Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr [quote_box_center][Este texto contém spoilers!] Eu nunca acreditei que a TV americana, quando analisada como peça de entretenimento e arte, fosse um dia, de verdade mesmo, superar o cinema. Muito já foi dito sobre isso, que a ascensão de novas séries é algo lucrativo, dominante, que oferecem altíssima qualidade autoral e fazem com que todo mundo deixe os filmes um pouco de lado pra se esticarem no sofá e assistir o series finale de Breaking Bad ou o Casamento Vermelho de Game Of Thrones. [/quote_box_center] Bom, no domingo passado eu finalmente acreditei que a TV foi mais maneira que o cinema, pelo menos naquele momento em particular, quando assistia o oitavo e último episódio da primeira temporada de “True Detective”. E se aconteceu uma vez, vai acontecer de novo. Tá certo que a HBO não é simplesmente TV. Os caras já provaram isso com tantos outros trabalhos sensacionais, como “Band of Brothers” e “The Pacific” (citando apenas dois que me vêm à mente agora). Mas com “True Detective” as barreiras se expandiram. Começando pela dupla escalada para interpretar os detetives Rust Cohle e Marty Hart: ninguém menos que os texanos Matthew McConaughey e Woody Harrelson, amigos de longa data, que já trabalharam juntos muitas vezes e são renomados astros de Hollywood, ambos com clássicos memoráveis no currículo. McConaughey vive o ápice de sua carreira após ganhar o Oscar de melhor ator pelo excelente “Clube de Compras Dallas”. Podemos ver que na série ele ainda recupera os 22 quilos perdidos para o papel de Ron Woodroof, libertário defensor dos portadores do vírus HIV. Harrelson, que é mais prolífero, já trabalhou com diretores renomados como Milos Forman, Irmãos Coen e Terrence Malick. Mesmo assim, é possível dizer que este foi um de seus melhores trabalhos, senão o melhor trabalho de sua carreira. Temos então um ganhador do Oscar em ascensão e um ator experiente motivado. Ambos amigos e entrosados. O restante do elenco não foi escolhido com menor atenção. Entre tantos atores que vem e vão, todos deixaram suas marcas. Seja a bela Michelle Monaghan como a badass Maggie Hart, Shea Whigham como o pastor Joel Theriot, Michael Harney como o xerife Geraci ou Christopher Berry como o meliante Danny Fontenot. Toda interpretação captada por “True Detective” necessariamente diz alguma coisa verdadeira. E mesmo com uma participação pequena, um dos maiores destaques deste time é Gleen Fleshler. Ele interpreta Errol Childress, psicopata que ascendeu ao panteão dos mais famosos vilões de nossa cultura pop. E isso da noite para o dia. A escolha de tornar Errol um personagem vilanesco caricato foi acertada. Os elementos que montam esta personificação do mal são extremamente simbólicos, quando comparados a mitologia da vertente: a casa completamente desmazelada, cheia de resquícios de vítimas por todos os lados. Bonecas quebradas, roupas rasgadas, o pai torturado e preso no quintal, com a boca costurada e de aspecto cadavérico. Por fim, a relação sexual com a irmã, sendo que ambos são possíveis filhos de incestos. Um forte contorno grotesco. Mas afinal, seria Errol o Rei Amarelo? Ou seria esse cara? A intenção nunca foi abordar a caraterização de Childress de maneira contida, pois o público merecia um psicopata no estilo clássico do gênero, e não algum pai de família engravatado que secretamente comandava assassinatos em massa de seu escritório. Com esta ideia de personagem em mente, e depois de muitas conversas e deliberações com o criador da série, Fleshler conseguiu, de forma complexa e assustadora, entender as motivações do maníaco, e fazer dele alguém crível, morbidamente admirável, que no final poderia ter vencido o confronto mais antigo de todos. #Heranças, Maquinações e Teorias do Rei Amarelo A trama de “True Detective” aborda, principalmente, a dívida moral compartilhada pelos detetives Rust Cohle e Marty Hart, e também todas as mazelas causadas pela mesma. A busca por respostas para o assassinato de Dora Lange os conduziu por um labirinto de acontecimentos bizarros. E na abandonada Louisiana pós-Katrina, descobriram que a pedofilia e o sacrifício humano eram celebrados, canonizados e transformados em religião pelo Rei Amarelo, no reino perdido de Carcosa. A justiça não encontrava estrada certa porque a seita de mascarados se escondia em lugares altos da sociedade. Religiosos, senadores e xerifes formavam uma grande e mórbida família