Durante a vida somos pegos por várias ciladas. Escrever pode ser uma cilada. Alguns escritores costumam escrever antigos prazeres de seus leitores. Eles escutam elogios e acreditam. Há um julgamento final na escrita e é do escritor. Quando é influenciado por críticos, editores, publicadores e leitores está acabado. E, é claro, quando influenciado pela sua fama e fortuna, pode fazê-lo flutuar rio abaixo com os cocôs.

Charles Bukowski talvez seja um dos mais insuspeitos dos gênios. Aos olhos de alguns críticos era um mero escritor vulgar e obsceno. Mas foi um dos maiores nomes da literatura americana. Um poeta que agradava quem não gostava de poesia. Um contista que atraía quem não gostava de ler. O romancista que desistiu de ler outros escritores e da literatura. Imortal, ainda é lido e publicado em diversos países mais de dezesseis anos após sua morte, por leucemia em 1994.

Para quem é fã de Bukowski pode ser até difícil acreditar que logo ele, que detestava Hollywood e qualquer outra coisa relacionada a cinema ganharia uma adaptação cinematográfica de seu segundo romance à altura do seu nome, seu mito e sua história. Isso mesmo. Com Factótum – Sem Destino, Bukowski pode continuar descansando em paz.

Até em momentos de solidão posso sentir as palavras borbulhando dentro de mim. Tinha de colocá-las no papel ou ser dominado por uma sensação pior que a morte. Palavras não como coisas preciosas, mas como necessárias. Quando começo a duvidar de minha habilidade de trabalhar a palavra eu leio o trabalho de outro escritor e então sei que não tenho com o que me preocupar. Minha única competição é só comigo mesmo, de fazer certo, com vigor e força, com encanto e risco.

A história é sobre o alter-ego do autor Henry Chinaski, um homem triste e solitário, que só consegue encontrar motivos para viver na embriaguez, nas corridas de cavalos e no sexo com mulheres tão decadentes quanto ele. Só consegue viver de emprego em emprego, de mulher em mulher.

A atmosfera é triste, lenta, ascética. Quem já leu Bukowski identifica na hora o clima dos seus romances, contos e poemas. As locações em geral são bares decrépitos e quartos de motel. Infelizmente, eles não são sujos como eram na obra do Velho Safado. Em seus livros, os bares fediam à urina, vômito e morte. Quartos de motéis eram infestados de baratas e desolação. Já no filme não se vê nada disso. Já a iluminação é fria, fraca, de fim de tarde, bem a hora que Chinaski costuma acordar, de ressaca. E existe um constante silêncio na história, quebrado raramente. A combinação desses três elementos é perfeita e dá o tom melancólico certo ao filme.

Mas o filme nunca seria o mesmo se não fosse uma pessoa: Matt Dillon. Nas mãos de outro ator menos talentoso Henry Chinaski poderia ser só um personagem chato e sem graça na tela grande. Mas, nas mãos de Dillon, parece ganhar vida. Você olha pra ele e enxerga o Chinaski ali. Os olhos injetados e voltados para o chão, a barba rala, o andar lento, preguiçoso. As camisas de botão brancas e largas, a dificuldade em fazer novas amizades e iniciar conversas, sempre dando respostas curtas como “Sim” e “Não“. Fica até difícil querer que outro ator interprete o papel de Chinaski no futuro.

Entretanto, assistir Factotum não tem o mesmo peso da experiência que é ler Bukowski. Sua prosa no filme perde um pouco a força. Fica rebaixada à mera narração em off de Matt Dillon. O filme também pode não agradar quem ainda não quem conhece a obra do Velho Safado. Aos olhos destes, o filme pode parecer sem objetivo, com cenas soltas. O status do personagem não muda no final do filme e seu destino é incerto. Mas ele é profundo, cada cena tem um significado próprio. Algumas destas cenas são a que Henry volta à casa dos pais ou quando começa em novo emprego e a primeira coisa que faz é começar a fumar. Triunfo da dupla de roteiristas Jim Stark e Hamer, que conseguiram transmitir essa característica.

Mesmo assim Factotum ainda merece o título de ser um dos raros filmes capazes de representar bem um escritor e sua obra. Um filme que merecia estar na estante de todo fã de Bukowski.

 

Factotum (EUA, 2005)

Diretor: Bent Hamer

Duração: 89 min

Nota: 8

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  • Misto-Quente: Charles Bukowski

    Se existe uma coisa que eu sinto vergonha em admitir é que até pouco tempo atrás eu conhec…
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No Comments

  1. Antonio Gaio

    21 de junho de 2012 at 12:37

    curto filmes assim, vou atras deste

    Reply

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