Sabe aqueles livros que têm uma premissa que, quando chegam ao seu conhecimento, geram um estalo do tipo “putz, queria ter escrito isso”?! Foi mais ou menos isso que senti quando li a sinopse de American Vertigo, do francês Bernard-Henri Lévy. O livro é basicamente um road book em que Lévy busca entender “a alma americana”, percorrendo de carro e conhecendo os mais diferentes pontos do país e conversando com o maior número de pessoas. Simples assim, é tudo que Eu queria fazer como jornalista, mas no Brasil, e no melhor estilo Hunter Thompson em seu clássico livro A Grande Caçada aos Tubarões.

A jornada de Lévy pelos Estados Unidos tem um certo cacife. Ele foi convidado pela respeitada revista The Atlantic Monthly para reviver uma antiga viagem do aristocrata Alexis de Tocqueville, que em 1831 foi enviado pelo governo francês para estudar o sistema prisional americano. O resultado da expedição de Alexis são duas obras seminais sobre os EUA em carne viva e em plena fase de ebulição cultural:  Sobre o Sistema Penitenciário nos Estados Unidos e Sua Aplicação na França e A Democracia na América.

A escolha da Atlantic por Lévy – também francês – não é leviana e sem motivo. Ele é conhecido como um filósofo pop, de uma nova geração que tirou a Filosofia das salas e a levou também para as ruas, fez aplicações e analogias populares, e mais importante: iniciou um forte ativismo político, calcado em críticas sociais de cunho marxista. Além disso, é cineasta, editor de jornais e revistas e diretor de teatro. Suas raízes culturais estão diretamente ligados aos revolucionários anos 1970, especialmente os seminais dias de maio de 1968.

Lévy é frequentemente relacionado com um grupo de filósofos franceses chamados de Nouveaux Philosophes, ou Novos Filósofos, surgidos na mesma época que ele – todos com ideias enraízadas no Maoísmo, Trotskismo e outros ismos da esquerda, que logo depois foram abandonados e trocados por um limbo ideológico que permeava entre as ideias de Michel Foucault, uma crítica a Nietzsche e ao pós-estruturalismo.

Para entender melhor, seria como a revista Piauí chamar o filósofo espanhol José Ortega y Gasset para escrever suas impressões políticas e penais sobre o Brasil. Coisa fina.

Apesar de suas notáveis diferenças – Tocqueville foi aos EUA para ensinar os franceses a manterem um sistema penal funcionando, enquanto Lévy pisou no país com uma postura antecipadamente crítica -, as viagens dois dois possuem profundos paralelos que vão muito além da rota percorrida por eles no país. Essa carga filosófica que Lévy possui é importante, já que os Estados Unidos mudaram muito desde o século XIX e se tornaram uma espécie de modelo econômico e social para boa parte do mundo, ao mesmo tempo em que desgraçam a vida de milhões de pessoas em busca de recursos naturais, ou simplesmente para fortalecer os músculos de sua máquina de guerra, em um esforço suicida e virótico.

O filósofo pisou por lá no momento certo: entre a campanha eleitoral que reelegeu George W. Bush, em 2004, e o verão de 2005. Um período conturbado, uma espécie de convulsão do Estado Americano, colocado em choque graças aos ataques terroristas que deixaram muita gente de queixo no chão, e a ponto de colocar a confiança em um patético líder que estupraria boa parte da sociedade e deixaria uma dívida monstruosa para trás anos depois.

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Os Estados Unidos que Bernard-Henri Lévy descortina não são muito diferentes do país que se imagina mundo afora. A diferença é que ele mostra base para atestar o que ele fala. Ele é um observador atento. A estrutura do livro é ligeira, como ficção pulp, e não tem lá muito espaço para pensatas filosóficas caudalosas ou consequentes aplicações das inúmeras teorias de pensamento com relação ao que ele vê. Lévy tem alma de jornalista e não vê problema em concentrar isso em American Vertigo.

Ler um filósofo francês entrando em um clube de stripper de Las Vegas e dissertar sobre a natureza plástica e imaterial de várias dançarinas – que não podem ser tocadas, e o levaram a descrever a situação como “a miséria de Eros na terra dos puritanos” – é completamente digno de nota. Logo depois ele não perde tempo e vai até um puteiro de raiz, para  assimilar possíveis diferenças entre as duas profissionais da exibição – uma de ação, e a outra como “figura imagética”… e daí sai uma crítica aos esteriótipos a que se apegam os americanos, principalmente visuais. Ele não chega às vias de fato (ao menos diz que não), mas as descrições são legais e têm classe! É como uma conversa de bar com bêbados metidos a intelectuais. A diferença é que Lévy se leva a sério, e isso não é ruim.

O filósofo francês percorreu os quatro cantos dos Estados Unidos, e de cada vila, cada monumento importante, conseguiu extrair uma peça do intrincado quebra-cabeça para responder a pergunta clássica do livro: como é a alma americana? São mais de 25 mil quilômetros percorridos e diversos relatos, certeiros como um tiro, de duas, três páginas – mas com profundidade o bastante para te fazer sentir o especialista leviano no assunto abordado.