que, de maneira quase sobrenatural, apagava seus rastros e ligações. Mas todo maníaco precisa de um troféu, que sirva como uma lembrança visual que se repete na mente, ou que mereça ser exposta como uma obra de arte. No final desta história, o que fica é a cruel e intragável verdade de que apenas o carrasco foi abatido naquele coração das trevas de Carcosa, sob o vórtex de Cohle. E diante de tamanha criatividade narrativa, é fácil constatar que a peça fundamental do sucesso de “True Detective” é seu texto. Nic Pizzolatto, roteirista de todos os episódios, escreveu seu primeiro livro, “Galveston: A Novel“, em 2010. Antes disso ele havia lançado apenas “Between Here and the Yellow Sea“, um apanhado de contos e pequenas histórias. Depois de ajudar na elaboração dos episódios finais de “The Killing“, o mesmo emergiu como criador e produtor de “True Detective“, meio assim que do nada. No entanto, esta evolução acelerada do cara é bem compreensível, pois sua escrita é de fato genial. A linguagem carregada de simbolismos, com que o mesmo encapsula este universo sulista de terror e maquinações diabólicas, é algo inédito. A exploração de seus complexos e intangíveis personagens possibilita a construção de diálogos memoráveis. Por exemplo, o raciocínio niilista de Rust, que pode ser tido como pessimista por muitos ou realista por outros, se entrelaça ao conservadorismo hereditário e praticamente instintivo de Marty, que apesar de muito inteligente se encontra preso a regras de conduta obrigatórias. Regras que o mesmo torce a todo momento em seu próprio benefício. Essa inteligente dinâmica oferece, basicamente, a eloquência poética de Rust (ao descrever a falta de sentido da raça humana, por exemplo), e o descaso banalizado de Marty, que mais parece a defesa de um precioso conformismo. É daí que surgem trechos de diálogos que possivelmente não serão esquecidos pela audiência, como a teoria de que a vida é um circulo achatado e tudo que acontece se repetirá eternamente. Uma mistura cínica de Nietzsche, cosmologia quântica e, porque não, karma. Um fator que chamou bastante atenção dos aficionados foi que Pizzolato inseriu, consciente e inconscientemente, pistas que remetem a obra que lhe serviu de referência para a criação de “True Detective”. No caso, estamos falando do livro envolto por ares sobrenaturais, “The King in Yellow“, de 1895, escrito por Robert W. Chambers. Este trabalho de Chambers também influenciou H.P. Lovecraft em seu “O Chamado de Cthulhu“, que posteriormente se transformaria numa fonte de inspiração para infindáveis diretores, músicos e artistas apreciadores de temas mais sombrios. Devido a esta homenagem enigmática à Chambers (que envolve o Rei Amarelo, o misterioso local conhecido como Carcosa, as estrelas caídas e as máscaras dos homens), a série acabou ganhando ares conspiratórios em diversos fóruns internet adentro (vide Reddit). Qualquer detalhe poderia ser uma nova pista. Uma das teorias mais estapafúrdias com que me deparei atestava que o Rei Amarelo era o dono de um restaurante vietnamita (aquele do luminoso de beira de estrada, no formato de uma coroa gigante). No caso, o indivíduo seria um sobrevivente da guerra do Vietnã, que viajara aos Estados Unidos para se vingar do pai de Rust e toda sua família, tudo por causa de um pecado de guerra. Desde então Rust estaria sendo perseguido por este “Rei Amarelo” vietnamita – eu sei, a teoria além de cretina é basicamente racista. Mas isso apenas demonstra o quão impactante e mítica foi a história desta primeira temporada de “True Detective” para os fãs. Detalhes foram esmiuçados, tatuagens investigadas, cicatrizes nas costas comparadas, crenças e descrenças discutidas, símbolos pareciam se multiplicar e paródias naturalmente foram compiladas (veja a melhor aqui). Se formou assim um intenso e instigante cenário conspiratório. #O Ponto de Vista Perfeito Chegamos assim na direção arrojada de Cary Fukunaga, californiano que despontou depois do eficiente longa metragem de época “Jane Eyre”. Fukunaga dirigiu todos os oito episódios de “True Detective”, algo não muito comum neste meio. E durante esta empreitada, o mesmo foi capaz de prover cenas impecáveis, hora pesadamente mórbidas, outras carregadas da mais genuína tensão que existe. Apoiado por uma trilha sonora arrasadora (vide a música completa de abertura), o diretor, com naturalidade imensa, conseguiu emular distintos gêneros e conceitos, tudo através de