Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr [ARTE DA VITRINE]: Thiago Chaves (@chavespapel) Texto publicado originalmente em: 02/10/2009 Algumas obras de arte não precisam ser assinadas… Frase-lema das Forças Especiais Americanas Testemunhas? Que testemunhas? Frase usada por Thompson para se livrar das acusações do FBI Não existe piada. A Verdade é a piada mais engraçada de todas! Muhammad Ali Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada E. Burke Um jornalista nada mais é do que uma espécie de olhos e ouvidos da sociedade, como bem prega a definição que os professores insistem em passar para os alunos que desejam se tornarem integrantes dessa raça miserável. Bom, para muitos pode até ser, mas isso passou longe da realidade de Hunter Thompson. Basicamente ele não estava nem aí para factóides e meias verdades como a afirmação acima, preferindo ele mesmo ser personagem de suas matérias e não tendo problema em colocar sua opinião à frente de qualquer tentativa de imparcialidade jornalística. Suas obras vão muito além do estilo que prefere resumir à esclarecer da maioria dos jornais de hoje. Reportagens dele, como a cobertura das eleições que levaram Nixon ao poder – ao escrever o obituário de Nixon para a Rolling Stone, em 94, o descreveu como “um homem que pode apertar sua mão e o apunhalar nas costas ao mesmo tempo” – chegam ao impensável número de 19 mil palavras, o que dá em torno de 80 mil caracteres (a maior matéria desse blog tem 48 mil caracteres). Fora o tamanho que afugenta a maioria dos leitores – e dos veículos que poderiam publica-los – suas reportagens primam pela acidez contra o chamado establishment e o american way of life. No âmago, Hunter amava os EUA, mas odiava o modo como ele foi se degradando! Duas de suas melhores obras (são todas excelentes, então acho que sempre vou me referir a elas dessa maneira) tratam de coisas complementares da vida dele: suas melhores reportagens, reunidas no livro A Grande Caçada aos Tubarões, e uma autobiografia maluca, no livro Reino do Medo. Se esse post fosse um Guia da Obra de Thompson, recomendaria começar pela Grande Caçada… pois Reino do Medo surge como uma espécie de bastidores de sua coletânea de reportagens, além de um compêndio que reúne uma gama de comentários dele e sua visão de mundo. Mas como esse post não é nada disso, fique à vontade para começar com o primeiro que aparecer na sua frente. Mas leia… As estruturas narrativas dos dois livros também são bastante diferentes, mas têm a mesma essência. O primeiro é organizado, cronológico e conta com textos que, mesmo pertencendo ao chamado Jornalismo Gonzo (talvez um primo em segundo grau do gênero de filmes pornôs com o mesmo nome. Talvez…), têm apuração e o rigor que um texto jornalístico exige. Já sua autobiografia é tudo que se poderia esperar de uma autobiografia de Thompson: pé no acelerador até o limite, sem dó ou medo. Reino do Medo é como uma cereja em cima de um bolo de chocolate meio-amargo: é gostoso comer o bolo, e complementar tudo com a cereja, mas no fim o gosto não-tão-agradável vem à tona junto com aquela vontade louca de nunca mais comer chocolate meio-amargo. Mesmo com O Reino contando com algumas reportagens feitas por ele (e outras feitas por veículos cool, como o Village Voice), não é esse seu objetivo. A estrela do livro são os comentários insanos tecidos por Hunter enquanto gastava grana das editoras pra escrever seus textos e se divertir, além dos bastidores de sua campanha pra xerife de Aspen (foi tema de sua primeira matéria para a Rolling Stone, e… perdeu por poucos votos), sua primeira prisão pelo FBI… aos nove anos (!)… entre outras maluquices, como uma acusação de estupro que mobilizou meio mundo em sua defesa. Os dois livros somados são como uma espécie de Vida e Obra dele, e só resta a você escolher qual o que mais lhe agrada, embora Eu aposto que será os dois. Logomarca da campanha de xerife de Hunter… A Grande Caçada aos Tubarões – Histórias Estranhas de um Tempo Estranho é praticamente uma linha do tempo da política e da sociedade americana dos anos 60 para cá, assim como foi com seu livro dos Hell’s Angels, que se afundou na psique dos degradados mais famosos da sociedade americana nos anos 60. Algumas coisas são meio difíceis de acreditar, mas o fazemos pura e simplesmente por estarmos absolutamente mergulhados no universo e nas ações loucas de personagens ainda mais malucos descritos por ele (é mais ou menos como ler a biografia de Chuck Barris e não saber se ele realmente foi um matador a serviço da CIA). Sua reportagem