Os relatos melancólicos dele sobre os falsos museus, com funcionários meio atores que interpretam personagens históricos, logo no início do livro, chegam a soar hilários, com críticas  mal disparadas sobre o apego dos Estados Unidos pela falsidade, por ela ser mais fácil de ser administrada. É legal, mas os poucos momentos de Choke – o livro de Chuck Palahniuk – focados nisso são infinitamente melhores. Essa mistura de humor, espanto (deve ser a reação básica dos franceses ao viver nos Estados Unidos… ou em qualquer lugar do mundo), comentários ácidos e momentos de masturbação filosófica são a alma multifacetada do livro, e seu principal atrativo.

“Não é um livro de filosofia”, adverte Lévy. “Porque é jornalismo, literatura e é engraçado”. A definição não poderia estar mais correta. Mais do que isso, o livro é a descoberta de uma sociedade em crise de identidade, um povo que havia conquistado seu sonho, mas estava em um momento de encarar suas próprias e fétidas feridas. Todo o percurso é feito a sombra da reeleição de Bush e a escalada da Guerra do Iraque, mas Lévy não se deixa cair na pieguice fácil de explorar esses temas, embora os lance em background para explicar o contexto de sua viagem. Essas sombras se espelham em sua entrevista a John Kerry, e quando analisa a política bipartidária americana como um todo.

Os alvos dele são vastos: o confuso sistema eleitoral americano, as conspirações por trás da morte de Kennedy (que resultam em reflexões sobre a natureza dos mitos e de suas consequentes transformações sociais), as comunidades negras, as estranhas universidades conservadoras, obesidade, a Ku Klux Klan e até o Monte Rushmore. Nada escapa a pena afiada de Lévy, que dificilmente decide dar respostas, mas propõe questionamentos aprofundados o bastante para sacudir até as certezas mais enraizadas dos leitores. É a mostra viva da função dos filósofos segundo outro rock star da Filosofia Moderna, Slavoj Zizek: “Filosofia é saber fazer as perguntas certas. Nada mais”.

Assim como desconstruiu toda a intelectualizada e militante esquerda em sua obra mais importante, A barbárie com rosto humano, focada no totalitarismo dos seguidores do Marxismo, Lévy também desconstrói a identidade americana em um período fragilizado e de falsa solidificação.

E, obviamente, ele fala de prisões.

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Visita quatro, na verdade. Destaque para duas: uma feminina, com estrutura e esquema próprios que a diferencia das demais, e uma cadeia secreta em Manhattan, que nem aparece no mapa. É Rikers Island, com seus 14 mil presos, 7 mil guardas e 1500 civis. O lugar é uma casa de passagem de Nova York, para onde vão todos os presos que aguardam uma sentença, ou receberam penas inferiores a um ano. O problema é que a viagem pode ser dolorosa: 25% dos detentos da ilha têm distúrbios mentais, enquanto cerca de 30% sofreram algum tipo de agressão grave que necessitou de cuidados médicos da administração.

Lévy ainda encontra tempo para fazer uma nostálgica visita de barco até a lendária Alcatraz, a prisão definitiva, e a Guantánamo, o pesadelo jurídico para os acusados de terrorismo.

A maior força do livro – seus diversos temas, devidamente degustados pelo autor – é justamente sua maior fraqueza. Chega certo momento que é preciso respirar, pois o ritmo cansa. Na verdade, isso rola quando alguns temas ficam chatos, como quando o francês traça comparações filosóficas com um colega acadêmico, ou se põe a divagar em um restaurante a beira da estrada, cortando o ritmo acelerado do livro.

A definição dos Estados Unidos feita por ele não poderia ser mais acertada em relação a proposta do livro: “país magnífico e louco, laboratório do melhor e do pior, imperial e modesto, inebriado de materialismo e ao mesmo tempo de religiosidade, puritano e intemperante, debruçado sobre o futuro e obcecado por sua parte de memória, que, perdeu o controle de sua situação mental, cultural, metafísica” e que, portanto, caracteriza-se pela “desmedida, pelo excesso, pela força da ênfase e insensatez”.

Essa análise sobre a paradoxalidade da sociedade americana chega a soar macabra quando ele prevê a destruição de Nova Orleans pelo Katrina na página 201: “E essa sensação de precariedade difusa? E a certeza que jamais nos abandona, de que um dia a água será mais forte, e Nova Orleans, nova Nínive, soçobrará num novo dilúvio?”. Tudo por culpa de um personagem onipresente do livro: George W. Bush.

Se American Vertigo não é a melhor investigação acerca da alma dos Estados Unidos, por mais antiquado que seja o termo, é com certeza um dos melhores road books jornalísticos disponíveis por aí – e que não tem sua qualidade comprometida por ser escrito por um francês. Uma leitura rápida e profunda, com personalidade mais paradoxal e divertida do que a identidade americana. Melhor que isso, só lendo Tom Wolfe ou Hunter Thompson.

American Vertigo (Cia das Letras, 2006)

Autor: Bernard-Henri Lévy

Páginas: 400

Nota: 8,5

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