Havia um grande número acima da porta do edifício. Era o número cinco. Antes que os americanos entrassem, o único dos guardas que falava inglês disse-lhes que memorizassem o endereço simples, para o caso de se perderem na cidade grande. O endereço deles era o seguinte: Sclachthof-fünf. Sclachthof significava matadouro. Fünf era o bom e velho cinco.

É curto e confuso e estranho porque não há nada inteligente a ser dito sobre um massacre. Teoricamente, todo mundo deve estar morto, para nunca dizer mais nada e querer mais nada. Teoricamente, tudo deve ficar muito silencioso depois do massacre, e sempre fica, exceto pelos pássaros. E o que dizem os pássaros? Tudo o que há para dizer sobre um massacre. Coisas como: ‘Piu-piu-piu’.

Houve uma época em que a maioria dos livros era terrivelmente cara para meus bolsos geralmente vazios. Minha única chance de ler novos livros era freqüentando a biblioteca do bairro. E foi lá, naquele local decrépito e pequeno, que tive meus primeiros contatos com Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Stephen King, Camus, entre outros. Um dia, ao procurar um livro que me interessasse naquele acervo humilde e reduzido, avistei um pequeno e antigo volume de cor verde e lilás. Ele se tornaria um dos melhores romances que já li. Seu nome, ainda um completo estranho aos meus olhos, era Matadouro-Cinco.

A guerra sempre foi uma grande fonte de inspiração para os mais diversos artistas. São músicas, quadros, filmes, graphic novels e livros sobre o tema. A Segunda Guerra Mundial, como um dos eventos históricos mais importantes do século XX, não foi diferente. Até hoje, mais de sessenta anos após o seu desfecho, surgem novas obras sobre ela. Mas tal conflito parecia não inspirar um jovem escritor americano chamado Kurt Vonnegut, por mais que ele quisesse. Como um veterano ex-prisioneiro de guerra ele tinha a ambição de escrever sobre um dos eventos mais importantes de sua vida: o bombardeio da cidade alemã de Dresden, o maior de toda a guerra. Tinha certeza que poderia fazer um grande romance ou pelo menos vender bem com um evento tão grandioso como esse na história. O problema é que as palavras quase não lhe saíam da mente. E as poucas que saíam não eram suficientes para um livro inteiro. Pelos seus cálculos, em todos aqueles anos, já deveria ter escrito cerca de cinco mil páginas. Insatisfeito com o resultado, o destino delas era sempre o lixo. Somente depois de vinte anos do fim da guerra, quando já tinha mais de cinco livros escritos e tinha um público restrito, mas fiel, que concluiu sua tão adiada obra sobre Dresden. Com o seu Matadouro-Cinco pulou do underground para o grande público. Seu estilo ácido tornou-se famoso no mundo inteiro, encabeçando as listas de mais vendidos e passando a ser considerado, não sem razão, um dos maiores escritores americanos vivos.

Já então eu estava supostamente escrevendo um livro sobre Dresden. Na época não era um ataque muito conhecido nos Estados unidos. Poucos americanos sabiam o quanto aquele bombardeio tinha sido pior do que Hiroshima, por exemplo. Eu não sabia. Não fizeram muita publicidade a respeito.

Um romance de ficção científica? De guerra? De sátira? Um libelo pacifista? Uma autobiografia? Como acontece com todos os romances de Kurt Vonnegut, Matadouro-Cinco é impossível de se definir. Ele não se limita a um só gênero, pelo contrário, dança por eles sem nunca se atrapalhar. É quase como se para fazer um bolo se colocasse pimenta, alho, ovos e vinho e o resultado fosse um doce muito mais delicioso que a maioria dos bolos convencionais. Estranho, mas bom.

