Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr “Alguns membros do estudo realizado sugeriram omitir passagens relativas a impressões pessoais, mas o consenso final, após debates, fora que o mais próximo do verídico fosse mantido, e assim se fez. COMISSÃO DE ANÁLISE DO PASSADO – Ano 184. D.P.” Se você me perguntasse hoje quais são as minhas obras artísticas preferidas provavelmente ouviria em meio à lista nomes como 1984, (obrigatório pra qualquer leitor que se preze), Guia do Mochileiro das Galáxias, o eterno De Volta para o Futuro, Laranja Mecânica e Donnie Darko. Não é difícil perceber que eu sou admirador de uma velha e boa ficção científica. Um gênero capaz de obliterar todas as barreiras imagináveis do tempo e do espaço ao mesmo tempo em que consegue criar metáforas e alegorias poderosas sobre problemas da nossa sociedade e do mundo merece pelo menos a minha atenção. É o caso, por exemplo, do instigante Distrito 9, que com sua história repleta de alienígenas sitiados na África do Sul expõe o preconceito humano contra o que é diferente. Ou do primeiro Matrix, onde referências a desenhos japoneses, golpes de kung-fu, informática, literatura cyberpunk e filosofia permeiam uma trama intrincada que nos questiona se tudo o que vemos, tocamos e sentimos não passa de uma ilusão. Por este e outros motivos foi que acolhi com tanto entusiasmo o lançamento do romance Placebo da escritora carioca Paola Barros Delben. Não apenas por ser uma FC nacional, território onde ainda temos pouca tradição, mas também por seguir os passos trilhados por mestres da magnitude de Huxley, Orwell e Bradbury, criando uma das mais cruéis distopias. Se em 1984 a menor mudança na nossa respiração ou o mais íntimo dos nossos pensamentos já eram alvo de extrema vigilância por parte do Partido, no mundo de Placebo a humanidade se encontra tão agonizante que todas as formas de governo estão extintas e a maior parte da população exterminada. Uma praga de origem desconhecida se alastra velozmente, pondo nossa espécie em risco de extinção. Muitos dos poucos que escapam das garras da enfermidade são eliminados pelos próprios infectados, que retornam à vida em uma espécie de surto zumbi para matar todos os que verem pela frente. Uma situação de tamanha gravidade requer cuidados incríveis. Cidades são aniquiladas por bombas nucleares para conter, inutilmente, a contaminação. Doentes são eliminados friamente e sobreviventes isolados nas chamadas sociedades de plástico, cobertos da cabeça aos pés com roupas de proteção para evitar contato com o ar. Mesmo após milhões sendo gastos em pesquisas em todo o mundo nem mesmo a origem da doença consegue ser explicada. Na mente de muitos o fim da espécie já parece tão familiar quanto o fim dos dinossauros. “Nascemos para morrer, isso é um fato da vida tão concreto quanto saber que envelhecemos todos, que sempre que respiramos inalamos o oxigênio fundamental para nossa existência, nos oxidando e nos assassinando lentamente.” “Talvez contassem a história daquele dia muitas gerações futuras e é provável que meu nome fosse incluído, eu seria um mero figurante, Ângelo: um rapaz que registrou imagens de uma página triste da civilização humana. Eles não fariam pesquisas, não iriam querer corromper a reputação de ninguém que ajudara na transformação, o passado não importaria mais. Assim teria surgido a história de deuses perfeitos e inalcançáveis do nosso passado?” Embora escrito em primeira pessoa, a narrativa em formato de relato histórico contribui para criar um clima ainda mais angustiante e pessimista, como se fosse um dos últimos resquícios de uma civilização que há muito encontrou seu desfecho. Mesmo que se questione como um relatório historiográfico é capaz de explicitar reações que os personagens só expõem a si mesmos, na maior parte do tempo a técnica funciona muito bem. “‘Você está bem?’