Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr – Já sentiu uma alegria explodindo no seu peito, uma vontade muito idiota de ficar sorrindo sem motivo aparente? É estranho. Você tem vontade de sair gritando feito um desvairado, correr até ter câimbra nas duas pernas, agitar os braços e expressar essa alegria insana. Já sentiu isso alguma vez? Ela mirava o teto do quarto, falava com um sorriso nos lábios e um brilho reluzente no olhar. Gesticulava energicamente e seu tom de voz subia conforme descrevia aquele sentimento intenso. Ele virou a cabeça em sua direção e deu mais um trago em seu cigarro, sem filtro, e o mesmo sorriso esboçou-se em seus lábios. – Já. Quando eu vou em shows geralmente isso acontece. – E fora deles? Já sentiu isso fora de casas lotadas de gente? Sozinho, no meio da rua ou em uma situação diferente? Ele fez uma careta pensativa e coçou a barba escura com a mão vaga. Encontrava-se recostado na cama, as pernas relaxadas e parcialmente cobertas por um lençol branco. – Nunca parei pra pensar nisso. E você? Ela se sentou na cama virando o corpo pálido e magro em sua direção, o desenho colorido de um pássaro imperial e majestoso era o único contraste de cor naquela imensidão quente e muscular de pele clara. Ajeitou desleixadamente os cabelos para longe do rosto. – Já. Mas eu não sei o motivo disso. – Vai ver essa felicidade genuína não precisa de explicação, vai ver é uma coisa que a gente sente de repente. É triste se você parar pra pensar porque, levando em conta o mundo como ele é hoje, e as pessoas que vivem nele hoje, sentir essa felicidade genuína é uma coisa rara. Considere-se privilegiada. Ela virou o rosto para o lado e ele pode admirar seu perfil por uns breves segundos, o nariz pequeno e arrebitado, o queixo redondo e os lábios finos mas potentes. Lábios esses que ele havia almejado por muito tempo. Ainda parecia surreal demais pra ser verdade. – É, isso realmente é muito triste. A vida era realmente mais fácil antigamente pras pessoas eu acho. Não tínhamos tantas preocupações e eu acho que essa felicidade genuína era muito mais acessível. – Relaxa, ainda criam um aplicativo pra isso. Ela riu e ele apagou o cigarro. Reclinou-se em direção a garota de mãos curiosas, mãos essas dotadas de uma habilidade incrível. Ela sabia o poder das palavras mas principalmente, sabia como usá-las a seu favor. E foi assim que ela o trouxe para perto. Ela então o viu de perto. Depois de tantas imagens digitalizadas, depois de tantas letras enfileiradas na ordem certa, depois da distância e da surpresa. Ela então o viu de perto. Ele estava ali. Era real. Ele existia. Não era um holograma. Ou um programa de computador. Era carne, músculo, sangue, suor, ossos, pelos, cabelos, unhas, dentes, coração. Ele era de verdade. Era um homem. E ela sabia que um dia, ele iria embora. Passou os dedos brancos e calejados em seus cabelos encaracolados e rebeldes, deixou-os afundar naquela imensidão escura e sentiu a textura suave dos fios. Não ligou para o suor que residia no couro cabeludo, ela mesma estava suada, não era relevante para o momento. Brincou com o lóbulo da orelha dele soltando um risinho de malícia ao se lembrar do que fizera minutos antes, desenhou o contorno na mandíbula com o dedo indicador descendo pelo centro do pescoço e acariciando suavemente as clavículas. Ele mirava o que acontecia na hora. Seus olhos tinham um calor tenro e até paternal, “Quero o melhor para você” e, inconscientemente, um riso genuíno aparecia em seus lábios de modo discreto. – Por que você gosta tanto de me tocar? – Porque eu ainda não acredito que você existe e que você esta aqui comigo. Seu olhar encontrou com o dela e então os dois polos de cor se chocaram, o marrom da terra com o azul do mar. Dois extremos que colidem numa proximidade afetiva, pura e dependendo da situação, carnal. – É