A cada dia, e de ambos os lados da minha inteligência – o moral e o intelectual – eu chegava cada vez mais próximo daquela verdade cuja descoberta parcial tinha-me condenado a um terrível fim: o de que o homem não é apenas um, mas sim dois.

Aquele horror rebelde estava grudado nele mais do que se fosse uma esposa, ou mesmo um olho seu; ele morava enjaulado em sua carne, onde podia ouvi-lo murmurar e podia senti-lo lutando para nascer; e a cada momento de fraqueza, ou na entrega do sono, prevalecia contra ele, e destituiria-o da vida.

Desde o início dos tempos, a humanidade se volta para conceitos como a bondade e maldade nas artes, na filosofia, na religião e nas artes. Nelas, as duas ganharam milhões de interpretações e facetas diferentes. O mal já ganhou a expressão do Lobo Mau, do Diabo, de Drácula e até de monstros humanos, como o Alex de Laranja Mecânica e de Hitler. Em quase todas, a conclusão era sempre a mesma, seja na Bíblia, na literatura ou nos quadrinhos. O bem vence mal. Mas é justamente por ir contra esta ideia em uma abordagem nova que está a genialidade e importância de O Médico e o Monstro. Clássico entre os clássicos do horror, a breve história de Robert Louis Stevenson marcou o gênero pelo seu suspense penetrante e marcante. Ele é o tipo de romance que deve ocupar lugar de honra na coleção de qualquer pessoa que realmente goste de terror, lado a lado de Drácula, Frankenstein, A Volta do Parafuso, Nas Montanhas da Loucura e Assombração na Casa da Colina.

Após o estrondoso sucesso de A Ilha do Tesouro, o mais importante romance sobre piratas já escrito, R. L. Stevenson iniciou o livro que o consagraria de vez. O Médico e o Monstro foi escrito num verdadeiro rompante inspiracional, em apenas três. Seu único objetivo com o livro é o mesmo que alimenta a ambição de muitos escritores: ganhar o máximo de dinheiro que pudesse com ele. Para isso, o encheu de um sensacionalismo barato, com crimes e mortes violentas, que horrorizou sua esposa Fanny Osbourne. Seu choque foi tão profundo que Stevenson jogou o manuscrito na lareira. E o reescreveu logo após, novamente em três dias, inserindo uma lição de moral para agradar a esposa.

O resultado foi tão gigantesco que só o mais ambicioso autor poderia aspirar. O romance, ao longo das décadas, ganhou vida própria com seus milhões de exemplares vendidos até hoje e milhares de adaptações para o cinema, rádio, teatro, televisão e histórias em quadrinhos. Ultrapassou a imagem do seu autor e se tornou um verdadeiro fenômeno cultural, que até as pessoas que não lêem livros ou vêem filmes estão presas. Até quem nem mesmo ouviu falar em Stevenson e muito menos nos protagonistas Henry Jekyll e Edward Hyde sente sua influência. Podemos sentir sua sombra pairando sobre Clube da Luta, Elfen Lied, Psicose, Hulk, Janela Secreta, O que aconteceu com Baby Jane, Cisne Negro e em incontáveis outras histórias.

O enredo de O Médico e o Monstro já é conhecida pela maioria das pessoas. Ela nos é passada por várias pessoas, como num inquérito policial. Edward Hyde é um homem horrível por dentro e por fora. Externamente, não parece haver nada de errado com ele, mas há alguma coisa, um defeito, uma deformidade, algo terrivelmente errado em sua fisionomia, capaz de gelar a espinha do menos impressionável dos homens. Uma aparência tão repugnante que desperta ímpetos de assassinato em quem o observa, além de horror. Hyde tinha o que, anos depois, Rudyard Kipling chamaria de Marca da Besta.

Já por dentro, Hyde é quase o próprio Diabo. Cruel e sádico, seu único objetivo é torturar, física ou mentalmente, qualquer coitado que esteja na sua frente. Não há absolutamente nada que o impeça de seguir adiante, sem preocupações. Nenhuma responsabilidade pesa sobre seus ombros.

Ao ver que tão desprezível homem consta como único herdeiro no testamento do seu amigo e cliente Henry Jekyll, um médico famoso por sua bondade e caridade, o advogado Utterson decide investigar qual a relação entre os dois.

O cavalheiro idoso recuou um passo, com o ar de alguém bastante surpreso e um tanto intrigado, e aquele Mr. Hyde perdeu totalmente o controle, cobrindo-o de pauladas até derrubá-lo no chão. No instante seguinte, com a fúria de um símio, estava pisoteando a vítima e despejando sobre ele uma chuva de pancadas, sob a qual os ossos se partiram de forma audível e o corpo caía no meio da rua.

Stevenson é do raro tipo de escritor que tem o domínio total sobre a sua história. Com traços de novela policial, ela se desenrola perfeitamente, com a precisão de uma máquina. Nenhum mistério fica sem resposta, encaixando-se como um intrincado apenas no fim da história. E isso tudo em um verdadeiro conto moral, sobre hipocrisia, livre-arbítrio, limites éticos e maldade, presentes em todas as pessoas do planeta.

