Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr [ARTE DA VITRINE]: Thiago Chaves (@chavespapel) Publicado originalmente em: NerDevils / Farrazine #23 O processo que envolve a leitura e apreciação de uma obra de quadrinhos é muito maior do que folhear umas páginas de papel couché, ler os balões com falas escritas por Grant Morrison e admirar os desenhos de Frank Quitely. Esses momentos são apenas o final, a cereja de um bolo gigantesco que às vezes não admitimos que existe. Dizer que nossas expectativas não afetam o modo como avaliamos algo que lemos/assistimos/ouvimos é o mesmo que dizer que o cheiro da comida que sentimos 10 minutos antes de comê-la não influencia no modo como percebemos o sabor dela. Como dizia Nietzsche, “somos artistas muito maiores do que imaginamos”, referindo-se ao fato que nosso sistema nervoso afeta profundamente o modo como vemos (vemos, no sentido literal mesmo) o mundo que nos cerca. Às vezes nossos sentidos são viciados, como em testes em que os instrutores mostram vídeos de crianças brincando numa rua e dão ordens aos que assistem de ver quantas vezes uma criança específica quica uma bola; o fato dos espectadores ficarem atentos a esse aspecto acaba por impedir que vejam outras coisas – como um gorducho fantasiado de coelho passando atrás das crianças (Eu vi isso rolar nas minhas aulas de Psicologia Social). Às vezes nosso cérebro literalmente filtra sinais que vemos simplesmente porque eles não condizem com as décadas de aprendizado que acumulamos, como quando o presidente Dwight Eisenhower cumprimentou a todos os seus convidados num jantar oficial com a frase “Eu esfaqueei minha esposa essa manhã” e NENHUM dos mais de cinquenta convidados cumprimentados se alarmou ou ficou assustado. É mais ou menos como a experiência descrita por Colin Wilson em seu livro A Criminal History of Mankind, onde sensores eram colocados no ouvido de um gato e registraram uma gama de cerca de 300 vibrações por segundo provenientes dos sons que ele ouvia; e após um rato ser colocado no campo de visão dele, esses ruídos diminuíram para menos de 40. Ou seja: o sistema cognitivo do gato simplesmente filtrou os barulhos após ser colocado em situação de alerta. São em meandros assim que trabalha nosso sistema nervoso. Dizem os psicólogos da percepção que somente cerca de 10% dos mais de 90 mil sinais cognitivos que recebemos por segundo são tornados “conscientes” (ou seja: tomamos conhecimento deles), o restante é possivelmente processado e armazenado no que alguns chamam de Subconsciente, uma unidade cerebral que alguns cientistas mais ousados afirmam que toma as decisões antes mesmo de nós as conhecermos, o que filosoficamente se aproxima das afirmações de mestres hindus de que “temos duas cabeças, e uma delas está sonhando hipnotizada, enquanto a outra controla tudo a nossa volta” – tal declaração também se soma a metáforas de místicos como George Ivanovich Gurdjieff, que divide nosso sistema nervoso em Baixa e Alta Cabeça. Essa seria a explicação para o fato de, às vezes, não entendermos porque odiamos tanto alguma coisa, ou nos afeiçoamos a outra. De acordo com essa teoria, o Subconsciente (ou a Alta Cabeça) processou informações que nós nem sabemos que possuímos e tomou a decisão antes da gente. “Até a porcaria da barulheira que a minha vizinha velha faz pode afetar o modo como avalio um livro”, conta Nick Hornby em um livro sobre crítica literária que não lembro o nome agora. Em outras palavras: a experiência de avaliação e o modo como uma obra nos influencia não é nada parcial, não se inicia quando abrimos a primeira página e não termina quando fechamos a revista (tô usando o exemplo de revistas em quadrinhos por motivos óbvios, mas pode ser aplicado a qualquer produto ou obra cultural). É aí que entram três canais importantes: as editoras, as críticas e os scans. São três fatores interdependentes e, ao mesmo tempo, conflitantes. As editoras querem te mostrar apenas um aspecto das obras lançadas por elas, muitas vezes o modo como ela se relaciona com aquela saga nada épica lançada por ela, ou a fama do desenhista. O fato é que editoras são empresas, que precisam de dinheiro, e lançam um monte de produtos pra isso. Elas, com toda a certeza, têm consciência que nem tudo que lançam é bom, mas não podem perder dinheiro e têm metas a cumprir. Pra isso usam a propaganda, e escancaram a parte que julgam mais vendável em suas revistas e o resto que se dane. Eles tentam nos colocar em situação de alerta para uma parte do seu produto, para que filtremos sinais que poderiam estragar nossa