difícil acreditar mesmo. – 5 anos já. 5 anos que a gente sabe da existência um do outro, e ainda assim, cada um foi pro seu lado. – As coisas funcionam de um jeito estranho, não é como os religiosos dizem “Deus escreve certo por linhas tortas?” – Deus é disléxico então? – Não, acho que só torto mesmo. Riram. Juntaram as testas e fecharam os olhos, ela deixou que as mãos dele passeassem por suas costas magras, embolando-se em seus cabelos, “Cabelos de sereia” como ele mesmo diria, eventualmente e parando em seu queixo. – A gente não vai se apaixonar né? – Não sei. Você vai? – Preciso saber se você vai ou não, pra não me machucar depois. Você vai? – Não sei. Você acha que vai? – Posso não me apaixonar, mas você já sabe onde fica o mapa que guarda o tesouro. Ele segurou seu dedo anelar esquerdo, o dedo mais importante, e beijou a cicatriz em formato de “X” como que abençoando um tesouro de navio pirata. Ela riu. Não iriam se apaixonar, não naquele momento. – Posso vender essa informação por muito dinheiro, você sabe disso? – Você sabe mexer com dinheiro e sabe as palavras difíceis de economia, não é justo. – Ficarei rico as suas custas! Riram novamente. Ela lhe mandou uma careta e um leve soco no braço. Viu o polvo e a âncora, viu o leme e a embarcação, as cordas e gaivotas. Talvez ele fosse um corsário atrás de sua fortuna, talvez fosse somente um navio mercante atrás do porto certo, viajando pelos sete mares e, eventualmente, topando com sereias em seu caminho. Ele a derrubou na cama deitando parcialmente em cima de seu torso, tateou suas costelas até sentir as guelras, acariciou as escamas e contornou a coruja que morava em sua perna. Uma incongruência. E não era assim todo o ser humano? Uma incongruência de personalidades? Uma desarmonia de vontades e não coesão de sonhos? Viu as penas, o bico, a rosa e os olhos ferozes. Uma coruja selvagem pertencente a uma sereia. Dizem que a alma da gente nada tem a ver com o corpo e isso ele agora via como sendo uma verdade. Seria essa coruja domável? Ficaria ela por vontade própria e levantaria voo quando entediada? Cortaria ele os dedos em seu bico ou nos espinhos? Suas penas eram mesmo tão macias quanto aparentavam? Encarou o desenho por segundos filosofando a respeito daquela sereia de concreto vivendo num mar de edifícios recheado de enguias subterrâneas e tubarões em firmas de advocacia. Um mar onde os piratas não içam velas e as barracudas nadam sempre no mesmo sentido quando o relógio bate seis horas. – Você também tem uma coruja na perna, não precisa olhar tanto pra minha. – A sua é diferente. Ela morde. – Só morde se eu quiser que ela morda. – E você quer que ela me morda? – Não, quem vai te morder sou eu. De novo. Ele riu conforme ela o puxava para perto, deitaram num beijo risonho e infantil. Puro e carinhoso, intenso, mas só quando adequado. Cordialmente, o pássaro majestoso permitiu que ele o tocasse, atravessando os dedos por suas penas coloridas sem nunca derrubar a coroa que usava. Permitiu que as unhas arranhassem uma declaração de amor sem arruinar o sentimento e sentiu a partida das mãos conforme elas subiam para a coluna. Ela enrolou os dedos nos cabelos negros novamente, fez cachos e mais cachos conforme seu corpo afundava numa âncora guardada por um polvo de três pernas. Deixou o ar das velas do navio secar seus cabelos molhados de água salgada e não sentiu o desespero de respirar. O lençol branco se perdera na espuma do mar e o colchão dera espaço para o casco do navio que balançava segundo o ritmo das ondas. A lâmpada virara o sol, mas sem os efeitos ultravioleta, e a música soava como gaivotas pairando pela imensidão do céu de brigadeiro. – Eu já entendi porque você me enfeitiçou. – Ah é? E qual foi o meu segredo? – Você cantou pra mim. “Sua… Sua… Sua sereia de Homero!” O post Feitiço apareceu primeiro em Mob Fiction.