sobre a campanha de Nixon inclui momentos em que ele espancou um dos chefes de campanha do narigudo do escândalo Watergate, e ainda pretendia sair de carro por aí arrastando o maldito até ele pintar o asfalto com o próprio couro… enquanto mandava pra dentro alguns quadrados de LSD. Ao final, o memorando da Rolling Stone sobre sua temporada em Washington durante essa matéria é absolutamente revelador: “Durante um período de quatro dias em Washington, ele destruiu dois carros, rachou uma parede no Washington Hilton, comprou duas trompetes de 1.100 dólares cada e atravessou uma porta de vidro num restaurante turco”. O fato de praticar o que ele mesmo chamava de Jornalismo Gonzo – que uma multidão de jornalistas por aí dizem fazer, não entendendo que o estilo morreu com Thompson – tornavam suas reportagens muito mais divertidas e ao mesmo tempo contundentes, afinal, quando o cenário não era promissor para uma história boa de verdade, ele o tornava bom. Um exemplo clássico é na reportagem que dá nome ao livro, A Grande Caçada aos Tubarões, em que ele vai cobrir um final de semana de pescaria no Caribe, com um bando de ricaços inúteis em seus iates caríssimos como personagens. Como a chatice imperava na ilha, ele, acompanhado do artista Ralph Steadman, tratou de partir numa cruzada noturna para pichar os barcos com letras vermelhas e palavras de ordem… e não demorou para ser flagrado e dar início a fuga do lugar, mas não sem antes procurar um haitiano para reforçar seu estoque de drogas e contar com meio mundo em seu encalço, inclusive sujeitos que ele suspeitava serem da Máfia. Tudo isso num fôlego só… e devidamente publicado em veículos alternativos como o The Nation, National Observer, Playboy e Scanlan’s Monthly. Entre outros momentos importantes de sua antologia de reportagens, estão as suas matérias sobre os movimento beatnik (embora Jack Kerouac tenha feito relatos mais detalhados desse movimento em livros como On The Road e Visões de Cody), que florescia nos subúrbios americanos, e a explosão das drogas em regiões como a de São Francisco no fim dos anos 50, início dos 60. Ou ainda o fim da geração hippie, em que muitos dos seus integrantes estavam em guetos à beira de cidades importantes como Chicago, vivendo em comunidades livres, e regados a drogas, para desespero do governo. Muitos brasileiros e latino americanos logo se identificam com a parte (volumosa) de A Grande Caçada em que Thompson é destacado como correspondente do National Observer para a América Latina… e passa momentos sinistros por aqui. O mais admirável é que ele desce para conhecer seus irmãos pobres abaixo da linha do Equador justamente no momento mais intenso da política local: uma sucessão de golpes militares trazem ventos de instabilidade para esse canto do mundo, e Thompson passa por vários problemas por conta disso. Ele começa seu itinerário pelo Peru, se hospedando numa vila de indígenas. “Um local cheio de mosquitos”, como ele descreveria no texto, e desce para o Brasil, onde vê casos loucos envolvendo a violenta polícia carioca (e uma onça atrás de uma boate, como ele revelaria em Reino do Medo) em tempos de pré-Regime Militar, além de um atentado do Exército na mesma boate da tal onça. Cronologicamente falando, o período é como um divisor de águas na vida do jornalista, já que seria em 65 em que ele mergulharia no mundo dos Angel’s, e ganharia fama internacional ao lançar seu livro-reportagem no ano seguinte. Isso tudo após morar em Copacabana por quase um ano… Seria também na década de 60 que ocorreria o pontapé inicial do que ele batizou como Gonzo. Chamado pela revista Sports Illustred para cobrir o Kentucky Derby, uma centenária corrida de cavalos que ocorria anualmente na sua terra Louisville, Thompson prontamente aceita… e se embebeda, juntamente com Ralph Steadman, que estava junto com ele. O resultado da matéria foi um extenso e detalhado estudo sobre o modo de vida dos sulistas americanos intitulado O Kentucky Derby É Decadente e Depravado. Os editores da revista odiaram – bom, é fato que a matéria não tinha nada de esportivo. Nem o nome do vencedor tinha -, e só o contratariam como freelancer novamente quando Thompson já passava dos 50, para escrever uma coluna sobre futebol americano, uma de suas paixões. Mas ele logo sairia da revista e manteria uma coluna sobre o mesmo esporte no site da ESPN, o que seria sua última atividade jornalística. Logo depois viria o seu já citado artigo sobre sua campanha para xerife de Aspen pela plataforma Freaky Power. Anos depois (já escrevendo Reino do Medo) ele