século atrás e que até aqueles dias, décadas após sua misteriosa morte, fazia circular histórias e boatos pouco lisonjeiros a seu respeito. A partir disso começa a sua busca por cartas, anotações de diários, jornais, sua antiga residência e até mesmo pelo seu túmulo. O que aos poucos ele vai descobrindo mudará sua vida e a dos familiares para sempre.

Em outra linha narrativa fala-se um pouco sobre quem foi Joseph Curwen. Ele se muda para Providence, Rhode Island (cidade natal de Lovecraft) e logo se torna o maior comerciante da região. Sua presença é temida e não havia quem não tentasse manter pelo menos cinco metros de distância dele. Passavam-se décadas e ele parecia não envelhecer nem um pouco. Ouvia-se barulhos bizarros e gritos que não pareciam nada humanos vindo de sua casa à noite e incontáveis marujos que iam fazer entregas lá nunca mais eram vistos. Banquetes absurdamente grandes para ele e as três pessoas que moravam com ele chegavam todos os dias. Essas e outras excentricidades alimentaram as fantasias e os temores dos vizinhos por anos. Estes, afirmavam, com a convicção que só o terror mais profundo dá às pessoas, que ele era o verdadeiro responsável pelo roubo de cadáveres no cemitério da cidade e tinha pacto com o Mal.

Cartas pessoais e diários da época revelam também uma profusão de outras razões pelas quais Joseph Curwen era olhado com estranheza, temido e, no fim, evitado como a peste.

O início é lento, meticuloso, apenas pra definir a situação de Charles Ward, introduzir Curwen e dar indícios do que vai vir por aí. Não pense que você lerá uma trama em que só se descobre a verdade nas últimas páginas, coisa que muitos escritores hoje fazem pra manter a atenção dos leitores. Não, por volta da página 70 já se tem uma boa idéia do que vai acontecer. E mesmo assim, a obra não sai diminuída. Só aumenta o nosso pavor pela certeza do destino trágico de Ward. Lovecraft também não despreza a inteligência do leitor. Nem tudo é esclarecido abertamente. Pelo contrário, as informações são liberadas lentamente, pouco a pouco. E o leitor vai desvendando o mistério, como desvenda um intrincado quebra-cabeça. Mesmo assim talvez nem tudo fique perfeitamente claro à primeira leitura.

No mês de Agosto, esse trabalho tornou-se intenso e febril e, tanto pelo que dizia como pelo modo como se comportava, é de crer que tenha encontrado a chave antes de Outubro ou Novembro.

Uma das características mais famosas de Lovecraft não dá as caras aqui. O terror clássico geralmente não nomeava e descrevia bem a ameaça, o monstro. Era sempre a “Coisa“, o “Outro“, “Ele” ou “Algo“. Poucos escritores tentaram demonstrar mais esse Inominável do que Lovecraft em livros como “As Montanhas da Loucura” e “The Call of Cthulhu” (O Chamado de Cthulhu). Os monstros são detalhadamente descritos. Já em “O Caso de Charles Dexter Ward” (nome muito grande esse), tudo fica mais para a imaginação e sugestão, por não ser exatamente o foco do livro.

Os sais essenciais dos animais podem ser preparados e preservados de modo que um homem engenhoso pode ter toda a Arca de Noé em sem seu próprio escritório e fazer surgir a bela forma de um animal das cinzas deste a seu bel prazer, e, pelo mesmo método, dos sais essenciais do pó humano, sem criminosa necromancia, um filósofo pode fazer reviver a forma de qualquer ancestral falecido das cinzas em que seu corpo se tornou.

A verdade é que Lovecraft explora um dos nossos medos mais ancestrais em “O Caso de Charles Dexter Ward”. O desconhecido. O desconhecido que vem de outras eras, de tempos imemoriais, de bruxarias e de superstição. A forma como nós, pessoas modernas, duvidamos de tudo isso e passamos até a questionar nossa sanidade perante o inexplicável. Conforme as páginas avançam começamos a sentir isso. A tensão de estar em um local oculto sete metros abaixo no subterrâneo, no mais completo breu, enquanto um fedor acre e insuportável exala e se ouve um gemido sofrido e inumano logo abaixo de você. Ou a perspectiva de ficar preso lá, sem comida, água e luz, para sempre. Ou ainda ouvir uma voz cavernosa do outro lado da porta enquanto outra berra histericamente e todos os cachorros da cidade uivam de pavor. Lovecraft te faz experimentar o terror de uma situação insuportável e, ao fim da leitura, estar completamente seguro. Minto. Nunca se está completamente seguro depois de lê-lo. Há quem não consiga se levantar da cama à noite por medo de haver algo abaixo dela depois de ler Lovecraft. Fica marcado nos cantos mais obscuros da sua mente.