sua narrativa concisa e ampla visão do script. Por exemplo: em certa cena vemos Rust e Marty em uma perseguição atocaiada. A trilha incidental neste momento nos leva ao melhor clima de ação policial dos anos 70. Logo em seguida a dupla encontra seus alvos, Dewall e Reggie Ledoux, que estavam escondidos numa espécie de laboratório/cativeiro, onde seriam por fim executados. Esta sequência é apenas uma de tantas outras que foram talhadas com destreza por Fukunaga, e produzidas com perfeição pela equipe técnica. Porém, a forma com que a cena é descrita apresenta uma criatividade singular: enquanto o voice-over de ambos detetives reportam o acontecimento de maneira X, o mesmo acontece de maneira Y na tela (ligeiramente mindfuck). Sorrateira, aquela sensação de genuína tensão reaparece, seguida pela satisfação mórbida de ver um monstro sendo alvejado no rosto e outro explodindo ao meio numa armadilha caseira. Todo o resto é amarrado por cenas impecáveis, como as belíssimas tomadas em slow motion de Rust atirando ao léu com uma Kalashnikov, para assim montar sua tal versão X. É necessário também relembrar o incrível take único de seis minutos no episódio “Who Goes There”, um honesto desafio egomaníaco de Fukunaga. Basicamente, a sequência serve como cartão de visitas do diretor. Revela todo o desenvolvimento de seu trabalho e exalta o controle de suas aptidões. Épico. Por fim, temos a monumental batalha entre luz e escuridão de Rust, Marty e Errol no coração das trevas de Carcosa. Um desfecho definitivamente carregado de pesadas emoções, com andamento e clímax exatos. Vale lembrar ainda o apoio da cenografia para o resultado final. Além de adaptar com fidelidade todos os 22 anos que abraçam a história (1995 a 2012), eles demonstram com sua Carcosa, abarrotada de devil nets gigantes, toda a dedicação e genialidade da direção de arte. A igreja queimada e o cativeiro de Dewall e Reggie Ledoux são outras construções, erguidas do zero, que também merecem aplausos. #Quebrando o Ciclo A evolução dos personagens de Harrelson e McConaughey pode ser considerada o toque de classe da produção. Enquanto Harrelson traça uma complexa linha de dualidades e hipocrisias para Marty, McConaughey elabora para Rust uma linguagem corporal e psicológica tão bem delineada, que o cara instantaneamente se torna um anti-herói de primeira classe, cheio de olhares delirantes, estagnados, cadências e discursos hipnotizantes, e certa arrogância latente. A transformação física que os dois sofrem, durante o decorrer atemporal da história, aumenta a extensão e complexidade dos personagens, e ainda sim, o resultado de ambos é irretocável. Naturalmente, houve reclamações sobre o season finale “Form and Void“. Alguns fãs ficaram descontentes por Rust ter encontrando a luz. Nic Pizzolatto afirmou (para o site Entertainment Weekly) que optou por este desfecho otimista para fugir de um crescente esquema polemizado pela mídia: o de matar protagonistas. A sobrevivência dos detetives foi o ponto final no ciclo de violência que os rodeava, só que o mais importante é que ambos aprenderam com isso. No caso, Rust descreve de forma melancólica sua experiência pós-morte: dentro de sua mente, enquanto estava morrendo, num local de pura consciência, ele sente, talvez pela primeira vez, o amor de sua filha em plenitude. Esta sensação, narrada de forma visceral por um personagem de convicções até então inabaláveis, é a mensagem principal de Pizzolatto. Mas que não fala de redenção, conversão ou mesmo conclusão. O criador da série exemplifica que não existe verdade absoluta, e também rascunha um futuro em que seus personagens consigam se imaginar livres deste solitário pesadelo em que vivem, vencedores enfim. “True Detective” propõe que um ciclo, como aquele descrito ao longo da história, pode sim ser quebrado, e que qualquer um pode mudar, até mesmo Rust. Se o inferno é repetição, agora eles enxergam uma saída, uma luz no fim do túnel. Alcança-lá plenamente é uma longa jornada, mas o caminho se fez mais claro agora. PS #1: Script do Season Finale que não foi aprovado, AQUI! (LOL) Atualização: A segunda temporada de True Detective já começou na HBO! https://www.youtube.com/watch?v=TXwCoNwBSkQ True Detective – 1ª Temporada (2014/ EUA) Criador: Nic Pizzolatto Direção: Cary Fukunaga Elenco: Matthew McConaughey, Woody Harrelson, Michelle Monaghan, Michael POtts, Tory Kittles, J.D. Evermore, Madison Wolfe, Kevin Dunn, Glenn Fleshler…