Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr “O amor marca as pessoas, isso é fato.” – ele respirou fundo e deu o último gole do seu café, segurou o copo da cafeteria famosa nas mãos e deixou o corpo relaxar de encontro a parede. O sol estava forte e ele se refugiava na sombra do estabelecimento em que se encontrava. Observou as pessoas que chegavam e saíam, todas lhe direcionavam um olhar de censura de hora em hora, talvez a camiseta preta chamasse atenção no ambiente tropical, talvez as calças fossem motivo de comentário sendo que todos usavam shorts, bermudas, saias ou vestidos. O cabelo bagunçado? A barba por fazer? As olheiras? Ele não conseguia entender, não que aquilo o incomodasse, muito pelo contrário, ele gostava daquilo. Gostava de ser um ponto escuro num lugar claro e repleto de pessoas aparentemente felizes e saudáveis, apreciava saber que falavam dele com palavras negativas. Ele gostava de cutucar a ferida de uma sociedade que se dizia livre de injúrias e tolerante a tudo e a todos. “Por quê?” – uma garotinha de cabelos alaranjados se postou ao lado dele, usava roupas floridas e coloridas, tinha um olhar inocente e não se importou com a aparência do jovem alto e extremamente pálido que falava sozinho. Ele virou a cabeça na direção dela e sorriu. “Hein moço, por quê?” “Porque você muda com o amor moça. Você vai entender um dia.” – ela cruzou os braços emburrada “Todos os adultos sempre me dizem isso mas eu quero entender. A gente aprendeu na escola que casais que se amam ficam juntos pra todo o sempre, isso significa que meus pais não se amam mais?” – ele ergueu as sobrancelhas em surpresa. “Não necessariamente, seus pais se amaram muito um dia, e você nasceu desse dia” “Como? No livro que eu li diz que é a mulher que é a mamãe.” “Tá certo.” “Mas eu não tenho mamãe” – ela olhava para baixo e por vezes mirava os brilhantes olhos verdes para o moço alto como que se certificando de que ele prestava atenção e de que não a estaria levando como todos os outros adultos faziam quando ela tocava no assunto, como uma piada. “Ela morreu?” – ele agachou voltando a cabeça pra ela. Lidar com crianças era complicado e ele não sabia muito bem como fazer isso, não tinha irmãos mas já havia interagido com sobrinhos de amigos ou outras crianças que por vezes iam até ele fazer perguntas ingênuas que o faziam cair na gargalhada. Crianças são curiosas. “Não, não seu bobo. Eu tenho papais e não um papai e uma mamãe.” – ele ergueu as sobrancelhas mais uma vez. A menina já esperava que o tratamento fosse diferente de ai em diante, sempre era assim. A partir do momento que mencionava o fato as pessoas se dirigiam a ela de outra maneira, como se ela fosse uma coisa estranha ou rara. Ela odiava isso. “Nossa, que legal.” – o olhar emburrado virou surpresa e ela descruzou os braços se voltando inteiramente para ele. “Sério que você acha legal?” “Claro que acho, eu tenho amigos que namoram meninos. E eu tive duas mamães” – ela sorriu maravilhada. Havia encontrado alguém como ela entre tantas pessoas que aparentavam não se incomodavam com aquilo. “Ai que legal moço! Como é ter duas mamães?” – ele ergueu a cabeça pra pensar “É igual a ter dois papais ou um papai e uma mamãe.” “Ah achei que seria diferente!” – ela ficou ligeiramente brava e ele riu. “Não tem porquê ser diferente moça, é a mesma coisa.” “Mas então por que meus papais não se amam mais?” – crianças tem uma habilidade incrível de encurralar adultos. Ele ficou a olhando, viu a esperta que exalava dos poros dela, a expectativa de ter a dúvida solucionada e ser automaticamente promovido a heroi. Procurou as melhores palavras para responder a garotinha, adultos são