Acho que contextualização é algo bem importante no que se trata de ter uma ideia mais ampla, panorâmica até, seja de uma HQ, seja de um livro, de um filme.  Até mesmo de uma música. Algumas coisas muito simples podem arruinar completamente a experiência de ler, assistir ou ouvir. Como, por exemplo, expectativas exaltadas. O hype do momento. Pode ser um trailer impressionante, pode ser a opinião de um terceiro, que pesou a mão nos elogios por ter lá suas razões específicas e particulares para gostar tanto daquilo, uma resenha de um formador de opinião bem conceituado ou uma vitrine pomposa em uma mega loja bonita, colorida e vistosa. Uma editora nova, com uma proposta legal de só publicar coisas boas, coisas diferentes. A opinião de um escritor famoso. E assim vai. A coisa vai longe.

O hype, o povo falando, a espera. Tudo isso eleva a expectativa a níveis estratosféricos. E estratosfericamente perigosos. A expectativa pode arruinar a experiência, pode alterar a percepção. Esperar algo incrível e absurdamente ótimo de algo que é apenas bom ou “ok” pode provocar uma reação drástica, resultando em uma opinião muito negativa. A sensação de que aquilo é ruim, quando está bem longe de sê-lo. Falo por experiência própria. Revi meus conceitos a respeito de Asterios Polyp, por exemplo, HQ que já resenhei aqui. Ao contrário do que eu posso ter dito a respeito dela, a HQ é boa. Meu grande problema é que eu esperava que ela fosse ótima, incrível e absurdamente sensacional. Ela é boa, muito boa mesmo. Mas não é ótima, incrível, nem absurdamente sensacional como eu esperava que fosse.

Acho que o brasileiro razoavelmente interessado em HQ (ou, na verdade, em qualquer coisa que seja) e que não tenha o hábito de fazer suas próprias explorações virtuais e além-mar e além-língua-mãe está sujeito a se ver limitado a um filtro bem seleto – e, consequentemente, à sua agenda, calendário e relógio também, por menos sentido que eles façam. Levou 10 anos para que Jimmy Corrigan, uma HQ super comentada, adorada e premiada nos EUA, chegasse aqui, por exemplo. Sem falar em Ghost World, que também é ótima, mas levou anos para ser publicada aqui por enfrentar questões burocráticas, resultando em uma demora irritante, que fez com que a HQ chegasse toda fora de contexto, de lugar e em projeto gráfico e tradução lamentáveis. Sem falar nos preços! Sem falar nas opiniões, nos preconceitos, nas lojas, nas editoras e em todo o caos que paira por aqui.

Ainda somos vítimas do acaso. Ainda dependemos da curiosidade de alguém que foi com a cara da capa de uma HQ em uma viagem, resolveu comprar, levou pra casa e deixou por ali, sem dar tanta importância. Ainda dependemos de um amigo bem relacionado do curioso supracitado, que se apaixona pela HQ em questão em uma visita com propósitos não relacionados. Ainda dependemos do que ele resolve fazer com isso. Do que a editora resolve fazer com isso. De quanto resolvem cobrar por isso, do que os críticos resolvem dizer disso, do que a loja decide fazer com isso. Dependemos, dependemos, dependemos. Como vítimas.

Mas não estamos muito mais vitimados que muitas HQs encalhadas em lojas, estoques, editoras e sebos. E do que as opiniões dos que deixaram suas expectativas voarem como balões sendo disparadas como tiros por aí. Tiros raivosos de quem esperava muito, mesmo sem saber muito o que esperar. Mas desta vez eu não tinha lá muito o que esperar. Além da vitrine absurda na Livraria Cultura e do falatório, eu estava munida apenas de uma menção à HQ feita pelo Daniel Galera em um painel na Gibicon nº0 (Curitiba, Julho/2011) e de alguma curiosidade. Uma HQ que se passa toda em uma piscina, na qual os diálogos não importam muito e que é cheia de silêncio. Que tem uma estética interessante. Que tem um traço bonito, delicado e que sabe dar espaço ao vazio. Era isso que eu sabia sobre O Gosto do Cloro. E foi isso que eu recebi.

É legal ler as orelhas das HQs antes. É legal ler uma ou outra resenha. É legal saber como ela veio parar aqui, no Brasil, quem é a pessoa (ou as pessoas) por trás daquilo. Mas também é legar abrir uma HQ como se fosse só isso, só uma HQ,  só uma HQ cuja história se passa toda em uma piscina, que é bonita e que sabe dar espaço ao vazio e que é legal. Mas que não é a HQ mais legal do mundo. Nem a mais bonita. Nem a mais delicada. Por mais que alguém tenha se apaixonado por ela em algum momento. Por mais que ela tenha uma vitrine inteira (e enorme) só pra ela em uma loja enorme e deslumbrante. Por mais que tenhamos a chance de ver poucas HQs publicadas aqui e que outras merecessem muito mais (ao menos o mercado está se expandindo muito nesse sentido).

Nem tudo precisa ser maravilhoso, extremo e infinito e se transformar em um divisor de águas na minha vida (antes de O Gosto do Cloro e depois de O Gosto do Cloro). Nem tudo precisa ser uma história épica com começo, meio, fim e uma grande conclusão. Nem tudo precisa ser vigoroso e cheio de significado e referências e cores e informação.

O Gosto do Cloro é sobre um rapaz que recebe a recomendação de seu massagista de nadar semanalmente. No começo ele vai lá, todo tímido e sem jeito, e leva páginas e mais páginas nadando. O traço é diferente, delicado. A cor é bonita. O silêncio está lá. O vazio está lá. A timidez, a melancolia, a insegurança, a falta de traquejo social, está tudo lá. Aí o rapaz percebe uma moça, eles conversam algumas vezes e… bem, é mais ou menos isso. Só isso. Talvez fosse mais bonito e legal e delicado e cheio de significado em francês. Quem sabe? Talvez as braçadas na piscina, os azulejos, os olhares entre os personagens, o silêncio, a repetição de planos e de ações queiram nos dizer coisas que simplesmente não conseguimos ou não estamos preparados para ver. Talvez seja tudo uma grande metáfora. Talvez estejamos diante de uma obra prima acima da nossa capacidade de aceitação e compreensão. Talvez os que estão dançando sejam considerados loucos por aqueles que não conseguem ouvir a música. Então não fiquemos chateados quando a história não for a absolutamente lugar algum e o negócio pareça acabar no meio. Não fiquemos, deixemos isso pra lá. Vamos pegar o próximo livro, o próximo quadrinho, o próximo filme, tocar a próxima música e comer o próximo brownie porque a vida não acaba aqui.

O Gosto do Cloro

Autor: Bastien Vivès

Editora: Barba Negra

Páginas: 144

Nota: 6,5

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