O início de Matadouro-Cinco é metalingüístico e autobiográfico. Yon Yonson, um escritor de Cape Cod, quer escrever um livro sobre suas experiências na Segunda Grande Guerra, principalmente o bombardeio de Dresden. Então se encontra com um antigo amigo da guerra para relembrar essa época. A partir desse encontro, ele finalmente consegue terminar seu livro. Só depois disso começa o livro dentro do livro, A Cruzada das Crianças. Billy Pilgrim, o protagonista, é um americano comum. Quer dizer… tão comum quanto uma pessoa que, sem motivação aparente, começa a dar saltos no tempo. Ele revisita diversos momentos da sua vida. Entra por uma porta em 65, sai por outra nos 40. Dorme em 1930 e acorda em 1957. Ele não possui nenhum controle sobre essa habilidade e nem pode alterar suas ações e palavras nas ocasiões que tem que reviver. Conseqüentemente, o livro não é narrado em ordem cronológica, e sim na ordem das viagens temporais de Billy. Entre os momentos da sua vida que tem que reviver está a sua captura por soldados nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Billy estava espasmódico no tempo. Não tem controle quanto a onde irá seguir, e suas viagens não são necessariamente divertidas. Está num constante estado de medo do palco, diz ele, porque nunca sabe qual parte de sua vida ele terá de viver a seguir.

A idéia de que um momento segue o outro, como contas num colar, e de que ele passa para sempre é apenas uma ilusão que temos aqui na Terra.

Billy Pilgrim não é o típico soldado heróico que os filmes americanos nos empurram goela abaixo. Em Matadouro-Cinco nada é típico. Ele é um fracote idiota que não deveria nem ter sido enviado ao front. Não tem armas, uniforme, capacete, nada. É apenas um inútil, um atraso para os companheiros, pronto para ser morto a qualquer momento. O palhaço involuntário da guerra. Seu único diferencial é saber como tudo termina. Sabe que Dresden vai ser bombardeada até não sobrar pedra sobre pedra. Sabe que sua esposa vai morrer envenenada. Sabe como vai falecer. Que vai ser abduzido por alienígenas tralfamodorianos. Matadouro-Cinco dispensa máquinas do tempo, De Loreans e afins. Billy viaja no tempo entre um cochilo e outro. E os alienígenas do planeta Tralfamador vão querer dominar a Terra ou passar uma mensagem para o nosso líder. Eles só querem saber de controlar as viagens no tempo para reviver os melhores momentos das suas vidas. Esses são os elementos de ficção científica do romance, mas nunca fica claro se são verdadeiros ou simples frutos da mente de Billy perturbada após o fim da guerra.

Os outros se aproximaram para limpar a neve de Billy e revistá-lo em busca de armas. Não havia nenhuma. O objeto mais perigoso que encontraram foi um toco de lápis de cinco centímetros.

Kurt Vonnegut talvez não tivesse a mesma genialidade de Douglas Adams e seu clássico Guia do Mochileiro das Galáxias, capaz de criar mundos e raças, mas seu Matadouro-Cinco vai muito, muito além de um simples livro de humor. Com seu estilo tragicômico, ele aborda momentos sérios e trágicos com seu senso de humor negro e absurdo. Vemos pessoas inocentes sendo mortas e massacres, mas Vonnegut escreve de um jeito que nos faz rir disso. A risada como nossa auto-defesa. A sensação passada é que nós rimos para não chorar. Isso só é possível graças aos artifícios do autor para eliminar o nosso maior temor: a morte. Aqui a pessoa nunca morre, ela continua viva no passado. Os momentos das nossas vidas se repetem infinitamente. Elas sempre estiveram lá e sempre estarão. E para que Billy evite os momentos ruins ele só precisa fechar os olhos e partir para a próxima viagem. Mas, nesses breves momentos, podemos sentir os horrores da maior guerra de todo um século, com um saldo de milhões de mortos.

