[ARTE DA VITRINE]: Thiago Chaves (@chavespapel)

Como a maioria dos outros, eu procurava alguma coisa, vivia em movimento, nunca estava satisfeito e às vezes me metia nas mais imbecis enrascadas. Nunca ficava parado por tempo suficiente para me dar ao luxo de pensar, mas de algum modo sentia que meus instintos estavam certos. Compartilhava uma espécie difusa de otimismo que dizia que alguns de nós estavam realmente progredindo, que estávamos num caminho honesto, e que os melhores de nós inevitavelmente chegariam ao topo.

Ao mesmo tempo, nutria suspeitas melancólicas de que a vida que levávamos era uma causa perdida, que não passávamos de atores, enganando a nós mesmos, numa odisséia sem sentido. Era a tensão entre esses dois pólos – um idealismo incansável e uma sensação de catástrofe iminente – que me dava forças para seguir adiante.

Uma das coisas que mais me fascinam na literatura é a possibilidade de transformar pessoas comuns em gigantes imortais. E tudo isso sem precisar de vultuosos orçamentos ou de uma série de equipamentos. Uma caneta e papel já dão muito bem conta do recado. Sem a literatura, Franz Kafka seria apenas um homem torturado psicologicamente que ninguém notava, Jane Austen uma solteirona convicta e Charles Bukowski apenas mais um velho bêbado entre milhões de outros. Com isso em mente, um jovem e desconhecido Hunter Stockton Thompson, escreveria dois romances nos 60: Prince Jellyfish e Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado. Mas diferente do que apontavam suas maiores ambições, ambos os romances seriam recusados editora após editora. Décadas depois, quando já era o dono da alcunha de criador do Gonzo Jornalismo, a injustiça finalmente seria reparada com a publicação de ambos os livros. Claro que o fato de Hunter Thompson já ser tão famoso que poderia publicar até a sua lista de compras no supermercado pesou bastante.

Apesar do que essa demora para ser publicado pode atestar contra Rum: Diário de um Jornalista Bêbado, a verdade é que ele se prova um entretenimento excelente. Não é o grande romance americano como Thompson o considerava enquanto escrevia no auge do seu ego juvenil, mas é bastante divertido e bem escrito. Herdando o estilo direto e firme de Ernest Hemingway, ele explora suas experiências do curto período em que trabalhou como redator em uma revista esportiva de San Juan, em Porto Rico, para contar uma história completamente nova, como poucas vezes foi visto.

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O protagonista é Paul Kemp, um jornalista americano que desembarca em Dan Juan para trabalhar no Daily News, um jornal tão decadente que parece sempre estar prestes a fechar. E é neste país novo e neste trabalho louco, tão deprimentes que a única forma de agüentar é enchendo a cara de rum, que Paul nos conta a história.

Homens de todos os tipos vieram trabalhar no News: de homens honestos e verdadeiramente talentosos a degenerados e perdedores irremediáveis que mal conseguiam escrever um cartão-postal – malucos, fugitivos e bêbados perigosos, um cubano ladrão que carregava um arma debaixo do sovaco, um mexicano retardado que molestava criancinhas, vigaristas, perdedores e todo tipo de cancros venéreos em forma humana, e a maior parte deles trabalhava por tempo suficiente apenas para conseguir dinheiro para alguns drinques e uma passagem de avião.

O jornalismo é uma das profissões mais romantizadas que existem e fica claro o esforço de Thompson para derrubar esta imagem de uma vez por todas. A profissão é sempre mostrada no livro como algo aborrecido, onde se é obrigado a cobrir eventos intermináveis e entrevistar pessoas vazias. E depois ainda ter que quebrar a cabeça para encontrar mil palavras para falar de cada um deles. Mesmo sendo um jornal fracassado em vendas e publicidade, o Daily News é o sonho de trabalho para muitos dos seus empregados. Em meio a tantos pinguços e vagabundos, qualquer um que tenha o mínimo de competência consegue se manter empregado, faça o que fizer. Mais que isso, qualquer menção a pedir demissão faz Lotterman, o dono do jornal, arrancar os cabelos de desespero.

Muitas pessoas que trabalham com palavras não confiam muito nelas, e não sou exceção – especialmente quando se trata de palavras grandiosas, como Feliz, Amor, Honesto e Forte. São palavras fugidias, relativas demais quando comparadas a palavrinhas afiadas e maldosas como Marginal, Vagabundo e Charlatão. Com essas me sentia em casa, porque são mirradas demais e fáceis de definir, mas as grandiosas são difíceis. Você precisa ser um sacerdote ou um tolo para usá-las com alguma segurança.

O ambiente de San Juan também não ajuda a melhorar a situação. A cidade é uma mistura inóspita de paraíso natural, ponto turístico repleto de americanos esbanjadores e criminalidade desenfreada dos porto-riquenhos. No mesmo dia em que você mergulha em uma paria de águas cristalinas, você pode ser assassinado pela irrisória dívida de um dólar, ter sua esposa estuprada por dezenas de vagabundos e levarem até suas meias sujas se você deixar a janela da sua casa aberta por alguns poucos minutos. Uma terra que parece sempre encoberta por um véu de irrealidade, onde pobreza e riqueza convivem lado a lado, e as manhãs guardam a promessa de grandes acontecimentos enquanto as tardes a certeza decepcionante de que nada interessante pode acontecer por ali.

Os porto-riquenhos nutrem grande interesse por carros abandonados, caem sobre eles somo animais famintos e os despedaçam. Primeiro somem as calotas, depois as rodas, depois os pára-choques, as portas e por fim a carcaça do carro – vinte ou trinta deles, como formigas carregando um besouro morto. Levam a carcaça até um ferro-velho, lucram uns dez dólares yanquis e em seguida brigam com facas e garrafas quebradas para resolver como dividir o dinheiro.