. Essa pergunta sempre me incomodou. As pessoas estavam habituadas a dizer ‘Sim, e você?’ de forma mecânica, automática. Então para que perguntavam? Se dissessem que não estava tudo bem já se afastariam e poderiam pensar que ali jaz uma pessoa com tendências depressivas ou um mal-educado que não aprendeu que não se deve dizer a verdade.” “Nunca me considerei viciado, não tinha compulsão por matar, é uma sensação mágica. Gostaria de ter podido recomendar a alguém essa experiência.” Se existe uma característica que diferencia Placebo de muitos dos romances distópicos esse é seu protagonista. Normalmente, o personagem principal desse tipo de história é sempre um tipo comum, que poderia ser um vizinho, amigo ou até nós mesmos. Aqui em invés de um Winston Paola prefere criar um dos protagonistas mais impossíveis de se identificar já feitos, a menos que você seja um psicopata. Podemos sentir muitas coisas por Ângelo, menos identificação. Aversão, repulsa e, surpreendentemente, até certa simpatia. Fascinado em provocar medo nas pessoas, ele coleciona uma série de vítimas que assassina apenas para saborear a sensação de horror em seus olhos. Como um típico serial killer realiza seus crimes como obras de arte, sentindo um indisfarçável desejo de ser descoberto, de obter reconhecimento pelo o que é capaz de fazer. Mesmo assim jamais há julgamentos. Nada de heróis e vilões, pessoas más e erradas aqui. Não estou dizendo que o personagem é triunfo em originalidade e profundidade. Não é. Psicopatas parecidos chovem no mundo da ficção e pouco sabemos sobre Ângelo pra termos um retrato realmente complexo dele. Entretanto, ele não deixa de ser um tiro certeiro da autora. A apatia dele é perfeita para dar o tom de distanciamento que a história exige, fazendo-o capaz de mostrar os momentos como de fato aconteceram, sem influência de sentimentos e ideias preconcebidas. Também é essa apatia, além de sua sinceridade absurda e mordaz que serve de motor para que Paola exponha a mensagem por trás do romance. A do quanto somos capazes de enganar a nós mesmos e aos outros, de ingerir nossa dose diária de ilusão. Pensamos ser capazes de entender as pessoas com e seus atos quando tampouco somos capazes de nos compreender. Do quanto podemos aceitar a possibilidade mais improvável apenas por ser a que mais nos agrada. “A maioria das pessoas não diz exatamente o que gostaria de dizer. Exibem a pessoa que gostariam de ser, a pessoa que acham que são e fazem e falam coisas que acham que os outros gostariam de ouvir.” “O medo sem dúvida é o mais belo dos sentimentos, quando chega aos olhos transborda o infinito.” Há não muito tempo atrás a literatura era tida como não muito diferente de simples artesanato. Comparado a um trabalhador em casa o escritor dispunha de suas ferramentas, a pena, o papel e a gramática, para exercer seu ofício. Em posse delas ainda era necessário mais que talento para se destacar na tarefa. Muita labuta e dedicação também eram essenciais para que a obra ficasse cada vez melhor talhada e bem terminada. E foi justamente esse trabalho que Placebo infelizmente parece não ter tido. Os detalhes do futuro do livro jamais são tão explorados quanto seu potencial permite e personagens interessantes são postos de lado rapidamente, sem que nem mesmo tenhamos o direito de saber seus destinos. As explicações dadas são sempre de forma didática, como se invés de um relato histórico feito por uma civilização evoluída o que estivéssemos lendo fosse um livro destinado a crianças. O texto também apresenta falhas na construção de algumas frases, ou confusas ou longas, o que por vezes torna a leitura um pouco cansativa. Afora esses erros, frutos da inexperiência da autora e de uma edição um pouco desleixada por parte da Canápe, Placebo consegue ser melhor do que muitos dos livros lançados por novos escritores brasileiros atualmente. Paola Barros Delben se prova uma das mais promissoras artistas do país. Autora: Paola Barros Delben Editora: Canápe Editorial Páginas: 198 Nota: 7