experiência do ponto de vista deles. É exatamente a ideia de soltar um rato na frente de um gato. As críticas já trabalham em mares diferentes, pois visam mostrar que a propaganda das editoras não é lá muito de confiança, no fim das contas, e se põe a indicar ao público as coisas boas e ruins de uma forma mais imparcial e livre da influência editorial. As críticas devem ser amplas, pois os que as escrevem simplesmente não sabem do que cada leitor gosta, e precisam abranger o maior número de fatores possíveis – arte, cores, roteiro, cronologia, diálogos, etc. Isso num mundo ideal. Antes tínhamos jornais, revistas e sites que faziam esse serviço de avaliar previamente pra nós leitores, o que é possivelmente bom e o que é descartável. Às vezes esses dois lados brigavam, como o dia em que Frank Miller rasgou uma edição da revista Wizard, em abril de 2001, durante um Harvey Awards. “Tenha sempre em mente que se você se deitar com cachorros, pegará pulgas. Se deitar com vermes (o autor pega uma edição da revista Wizard), pegará vermes. Os executivos de Hollywood não lêem quadrinhos. Eles lêem a Wizard. Ou, pelo menos, as editoras pensam isso. De qualquer maneira, o resultado é o mesmo. Embora essa vulgaridade mensal (Miller rasga a capa da revista) reforce todo o preconceito que as pessoas têm sobre os quadrinhos (começa a rasgar as páginas), eles dizem para todo o mundo que somos tão baratos, estúpidos e sem valor quanto pensam que somos. E nós patrocinamos essa agressão“, falou na época de forma ácida. Em outro episódio, a crítica se uniu para detonar qualquer possibilidade de sucesso de A Saga do Clone, do Homem-Aranha. Se a obra é boa ou não, foge ao propósito desse meu texto opinar de forma detalhista (Eu particularmente odeio, e até dei todas as revistas para um amigo), mas na época, diversos sites combinaram notas e avaliações com o objetivo de detonar a obra frente ao público. Em outro momento, executivos inflaram as vendas das edições de Homem-Aranha, de Todd McFarlane, e de X-Men, de Jim Lee, através de especulações, que chegaram a casa dos milhões de exemplares, prática que ajudou a explodir o mercado de quadrinhos no fim dos anos 90. No meio de todo esse fogo cruzado, estão os leitores. É difícil ser leitor num ambiente psicológico e complicado desse. Principalmente longe do mundo ideal, quando as editoras fazem o possível para influenciar as avaliações dos críticos/blogueiros e criam sagas de quadrinhos interligadas e feitas de forma industrial com o único intuito de vender. É aí que entram os scans e outras formas de distribuição não-oficiais (ou piratas, na concepção da indústria). É meio que um discurso pronto de várias editoras de quadrinhos que os scans (ou os filmes e música para baixar) que a chamada “pirataria” destruiu a indústria, usando como argumentos os números de vendas nada positivos por parte da chamada Indústria Cultural. O discurso geralmente funciona, mas é leviano e só deveria ser aceito em um mundo que só conhecesse os mecânicos lógicos do puxa-empurra da física newtoniana… e os séculos XX e XXI nos fizeram conhecer a Relatividade e a Mecânica Quântica, que deveria, em tese, abrir a mente das pessoas a modelos de realidade muito mais abrangentes e complexos. Os scans parecem mais com uma resposta do público a um monte de porcaria lançada. É a reação do público – teoricamente impotente – frente a esse jogo comercial. Não estou falando aqui de questões morais, mas simplesmente de fatores práticos. Apenas as obras ruins parecem prejudicadas pelos scans, e existe um motivo bastante lógico para isso: os fãs lêem a revista de graça, e só compram as que gostam. Geralmente o boca-a-boca faz o resto. Sem dinheiro envolvido, outras questões entram em jogo na avaliação, várias delas nem foram abordadas nas linhas acima. Com ferramentas poderosas de cópia, o poder voltou aos leitores, que antes pareciam o lado mais fraco do triângulo. As propagandas influenciam menos, as críticas também e tudo se equilibrou um pouco mais. Logicamente que ainda existe muita rapinagem de todos os lados, mas pode-se dizer que a interdependência das vértices do triângulo agora estão mais seguras. Com mudanças tão dramáticas assim é difícil especular como estará o mercado daqui a cinco anos, ainda mais com estudos cada vez mais profundos sobre como nosso cérebro funciona. Mas, uma coisa parece cada vez mais certa: longas batalhas entre esses lados do triângulo continuarão cada vez mais fortes e emocionantes de se acompanhar, afinal, tudo isso influencia na forma como possivelmente apreciamos uma obra de quadrinhos!