[ARTE DA VITRINE]: Thiago Chaves (@chavespapel)

Texto publicado originalmente em 13/07/2010

 

 “Poetas são os legisladores desconhecidos desse mundo”  Percy Shelley

Em tempos de jornalismo servindo aos interesses corporativos cada vez mais inerentes a profissão, fica difícil imaginar que em outros tempos existiram malucos capazes de nos brindar com textos que misturavam de modo equilibrado e explosivo paixão, opinião, raiva e estilo. Se aplicássemos as regras de jornalismo atuais, esses malucos seriam tudo, menos jornalistas. Hoje, esses totens ainda existem, mas estão cada vez mais raros, e com vozes cada vez mais fracas. Não lembro exatamente quando pensei “Cacete, vou ser jornalista, mesmo que pareça a decisão mais insana a se tomar”, mas lembro quando me veio o pensamento “Acertei, é realmente isso que quero fazer”. E foi quando li Hell’s Angels, de Hunter Thompson. O livro é um baque para quem conhece jornalismo superficialmente, pra quem acha que a profissão se resume a dar boa noite na TV de modo convincente, ou escrever 5 dias por semana sobre como Macarrão tem tatuagens amorosas com o nome dele e do Bruno. E é meio inimaginável que grande parte do conteúdo apresentado ali tenha aparecido numa revista – a The Nation.

Após Thompson, conheci Tom Wolfe, Gay Talese, New Journalism, a New Yorker… bom, tudo que importa na minha profissão, já que quero pratica-la da forma menos convencional possível. Um dia, conheci também os caras que foram os reis da provocação, selvageria e canibalismo no jornalismo, que me influenciariam de todas as formas possíveis: os críticos musicais ingleses dos anos 70. Muito mais do que os baba-ovos divulgadores de releases que estão por aí no momento, os críticos musicais daqueles tempos não tinham amarras, e praticamente não tinham patrões, nem mesmo medo de serem odiados pelos músicos. Eram os muito doidos do jornalismo, olhados com estranheza pelos redatores da maioria dos jornais londrinos. Eles sentavam as bundas nos escritórios de verdadeiras máquinas involuntárias de fazer dinheiro, escritórios que eram propriedade de seres que nada sabiam sobre rock… mas, satisfeitos, deixavam os jornalistas trabalhar da forma que quisessem. O time deles era vencedor, e não tinha um técnico para detonar o trabalho todo.

No fim dos anos 70 – uma das décadas mais importantes do século passado – a imprensa musical britânica viveu seu auge. Ela possuía quatro semanários musicais – New Musical Express, Sounds, Melody Maker e Record Mirror – que, aparentemente eram lidos por todos os jovens ingleses com algum gosto pela música. Cerca de quatro milhões de britânicos liam semanalmente as críticas elegantes, chapadas, carnívoras e carregadas com aquela dose de opinião corrosiva que tanto faz falta nos nossos tempos. Na verdade, do início da década de 60 a meados da década de 70, as coisas estavam mais ou menos estáveis nesses jornais musicais baratos e de constituição gráfica quase grosseira, a ponto de sujar os dedos de quem o lia… aí chegou o punk, que varreu quase tudo que existia do mapa. Antes do punk, o Melody Maker era o líder inconteste desse quarteto de arautos da música, mas a identidade que esse veículo possuía o impedia de dar o braço a torcer. O Melody atacou o punk como se fosse o diabo; pois o semanário desde sempre defendeu o underground, e era lido pela raça intelectual inglesa. O New Musical Express, espécie de filhote rebelde dos quatro, viu que chegara a sua hora, e abraçou o punk como se fosse seu último suspiro. E essa polarização doida de estilos musicais era a marca de todos eles, que defendiam o que gostavam como se fosse a própria vida.

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Quase Famosos, filme de Cameron Crowe. Na verdade, é quase um retrato do início da carreira dele…

É esse tipo de história que falta hoje, é o que o anarquista Bob Black chamou de espírito de brincadeira. Hoje as pesquisas mercadológicas ditam o que cada revista deve ter e para quem escrever. Os Editores estão mais para Castradores. A competição das mídias tornou tudo uma luta de hienas famintas, e com isso se vai o espaço para experimentação e de desenvolvimento de alguma identidade. É tudo feito milimetricamente para agradar o público – mais ou menos como se tornou a Superinteressante, a Capricho das revistas científicas, que depende desesperadamente da TV e internet para elaborar suas pautas. Os jornais musicais ingleses não eram assim. Possuíam resenhas extensas – uns 5 mil caracteres para as pequenas e uns 10 mil para as maiores – e carregadas de um humor que hoje seria reprovável, graças as ameaças imbecis das assessorias de imprensa; matérias tão longas que seriam impensáveis hoje, e espaço para que jovens jornalistas divertissem seus fãs com longas masturbações mentais carregadas de palavras embriagadas e reflexões pessoais. Às vezes iam mais longe, e publicam manifestos buscando incutir seus valores e gostos musicais, somente usando uma resenha como pretexto ou meio de transporte para isso.