Vonnegut não fica preso aos elementos de ficção científica que inclui no enredo. Você não vai ver em Matadouro-Cinco como as naves dos tralfamodorianos funcionam ou outras explicações científicas. Se você quiser ler algo desse tipo procure Asimov ou Julio Verne. A ficção científica aqui está para abordar situações e esboçar idéias. As leis físicas ficam em segundo plano em sua obra. Quando não se há preocupação com elas o único limite para o escritor é a sua imaginação, e a imaginação de Vonnegut parecia não ter fim.

Havia uma garrafa de refrigerante no peitoril. O rótulo se jactava de que a bebida não continha qualquer nutriente.

Os oito dresdenses ridículos se asseguraram de que aquelas cem criaturas ridículas eram realmente combatentes americanos recém-saídos do front. Sorriram e, depois, riram. O terror que estavam sentindo evaporou-se. Não havia o que temer. Ali estavam outros seres humanos, aleijados, tolos como eles.

Além de conseguir unir inúmeros estilos dentro do mesmo livro, Vonnegut conseguiu provar sua genialidade. Ele dispensa todos os artifícios que os escritores costumam usar para segurar os leitores. Não precisa criar um clima de suspense tolo, de um grande mistério que sustente a história. Desde o primeiro capítulo ele já nos revela todos os pontos importantes da história, os personagens que vão morrer e, sobretudo, o final: o bombardeio de Dresden. A desgraça anunciada. Ele simplesmente dá tantas informações que o próprio leitor poderia terminar a história e abandonar o livro às traças. Mas não é isso o que acontece. Não é o que vai acontecer que importa aqui. É como. O fato de sabermos bem o que vai acontecer só aumenta nossa expectativa. A trajetória até aquela situação e as conseqüências dela. A antecipação das cenas até serve de ironia, com personagens comentando como Dresden era uma cidade que jamais seria bombardeada.

De vez em quando o guarda subia as escadas para ver como estavam as coisas do lado de fora. Então, descia e sussurrava para os outros guardas. Caía uma tempestade de fogo lá fora e Dresden era uma grande labareda. A única labareda consumia tudo o que fora orgânico, tudo o que fosse inflamável.

Vonnegut sempre foi um mestre em criar personagens inusitados. Em Matadouro-Cinco podemos ver alguns dos seus melhores de toda a sua obra. Um soldado que se torna amigo de Billy só porque na escola tinha o costume de se tornar amigo do cara mais fraco só para espancá-lo depois; outro que promete matar qualquer pessoa que entre no caminho dele, até mesmo um cachorro; Kilgore Trout, um escritor de ficção científica completamente obscuro e anti-social, que a partir de Matadouro 5 daria as caras em vários outros livros. Cada idéia de Trout era capaz de reaparecer em um novo livro de Vonnegut.

Nessa história quase não há personagens ou confrontos dramáticos porque a maioria das pessoas dentro dela está tão doente e não passa de um joguete passivo nas mãos de forças enormes. Um dos principais efeitos da guerra, afinal, é que as pessoas não são encorajadas a serem personagens.

Vonnegut era acima de tudo um sádico com seus personagens. Ele mete Billy Pilgrim em todo tipo de situação constrangedora e dolorosa durante a narrativa. Nem Billy e o restante dos personagens têm poder para mudar o rumo dos acontecimentos e nem poderiam. São apenas dezenas entre milhões de pessoas na guerra, apenas lutando para permanecer vivos.

Os ingleses eram adorados pelos alemães, que achavam que eles eram exatamente como os ingleses deviam ser. Eles faziam a guerra parecer cheia de estilo, razoável e divertida.

Entretanto, mesmo com todas essas qualidades, uma só coisa poderia jogar todo o trabalho de Vonnegut no esgoto: Ele tomar o partido de um lado ou um país no livro. Felizmente, ele segue o caminho contrário. Embora seja americano, retrata os soldados dos Estados Unidos de forma bem menos lisonjeira do que estamos acostumados a ver nos filmes. No romance eles são meras crianças que sequer saíram da casa dos pais ou perderam a virgindade, tendo que lutar pelas suas vidas a cada dia. Os ingleses, os únicos combatentes aparentemente dignos, olham surpresos para os americanos e pensam consigo mesmos: “Realmente, eles não parecem grande porcaria!”.