Os personagens de Stevenson não são como os bonecos sem vida de muitos escritores. Mesmo descritos em poucas palavras, todos têm suas motivações para agir como agem, personalidades e hábitos únicos.

Se ele é aquele que se esconde, eu serei aquele que procura.

Uma história de horror e mistério funciona melhor quando é breve, sem enrolação. Não é à toa que Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft são mais conhecidos pelos seus contos do que pelos romances que escreveram. Stevenson sabia disso como poucos e fez de O Médico e o Monstro um dos romances clássicos mais curtos. Suas edições variam entre setenta e cem páginas. Ele é, junto de A Volta do Parafuso, de Henry James, e O Emblema Rubro da Coragem, de Stephen Crane, uma obra-prima da concisão. Cada trecho, frase ou palavra tem importância para a história. Todas as ações e diálogos estão lá para nos preparar para o seu desfecho. Nada é pensado só para aumentar o número de páginas ou enrolar. A própria atmosfera sombria é apenas sugerida, nunca elaborada mais detalhadamente. Stevenson talhou e reduziu tanto sua narrativa que se fosse um pouco mais breve poderia ser tratado como um conto.

De todos os escritores que já se aventuraram pelos tortuosos caminhos do horror, R. L. Stevenson foi um dos mais bem-sucedidos. Seus romances são lidos até hoje, em especial o próprio Médico e o Monstro e a Ilha do Tesouro. Este último foi o precursor do mapa do tesouro, onde a arca cheia de ouro enterrada estava marcada com um grande X, e o famoso estereótipo do pirata – o com perna-de-pau e um papagaio no ombro. Enquanto isso, os romances que Bram Stoker escreveu depois de Drácula são mais lidos apenas pelos mais fanáticos por terror e os góticos de Mary Shelley, excluindo-se Frankenstein, caíram no quase total esquecimento. Apesar disso, O Médico e o Monstro não goza da eterna e vigorosa força de Drácula, embora seja muito superior em construção de personagens, nem é tão vívido quanto Frankenstein. A proeza de Stevenson foi a de conseguir manter o mesmo alto padrão de qualidade em quase tudo o que escreveu.

E, o tempo todo, enquanto pintávamos a coisa mais e mais feia, tentávamos manter as mulheres afastadas dele, pois elas estavam selvagens como harpias. Nunca vi um círculo de rostos onde o ódio se estampasse daquela maneira. E lá no meio estava o homem, com uma espécie de frieza zombeteira… também tinha medo, eu podia ver isso… mas passava por aquilo tudo, meu senhor, como o próprio Satã.

Robert Louis Stevenson também foi um dos escritores que mais arduamente disputaram o título de mercenário. Ao contrário do que muita gente pensa, isso não é demérito nenhum. Dom Quixote foi escrito da forma mais popular possível para vender o bastante para que Miguel de Cervantes não tivesse mais espaço para guardar dinheiro nos seus bolsos. E, mesmo assim, é tida como a melhor ficção de todos os tempos e o expoente máximo da literatura espanhola. Além de Dom Quixote e seu fiel companheiro Sancho Pança serem relembrados com carinho até hoje. Da mesma forma, Howard Phillips Lovecraft batalhou para sustentar sua família produzindo uma acavalante quantidade de contos de horror e ficção científica que se tornou a principal base do gênero por boa parte do século XX. E por que não falar de Stephen King? Ele foi chamado depreciativamente por alguns de uma maldita indústria de romances de ficção barata no início da sua carreira e hoje é considerado um dos mais notórios escritores da sua geração.

O único demérito está nos escritores que se prendem à mesma fórmula que os consagraram por toda a sua carreira ou embarcam na moda do momento só para garantir uns trocados a mais. Alguns deles parecem só fazer reescrever o mesmo livro, mudando os nomes dos personagens e as situações. E coisas como essas Stevenson, assim como Cervantes, King e Lovecraft, pode se gabar de nunca ter feito por toda a sua carreira.

A grande importância que Stevenson conseguiu dar em O Médico e o Monstro está em nos mostrar sem rodeios que o verdadeiro monstro pode não estar oculto dentro de um armário só aguardando a hora de nos atacar. Que ele não anda por aí oculto, amolando suas presas afiadas, para te devorar. E sim que está em todos os lugares, para onde quer que você olhe. Preso, mas ansioso para se libertar, aguardando apenas a primeira oportunidade, a primeira fraqueza. Ciente de que a bondade, cedo ou tarde, declina sob a força do mal.

Autor: Robert Louis Stevenson

Editora: L&PM Pocket

Páginas: 112

Nota: 8,0

Compre essa fantástica obra!!

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No Comments

  1. Iury BAS

    10 de outubro de 2013 at 08:58

    O Médico e o Monstro é realmente uma obra incrível e que sai da linha de bem e mal absolutos que envolvem a nossa cultura. Assim como você cita no post, o número de referências a essa obra é gigantesco. Uma das quais eu mais me recordo é esta no desenho do Piu Piu e Frajola. Acredito já ter visto outras referências em outros desenhos da Warner https://www.youtube.com/watch?v=TQyPyPSmnnY

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