Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr Na segunda metade do século XIX para o século XX, o mundo começou a passar por profundas mudanças. O ideal da literatura romântica quanto à natureza essencialmente boa do ser humano e a idéia de que o progresso traria necessariamente a felicidade para a humanidade, cedia, pouco a pouco, lugar a um pessimismo histórico e à crescente desvalorização destes conceitos. O lançamento do Manifesto Comunista e da Origem das Espécies, a explosão da Primeira Grande Guerra, entre outros acontecimentos, jogou por terra a visão teocêntrica que a humanidade fazia do mundo naquela época. O sentimento geral era de ruptura, de novos tempos e modos de vida, que se refletem até os dias atuais. Tal transformação, logicamente, não deixaria de marcar as mais diversas formas de artes. Surgiu um movimento vanguardista que buscava o novo em detrimento do velho, romper quase inteiramente com o passado. Para eles, ou se fazia uma nova arte ou era melhor nem ter arte alguma. Explorar as sensações, os anseios e os piores medos do presente e, se possível, do futuro. Desse movimento, surgiram alguns dos maiores escritores e livros de todos os tempos. “A Terra Estéril”, de T. S. Eliot. James Joyce e seu monumento literário, “Ulisses”. Kafka, o criador de alguns dos mais perturbadores e estranhos romances já escritos. E, ainda, Dostoievski, provavelmente o escritor mais influente da literatura moderna. Albert Camus, influenciado por essas vanguardas pôde expressar meticulosamente seus pensamentos, declarando a morte do conformismo em suas obras e influenciando milhares de pessoas até hoje. Seus esforços foram finalmente premiados com o Nobel de Literatura de 1957 (três anos antes de seu falecimento). Seu pensamento ganharia reflexo até na cultura pop até na mais insuspeita das mídias: o mangá. Em Cavaleiros do Zodíaco, o autor Masami Kurumada baseou o nome, os ensinamentos e a personalidade do Cavaleiro de Aquário homônimo em Camus. Nas primeiras palavras deste livro: “Mamãe morreu esta manhã, ou ontem. Eu não sei mais”. A relação desta frase com o enredo da história em quadrinhos é que Kamus mostra a seu discípulo o quão necessário é que Hyoga esqueça sua mãe. “Quando entrei para a prisão, percebi logo ao fim de poucos dias que não gostaria de falar dessa parte da minha vida.” Desde que nasceu, Albert Camus conheceu de perto o gosto amargo da morte e do sofrimento. Seu pai morreu na Primeira Grande Guerra e sua mãe teve que trabalhar duro para conseguir sustentar sozinha toda a sua família. A infância de Camus foi de fome e miséria. Porém, foi com a pobreza que ele descobriu os elementos e os temas que permeariam seus ensaios, suas peças, seus livros e seus romances. Enquanto crescia, presenciaria acontecimentos que alteraram a vida e a obra de toda uma geração. A Grande Depressão, a Guerra Civil Espanhola, os milhões de mortos, as cidades destruídas e os países economicamente arruinados na Segunda Guerra Mundial, além da descoberta da bomba atômica. Influenciado por eles, e junto com personalidades como seu amigo Sartre, dedicaria sua vida a desmistificar os valores impostos por uma sociedade que não se importava com a dignidade humana. “O Estrangeiro”, um de seus melhores e mais famosos livros, alcançou esse objetivo. “Pensei que passava mais um domingo, que mamãe já estava enterrada, que ia regressar ao trabalho e que, no fim das contas, continuava tudo na mesma.” Meursault é um jovem escriturário, um homem comum como qualquer outro. Trabalha, paga sua contas, se relaciona com mulheres, entre outras atividades comuns. Normal por fora. Por dentro, é um cidadão sem ambições, conformado com sua vida e sem muita empatia social. Vazio por dentro, segue sua vida apenas com contentamentos imediatos como nadar ou dormir com sua namorada, Marie. Para ele, tanto faz. Tanto faz ter uma posição melhor no escritório. Tanto faz casar com uma mulher que nem ama