diria que o artigo, apesar de brilhante, foi um dos motivos para a sua derrota – se levarmos em conta que sua plataforma defendia, em uma cidade de ricaços, o uso livre de drogas e a transformação das ruas em ciclovia, há de se convir que um artigo é pouco para uma derrota – pois revelava estratégias-chave do seu grupo, além de criar um estudo preciso das táticas do inimigo. Como a Rolling Stone gostou do seu texto, o chamou para algo mais ambicioso: uma viagem sem destino e com gastos quase ilimitados para “a descoberta do sonho americano”. Como não era do tipo de homem que demora para tomar decisões (isso inclui decisões de ir para lugares bizarros, como Cuba na época revolucionária, e Granada, uma semana depois da invasão americana), ele prontamente aceitou… e não tardou para alugar um carro, que logo receberia o apelido de Grande Tubarão, com o porta-malas cheio de ácido e outros entorpecentes e saiu pelo “coração selvagem da América” . O resultado seria a maior obra dele: uma série de artigos na revista, que anos depois seriam reunidos no livro Medo e Delírio em Las Vegas – Uma Jornada Selvagem ao Coração do Sonho Americano (tema do meu próximo e último artigo sobre Thompson). Um fato marcante é que percebemos o passar da idade de Hunter somente por referências à época descrita por ele, pois o acelerador não deixar de ser pisado. Talvez os últimos capítulos de Reino do Medo – Segredos Abomináveis de um Filho Desventurado nos Dias Finais do Século Americano recebem um pouco da carga da idade passando para ele, principalmente no gosto amargo de seus comentários (brilhantes) sobre o 11/9, o Governo Pastelão de Bush e das sucessivas Leis Patrióticas que culminam no cerceamento da liberdade dos moradores americanos, incluindo a liberdade dele, que tem é vítima de uma batida abusiva da polícia. É como um prenúncio do pior que estava por vir: um tiro de espingarda na cabeça, cremação, e cinzas jogadas no espaço. Tudo no estilo de um dos seus ídolos, Ernest Hemingway, que se matou da mesma forma em 1961. Já nos anos finais de sua vida (sei lá, mas acho que ele teve um certo planejamento antecipado no seu suicídio) ele resolve escrever uma autobiografia – que basicamente é o melhor livro de não-ficção que já li, e não é só porque sou jornalista. Junto com o livro, uma tonelada de histórias fulminantes, como o fato de ter se tornado jornalista fugindo de uma acusação de destruição de propriedade privada (ele trabalhava de motorista e bateu o carro do patrão); ao fugir, acabou se alistando na Força Aérea, onde escreveria no jornal militar, além de mandar matérias para um jornal local chamado The Playground News. Você pode até não gostar do tom grosseiro do livro em alguns momentos, mas há de convir que o fato de possuir um capítulo chamado Jesus odiava buceta depilada é um motivo de respeito e risadas. Se isso não é suficiente, espere até ler sobre a época em que ele foi gerente noturno de um dos clubes mais depravados dos EUA! Mais uma vez a estrutura de como é montado o livro é uma estrela à parte, principalmente pelo fato de praticamente estar ausente quase qualquer tipo de organização. Aparentemente o livro foi escrito como uma metralhadora disparando a esmo, sem qualquer mira ou direção. Mas com o passar das páginas se percebe que o vai e vem no tempo, as entrevistas extensas feitas com ele, as bizarras mudanças de fontes do livro… tudo faz um sentido absurdo, e são um artifício para o modo Thompson de contar a própria vida, sem nunca sobrepor seus livros anteriores. Isso significa que não basta ler sua biografia para entende-lo (mesmo se tratando de um livro de 500 páginas, coisa rara de ser lida no mundo de hoje), mas sim toda a sua obra, pois cada parte contém um pouco da essência que foi o autor. Ajuda o fato de Thompson possuir uma escrita brilhante, que faz falta em muitos jornalistas atuais, que escrevem para pagar o aluguel… com um olho na aposentadoria. Mas, em tempos de 140 caracteres e de lides mais resumidos que notícias sobre derrotas da nossa seleção, não é de admirar que um dos escritores americanos mais importantes e brilhantes das últimas décadas passe batido dos cursos de jornalismo, e da população em geral. Acredite, a viagem vale a pena… e nem preciso colocar a nota dos dois livros abaixo pra vocês saberem que é um 10! Livro: Reino do Medo – Segredos Abomináveis de um Filho Desventurado nos Dias Finais do Século Americano (Cia das Letras, 2008) Páginas: 488 Livro: A Grande Caçada aos Tubarões – Histórias Estranhas de um Tempo Estranho (Editora Conrad, 2007) Páginas: 327