sempre assim, querem proteger os menores enquanto ainda é tempo. Ninguém dessa idade precisa saber da verdade tão cedo. “Tem certeza de que eles não se amam mais?” “Você disse que eles se amaram muito e eu nasci. Mas agora eu não tenho nem um irmão, nem uma irmã, eles não se amam mais por causa disso?” – a tensão de antes foi substituída por um alívio imenso, o que acarretou uma gargalhada da parte dele, colocou a mão livre na testa e pendeu a cabeça para trás se sentindo alguns quilos mais leve. “Hei não é engraçado! Seu bobo!” “Desculpe, desculpe. Seus pais se amam sim. Eles moram juntos?” “Sim. A nossa casa é super legal, tem até piscina.” “Eles vivem conversando e dando risada?” “Sim, na hora da janta a gente sempre fala do dia, do que a gente fez, com quem a gente conversou. E o papai sempre da risada com as piadas do meu outro papai. E a comida é uma delícia, meus papais adoram cozinhar.” “Eles cozinham juntos sempre?” “Sim, mas você não respondeu minha pergunta.” “Calma, não acabei . Você já viu algum deles triste ou diferente?” – ela ergueu a cabeça pensando, torceu a boca rosada e pequena num bico. Ele admirava a inocência dela se lembrando do tempo em que ele era assim, por um momento recordou-se de quando seu maior problema, era ganhar no futebol na escola e seu pior pesadelo era a prova de matemática da semana seguinte. Crianças são curiosas. Por que temos que crescer tão cedo? “Hum… Teve uma vez. Eu não conseguia dormir e fui no banheiro, eu tinha bebido muito suco porque eu adoro suco. Ai eu fui no banheiro mas ouvi dos meus papais chorando no quarto, eu não entendi porque ele tava chorando, mas eu fiquei com vontade de chorar também.” “E o seu outro papai estava com ele?” “Sim, ele tava abraçando ele e fazendo carinho na cabeça dele.” “E você já os viu brigando alguma vez?” “Já, mas eles sempre ficam amigos de novo. Dão até o mindinho”– ele riu. Seria maldade demais sentir inveja do que ela dizia sobre os pais? “Ha, há, que legal. Não se preocupe não moça, seus pais se amam muito sim.” – ela o olhou curiosa mas com um pouco de dúvida. “Como você sabe disso?” – ele olhou para o lado e então os viu de mãos dadas. Estavam de olho, cuidando de longe da filha que conversava com um aparentemente estranho na espreita de que algo pudesse acontecer. Ele sorriu e com isso ela também os viu, acenou e apontou para eles se voltando para o moço. “Olha são eles! Oi pai! Oi pai! Esse moço é super legal!” – eles riram e a chamaram para ir.. “Acho que é hora de você ir embora moça.” “Mas e a minha resposta?” “Eles se amam muito moça, dá pra ver de longe. Não se preocupe não.” “Você fica sempre aqui moço?” “Sim, eu trabalho aqui.” “Ah então eu vou te ver de novo! E você vai conhecer os meus papais! Ai eles vão ficar amigos das suas mamães e vocês vão ir na minha casa com piscina!” – ele riu levantando e esfregou os joelhos com a mão. Ainda tinha o copo vazio de café consigo. “Tudo bem moça, até mais” – ela acenou e correu na direção dos pais, ele mandou um aceno de cabeça aos dois que o corresponderam com um sorriso cordial e rápido. Ele esticou as costas e finalmente jogou fora o copo sujo, viu os três irem embora. Ela falava constantemente e apontava para coisas inexistentes, eles riam e seguravam as mãos um do outro, ele sacou o celular do bolso. “Alô mãe? Tudo, tá tudo bem. A mãe tá ai também? Tá, coloca no viva voz por favor? Tá no viva voz? Ah, okay. Então, eu só queria falar que amo muito vocês. Era só isso só, quando eu chegar em casa conto de uma amiga que eu fiz no trabalho. Tá, okay. Beijos, tchau.” O amor muda as pessoas, isso é fato. O post Laço, fato, inocência e curiosidade apareceu primeiro em Mob Fiction.