Já os alemães são tão ridículos quanto os americanos. Um bando de velhos decrépitos e adolescentes subnutridos. Vonnegut não condena a Alemanha nem Hitler pelas atrocidades da guerra. Nem mesmo as menções aos campos de extermínio rendem qualquer crítica da sua parte. Porque pra ele não existe um lado certo e um errado, por mais que as propagandas nazistas, soviéticas e as americanas se esforçassem para parecer assim. A guerra é um erro por si só. Mesmo sendo um grande e criativo libelo pacifista, a visão do autor de Matadouro-Cinco é que as guerras são como geleiras. Impossíveis de serem evitadas. Quando se vê toda a série de fracassos que a ONU coleciona fica difícil discordar.

Em cada lugar havia um aparelho de barbear, uma toalha, um pacote de lâminas de barbear. Uma barra de chocolate, dois charutos, uma barra de sabão, dez cigarros, uma caixa de fósforos, um lápis e uma vela.

Apenas as velas e o sabão eram de origem alemã. Eles tinham uma semelhança fantasmagórica e opalescente. Os britânicos não tinham como saber, mas as velas e o sabão eram feitos da gordura dos judeus, ciganos, veados, comunistas e outros inimigos do estado que haviam sido mortos. Coisas da vida.

Matadouro-Cinco não poderia ter sido lançado em época mais propícia. Foi publicado em plena Guerra Fria, durante a corrida espacial, quando o conflito mais controverso dos Estados Unidos estava em curso, a guerra do Vietnã. Enquanto milhares de pessoas protestavam pelo fim desse confronto e os hippies cantavam pela paz e o amor, a união Soviético e os EUA tinham poder bélico pra varrer cidades do mapa com os chamados ICBM, foguetes adaptados capazes de carregar imensas cargas de destruição e morte nuclear. Nesse cenário, a obra-prima de Vonnegut se tornou idolatrada por milhares de pessoas. O grande manifesto anti-guerra da época. Após mais de quarenta anos, o romance não envelheceu nada, continua tão atual quanto na época do seu lançamento. Matadouro-Cinco é, mesmo em épocas de paz, um lembrete dos males da guerra e a melhor porta de entrada para a original obra de Kurt Vonnegut.

Matadouro-cinco

Autor: Kurt Vonnegut

Editora: Intrínseca (2019)

Páginas: 288

Nota: 9

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No Comments

  1. Joelma Alves

    11 de agosto de 2012 at 20:09

    Oi, Murilo!! Seus textos são sempre incríveis. Vou arrumar um tempo pra ler todas as suas resenhas que ainda não consegui. Suas dicas são sempre valiosas, ainda não me decepcionaram, e quando o assunto são os clássicos, vc é mestre… rs
    Você sempre cita Matadouro 5 nas suas listas de melhores livros, foi daí que o conheci. Agora, sabendo mais da história, já está na minha lista ‘tenho que ler’ (que só aumenta a cada dia…).
    Gostei dessa parte: “É quase como se para fazer um bolo se colocasse pimenta, alho, ovos e vinho e o resultado fosse um doce muito mais delicioso que a maioria dos bolos convencionais. Estranho, mas bom.”, você está muito poético nas comparações, hein. rs
    O jeito das viagens no tempo do protagonista me lembraram o Henry, do livro A Mulher do Viajante no Tempo… E tudo que fala de massacres e guerras está me lembrando Jogos Vorazes, que acabei de ler… Tenho essa mania de ficar associando as coisas…
    Ótima resenha, obrigada por me apresentar Kurt Vonnegut.

    =)

    Reply

    • Murilo Andrade

      13 de agosto de 2012 at 08:59

      HAHAH! É uma mania quase inconsciente minha de fazer metáforas de comida.

      Valeu pelos elogios

      Reply

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