só para fazê-la ficar feliz. Tanto faz se sua a mãe morre. Mais dia, menos dia, isso iria acontecer mesmo. Ele era como o mundo, indiferente. Centenas de pessoas podem morrer hoje e talvez até virem notícia de jornal e lamentemos a morte deles, porém tudo continuará como era antes. O mundo permanecerá girando e nós prosseguiremos fazendo o que fazíamos antes. Dormimos todas as noites com a mais profunda tranquilidade sobre a ruína de centenas de milhares de outras pessoas. Meursault era exatamente assim. Consequentemente, seu relato, com toda a sinceridade que só um homem que não tem mais nada a perder, carece de certo envolvimento emocional. “Não me arrependia muito do que tinha feito.” A vida de Meursault muda em um curto e impensado momento em que comete um grave crime. É preso e começa a esperar seu julgamento. Na prisão, passas pelas agonias do confinamento. As artimanhas para ocupar as cada vez mais longas horas e dias cada vez mais idênticos, a falta de cigarros e de mulheres. E, o pior, a vontade de sair, de nadar na praia, de conversar com as pessoas. Ele descobre a beleza da vida livre quando a perde e sua única chance de recuperá-la é no julgamento. “Todo o problema estava em matar o tempo. Por último, acabei por já não me angustiar, a partir do instante em que aprendi a recordar. Quanto mais pensava mais coisas esquecidas ia tirando da memória. Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único dia poderia sem custo passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar. De certo modo, isto era uma vantagem.” A escrita de Camus é cuidadosa. Fica logo claro que muito antes de se sentar para por a história no papel ele já tinha todos os detalhes da história de “O Estrangeiro” em sua mente. Nada, nenhum incidente, personagem ou diálogo é inútil, feito só para aumentar o número de páginas. Cada pequena ação tem uma força que impulsiona o romance e o faz seguir até o seu inevitável desfecho. “O Estrangeiro” é uma aula de concisão. Todos os acontecimentos são narrados brevemente, os personagens são pouco descritos e explorados. E, mesmo assim, podemos sentir a personalidade e as motivações de cada um. Porque são exatamente como qualquer pessoa. Um vizinho de prédio, um colega de trabalho, o dono de um estabelecimento que você costuma frequentar. São passíveis de erros, mentiras e outros defeitos. Enfim, vivem. Movimentam-se pela narrativa como as pessoas que por uma coincidência ou não afetam irremediavelmente nossas vidas. Simplesmente somos colocados na mesma situação em que o protagonista se encontra. Camus não trabalhou incansavelmente cada sentimento que pretendia despertar no leitor e nem se esforçou em escrever uma história grandiosa, como era costume da maioria dos grandes autores contemporâneos de sua época. “O Estrangeiro” é um romance curto, que pode ser lido em um só dia, mas, paradoxalmente, não é breve. Podemos sentir na nossa a pele a demora do processo, o passar dos meses em uma cela minúscula, sem nada pra fazer. Mas o autor não se perde em descrever minuciosamente esse tempo, só as sensações e os pensamentos de Meursault são transmitidos. O conhecimento de mais detalhes é desnecessário e não afeta a história. Não fosse assim, “O Estrangeiro” não teria a mesma qualidade. Porque se casa com perfeição ao estilo taciturno de Meursault. Além disso, sem a narração em primeira pessoa, o livro não seria metade do que ele é. “Dizia que, em boa verdade, eu não tinha alma e que nada de humano, nem um único dos princípios morais que existem no coração dos homens, me era acessível.” O que difere Camus de muitos escritores é que seus romances sempre estavam relacionados à sua filosofia, que se desenvolvia no enredo e nos diálogos dos personagens. Sua obra tinha o intuito de construir um mundo novo, de identificar as situações negativas da vida e os meios para modificá-la. Reconstruir sobre os escombros. Para Camus, quem nasceu para não modificar nada