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Thompson consegue o feito de criar personagens únicos, todos meio malucos, mas mesmo assim verossímeis. Paul Kemp é um típico anti-herói, não se importando com quase nada e ninguém, sendo capaz de espancar até velhinhos se eles pegarem no seu pé. Já Yeamon é um tipo de contraponto a Kemp. O símbolo de tudo o que Paul abandonou e desistiu de ser ao envelhecer em nome da prudência, Se Kemp é tão pessimista em relação ao futuro de Yeamon não é porque encontre grandes indícios para isso. Mas sim porque acreditar nisso é tentar provar a si mesmo que ter largado tudo o que acreditava e o definia foi mesmo a escolha certa.

Cultivo uma vontade secreta de esmurrar o rosto de um vendedor qualquer, quebrar seus dentes e deixar seus olhos roxos e inchados.

O que o tornava único era o fato de não ter o mínimo senso de distanciamento. Sala era como o torcedor fanático que invade o campo para agredir um jogador. Enxergava a vida como um Grande Jogo, e a humanidade inteira se dividia em dois times – A Turma do Sala e Os Outros. Os riscos eram tremendos e toda jogada era vital – e, embora ele assistisse a tudo com interesse quase obsessivo, não passava de um torcedor, berrando orientações que ninguém ouvia, acompanhado de uma multidão de treinadores ignorados, o tempo todo consciente de que ninguém lhe dava nenhuma atenção, porque ele não estava no comando do time e nunca estaria. E, como todos os torcedores, sentia-se frustrado pela consciência de que o máximo que poderia fazer, na melhor da hipóteses, seria entrar correndo no campo, causar algum tipo de transtorno ilegal e em seguida ser arrastado para fora pelos guardas, ao som das risadas da multidão.

Mas Hunter Thompson só consegue ser tão feliz na composição dos seus personagens graças à estrutura de conversa de bar que ele impingiu no romance e seu talento inegável para os diálogos. Não só por serem incrivelmente plausíveis em todas as situações e personagens, mas também por ajudarem a definir cada um deles. Pode-se sentir a personalidade deles a cada frase, suas motivações, sonhos e medos. Thompson nem mesmo se dar ao trabalho de mostrar as expressões corporais dos integrantes da história. Nós mesmos, inconscientemente, acabamos fazendo isso por ele durante a leitura.

Fiquei apenas sentado e bebendo, tentando decidir se estava ficando velho e sábio ou apenas velho e nada mais.

Escutando Yeamon, percebi que fazia tempo que não tinha mais a sensação de ter o mundo nas mãos, que muitos aniversários tinham se passado rapidamente desde meu primeiro ano na Europa, quando era tão ignorante e confiante, que cada mínimo golpe de sorte fazia com que eu me sentisse um campeão invencível.

Não me sentia daquele jeito havia muito tempo. Talvez, em meio a toda a confusão do passado, a idéia de que eu era um campeão tenha sido roubada de mim. Mas naquele momento me lembrei dele, e isso fez com que me sentisse velho e irritado por ter feito tão pouco em tanto tempo.

Testemunhar aquela cena que me trouxera diversas lembranças – não de coisas que tinha feito, mas de coisas que fracassara em fazer, de horas desperdiçadas, momentos frustrados e oportunidades perdidas para sempre. O tempo tinha devorado uma porção enorme da minha vida, uma porção que eu nunca mais conseguiria recuperar.

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O tema que permeia todo o enredo de Rum: Diário de um Jornalista Bêbado é a frustração que a idade pode acarretar. Qualquer pessoa de 30 ou 40 anos já deve ter se lamentado alguma vez ao olhar para trás e perceber que não fez nada de importante em sua vida, não realizou nenhum dos seus sonhos e tudo não passou de perda de tempo. Paul não é nenhum velho, tem apenas trinta e dois anos, mas tem a total noção de que seu tempo está ficando cada vez mais curto. A cada minuto a chance de morrer na mesma merda e nunca passar de um fracasso se torna maior.

Não importava o quanto eu quisesse todas aquelas coisas que só poderia comprar quando tivesse dinheiro. Alguma espécie de repuxo demoníaco me arrastava em outra direção – rumo à anarquia, à pobreza e à loucura.

O melhor de tudo é constatar que muito do estilo que consagraria Hunter Thompson como jornalista gonzo já estava presente em Rum: Diário de um Jornalista Bêbado. Mesmo que as drogas e a insanidade da escrita ainda estejam distantes, podemos percebê-lo claramente afinando seus instrumentos para os concertos cada vez mais inspirados que daria em livros como Hell’s Angels e Medo e Delírio em Las Vegas. A grande indiferença é que aqui Thompson segue o caminho inverso: usa seus conhecimentos de jornalismo para aperfeiçoar sua prosa.

Ler Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado é como beber enquanto se conversa bobagens com os amigos. Em alguns momentos, a narrativa se torna tão fluida que chegamos a sentir o álcool correr em nossas veias, como se estivéssemos realmente ali no bar entre os personagens da história. Talvez seja essa a razão do sucesso de Thompson em manter seu romance atual mesmo depois de mais de cinquenta anos. E é isso que garante que Rum deixe de ser apenas mais um livro de um Thompson ainda imaturo para ser um dos mais sarcásticos e inspirados retratos sobre a perda de ilusões já escritos.

Rum: Diário de um Jornalista Bêbado

Autor: Hunter Thompson

Páginas: 256

Editora: L&PM

Nota: 8

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