Ademais, os semanários iam além, e eram publicações dedicadas a outras expressões culturais, como literatura, cinema e comportamento, escolhendo a dedo quais eram os temas que ocupariam a cabeça dos jovens de tempos em tempos. Eles eram os senhores todo-poderosos de um Mini-Zeitgeist fechado e disputado. Pode parecer pretensão da minha parte, mas devo dizer que o declínio desse tipo de imprensa mais preocupada com o conteúdo do que com os ganhos ou amizades, ocorreu poucos anos antes da queda de qualidade do próprio rock ‘n roll mainstream,  o que nos leva a concluir que uma coisa provavelmente esteve ligada a outra. Tal declínio se acentuou no meio da década de 90, quando a TV já fazia vasta cobertura de música pop e rock, e outros meios de comunicação iam pelo mesmo caminho. Infelizmente, os que sobreviveram também foram decaindo. Dos quatro semanários ingleses, somente o New Musical Expresse (NME) sobreviveu, e se tornou uma publicação cheia de hype, voltada para menininhas – embora uma reformulação recente pareça indicar uma pequena volta aos velhos tempos de glória.

Mas, se o cerne desses veículos forem observados, é fácil concluir outro motivo que os levou a lona: seus principais jornalistas foram para outros mares. Gente com um espírito que unia messianismo e esquizofrenia, tipo Paul Morley e Barney Hoskyns, dois desses jornalistas da primeira geração. Eles foram mestres de dois dos meus autores favoritos que participaram desses dias, e meio que foram os caras que fecharam as portas desses semanários – depois deles, os semanários nunca mais recuperaram o prestígio… na verdade, somente o NME sobreviveu. São eles Simon Reynolds e Tony Parsons. Eles são dois dos caras da última geração que fizeram mais sucesso mesmo depois do fim dos veículos em que trabalharam – dos dois começaram suas carreiras no NME; e Reynolds foi para o Melody Maker depois. Se quiserem saber um pouco mais sobre essa fase áurea – e, caso for jornalista, absorver algum estilo -, leiam os livros Beijar o Céu, do Reynolds, e Disparos no Front da Cultura Pop, do Parsons. Depois de saírem dos semanários britânicos, os dois foram escrever para outras revistas, como a The Wire (talvez a última herdeira da Liberdade no jornalismo musical, leia a extensa entrevista que o Radiohead concedeu a Reynolds para entender), e Elle, e em jornais como o Guardian, o Village Voice e o New York Times, uma mostra de como a imprensa americana absorveu uma parcela desses caras.

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David Fricke – uma mistura de Lobão com Rita Lee…

No entanto, aqui do outro lado do oceano, já existia gente com o mesmo espírito. O veículo jornalístico e porta-voz do rock sempre foi, naturalmente, a Rolling Stone. Dois dos melhores jornalistas do rock estiveram lá: David Fricke e Lester Bangs. Bangs é eleito com certa frequência como o melhor crítico de rock de todos os tempos. Ele foi também um teórico, que definiu a estética punk e inventou um sem-número de termos hoje usados habitualmente. Lester foi uma onda destrutiva e violenta, definiu o que se define como jornalismo rock ‘n roll – que não é simplesmente escrever sobre rock -, e foi publicado por um monte de veículos: Rolling Stone, NME, Village Voice, Stranded… e onde encontrou o melhor ambiente para as maluquices dele: a revista Creem – justamente após a Rolling Stone o demitir por detonar alguns discos de artistas famosos, com suas críticas violentas. Foi na Creem que ele cunhou os termos “punk rock” e “heavy metal”, e lançou alguns textos antológicos, como sua entrevista com Lou Reed, que mais parecia uma briga de bêbados delinquentes. Também foi lá que lançou tendência novamente, ao escrever que o futuro do rock era a insipidez do Kraftwerk (leia o livro Reações Psicóticas, compilação da obra dele).

O término do mais importante ciclo do NME, a crise de identidade da Rolling Stone – que hoje faz mais culto a celebridade do que resenhas musicais -, o fim do Punk Planet, o mais importante fanzine das décadas recentes; a desgraceira que virou a MTV… tudo isso indica o fim do que foi o jornalismo rock ‘n roll de outros tempos. Hoje as entrevistas são feitas por email, e não mais depois de shows massacrantes; as matérias de capa não têm mais de duas ou três páginas, as resenhas possuem uns 300 caracteres… mil ou dois mil, quando muito. Não que boa parte do rock atual mereça muito mais. Hoje as revistas ainda lançam tendências… semanais. Mensais, se não tiver mais nada rolando. Os jornalistas Carnívoros que restaram estão pulverizados. São como totens solitários nas redações – tipo o próprio Fricke, Editor-Sênior da Rolling Stone. O que sobrou foi gente que precisa pisar em ovos para dar suas opiniões sem irritar ninguém.

Do mesmo que se celebra o bom e velho rock ‘n roll nesse Dia Mundial do Rock, relembre (ou aprenda sobre) o jornalismo rock, ele também era melhor…

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