não merecia seu respeito. “Tudo se passava sem a minha intervenção. Jogava-se a minha sorte sem que me pedissem a minha opinião.” E “O Estrangeiro” não é diferente. O livro em si é uma grande crítica ao sistema judiciário. Demonstra como o julgamento, responsável pelo destino de milhares de pessoas, pode ser falho. A forma como os advogados e os promotores manipulam a verdade. De um lado, Meursault é um monstro desalmado, do outro é um homem bom e responsável, que só cometeu um erro. Demonstra também como pouco a pouco já não é mais o crime que é julgado e sim questões aleatórias. E como o réu se torna um mero espectador, quando é seu destino que está em jogo. Todas as deficiências do sistema judiciário estão ali, representadas da forma como são. “O Estrangeiro” faz parte da trilogia do absurdo de Camus, composta, além dele, de um ensaio, “O mito de Sísifo” e uma peça de teatro, “Calígula”. O mundo de Camus é um mundo do absurdo, num primeiro momento, e da revolta num segundo. Da fraternidade e da bondade. Da guerra e da miséria. Do calor e do Sol. Em “O Estrangeiro”, o Sol, por mais ilógico que pareça, mata por causa do sol. Assim como Meursault e muitos escritores modernos, Camus também se considerava um estrangeiro (ou um estranho, já que, no original em francês, L’Etranger, tem este duplo sentido) neste mundo, por isso o título do livro, sem um lugar para chamar de pátria. Um exilado, incapaz de compreender costumes e crenças locais. Um estranho no ninho. Assim como Nietzsche, Camus acreditava que a felicidade era medida pela quantidade de prazer sentido pelo corpo. O próprio Meursault só se contenta com prazeres imediatos, como sexo e cigarros. Quanto mais a vida lhe valia, mais era absurda. Ambos andam lado a lado e a vida só encontrava sentido se a pessoa mergulhasse por completo no absurdo. Segundo suas próprias palavras, o absurdo era um “abismo sem fim, colocado diante do ser humano”, o vazio onde Albert Camus buscava, paradoxalmente, encontrar o sentido para a sua vida. Infelizmente, são características como essas que mais podem afastar os leitores modernos. Não é novidade que “O Estrangeiro” não tem a mesma quantidade de fãs que os sempre populares livros de Jane Austen, um “Moby Dick” ou um “Drácula”. Não existe uma grande paixão entre suas páginas. Nem uma vingança pessoal como em “O Morro dos Ventos Uivantes” e o “Conde de Monte Cristo”. O próprio título talvez já não tenha poder de atrair leitores, e talvez esse seja um problema do duplo sentido no original estranho/estrangeiro e da falta disso na tradução. Ainda assim, a banda bem conhecida não apenas pelos góticos, mas por muita gente, The Cure, fez uma música inspirada em “O Estrangeiro” (veja aqui mais sobre a banda e sua carreira) Este é um livro que merece e deve ser lido. Talvez você se identifique com ele, por ser um estranho no ninho, talvez por algum outro motivo, mas é uma obra fundamental na literatura contemporânea. Camus faleceu em 4 de janeiro de 1960, aos quarenta e sete anos, num acidente de carro quando voltava para Paris. No acidente, o automóvel se espatifou contra uma árvore. Apenas Camus morreu na hora. O relógio do painel do carro parou no instante do acidente: 13h55min. O curioso é que Camus não iria seguir viagem de carro, mas de trem, tanto que já tinha até comprado sua passagem. Ele só aceitou entrar no veículo após muita insistência. E, assim, sua morte foi como a sua vida inteira. Um completo absurdo, confirmando as palavras que pôs em seu personagem Meursault em O Estrangeiro: “Todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida. No fundo, não ignorava que morrer aos trinta ou aos setenta anos tanto faz, pois em qualquer dos casos outros homens e mulheres viverão, e isso durante milhares de anos. No fim das contas, isso era claro como água, hoje ou daqui a vinte anos, era o mesmo eu quem morria.” Autor: Albert Camus Editora: Record Páginas: 112 Nota: 9,0 Compre agora!!