E no exato momento em que lhes era relatada esta ocorrência, brilhou no céu outro clarão que se pôs em movimento para sul, com o que todos ficaram ainda mais convencidos de que se encontravam no teatro de estranhos e inexplicáveis acontecimentos.

O “Caso de Charles Dexter Ward” é uma obra de ficção, mas Lovecraft usa elementos da sua realidade para compor a narrativa da maneira mais crível que podia. A ambientação é em sua cidade-natal, Providence. A cidade é descrita detalhadamente, o que pode ser maçante para quem não entende nada de arquitetura do século XVII e XVIII. O próprio Ward talvez seja um pouco baseado no próprio Lovecraft. O personagem era tão recluso, estudioso e com poucos amigos quanto o autor. O resultado, aliado ao caráter documental, é um romance escrito para parecer relatos de fatos passados e verdadeiros. Aí está a força do livro. De nos fazer esquecer que o contado ali é irreal.

Só um pouco antes do alvorecer é que um mensageiro, de olhar esgazeado, com as roupas impregnadas de um cheiro nauseabundo e desconhecido, veio comunicar aos combatentes a ordem de regressarem calmamente a casa e de nunca mais pensarem ou falarem a alguém dos acontecimentos daquela noite ou da existência dum homem chamado Joseph Curwen.

Não há muitas pretensões em “O Caso de Charles Dexter Ward”, além de ser uma pequena obra-prima do horror. Não há um pingo de romance (mal tem mulher no livro), o drama da situação de Charles é pouco explorado e quase não existem linhas de diálogos. O que quero dizer é que o foco aqui é o terror puro e simples. Absoluto. E esta obra é justamente uma das melhores portas de entrada para a pessoa que nunca teve contato com Lovecraft mergulhar no mundo sombrio do escritor. Depois de conhecê-lo, você vai desejar trancar bem as portas antes de começar a ler outro livro dele.

O Caso de Charles Dexter Ward

Autor: H. P. Lovecraft

Editora: L&PM

Páginas 176

Nota: 10

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No Comments

  1. Joelma Alves

    14 de maio de 2012 at 10:54

    Murilo, não sei se já disse aqui, mas gosto muito das introduções que você escreve para as resenhas, principalmente quando você localiza o livro historicamente, fica bem legal.
    Você falou dos seus medos na infância, influenciado pelos livros, ainda bem que eu não lia terror, porque se com os livros da Agatha Christie eu já me assustava com qualquer barulho…
    Eu comecei a ler O Caso de Charles Dexter Ward, mas não passei das páginas iniciais que você descreveu. Tive que parar para ler outros livros, e a química inicial também não apareceu (isso também aconteceu com A Tumba…) ainda, mas assim que eu acabar o que estou lendo retomarei a leitura, fiquei até mais animada depois de ler a resenha. Lovecraft é mais um grande autor que conheci graças aos seus textos no #NSN . =)

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    • Murilo Andrade

      14 de maio de 2012 at 12:55

      Dê mesmo outra chance ao Lovecraft. Depois que você engrenar na leitura vai ver que valeu a pena.

      E obrigado pelo elogio =D

      Reply

  2. ademar m. silva

    14 de maio de 2012 at 12:26

    eu preciso de historias,reais de draculA.

    Reply

  3. Max

    14 de maio de 2012 at 23:52

    Esse está entre um dos melhores contos do Lovecraft. Só perde para “Desafio do Além”, “Sussurro nas Trevas” e “A Cor que veio do Espaço”!!!

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  4. rafael beltrame

    18 de maio de 2012 at 23:34

    quando comecei, tb achei ele lento. mas logo a “coisa anda”, e devorei o livro em poucos dias (eu leio pouco e lentamente 🙁

    otima resenha, da vontade de ter uma revista sobre o assunto (com certeza, daria um belo artigo)

    Reply

  5. Tio Chocomalk

    18 de janeiro de 2013 at 15:53

    Simplesmente amo o livro
    Espero a um tempo pra me iniciar em Lovecraft
    e essa semana percebi que foi uma das melhores coisas que fiz. Geralmente num tenho tempo pra ler
    então sempre leio com pressa.
    Mas o desemprego atual me deu tempo de sobra pra me divertir e tremer de medo.

    ps.: comecei a ler ele durante uma “tempestade”
    NÃO recomendo USUHAUHAUHAUH

    nota 10 elevado ao nível Cthulhu !!

    Reply

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