Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr [ARTE DA VITRINE]: Thiago Chaves (@chavespapel) Um cara psicologicamente humilhado corta e própria língua num ritual insano de auto-flagelação. Por mais forte que a cena seja visualmente – mesmo escondendo o momento exato do corte -, o principal ponto revira-estômago da sequência envolve fatores psicológicos brilhantemente trabalhados. A cena é o ápice de uma catarse vingativa que levou 15 anos para ser implementada, além de ser nada mais nada menos que o objetivo de vida dos dois antagonistas da trama. O plano vingativo envolveu incesto, hipnose, sequestros e muito sangue. É o tipo de coisa que queremos ver todo o dia no cinema, no lugar de filmes idiotas com férias de verão e festas de adolescentes querendo transar com tortas. Mas os cineastas de um bando de países não têm a coragem devida. Felizmente a onda de normalismo que permeia o cinema americano pode ser varrida para baixo do tapete tranquilamente pelos filmes viscerais feitos pelos caras da Coréia do Sul (vou especificar que é “do Sul”, pois não sei o que rola de cinema na terra do finado Kim Jong-Il. E realmente prefiro não saber). A cena da língua faz parte do final de um neoclássico do cinema mundial, Oldboy, o filho do meio da Trilogia da Vingança, o melhor trabalho de um dos melhores diretores do momento: Chan-Wook Park. O filme apareceu para o mundo no mais tradicional festival de cinema do planeta, o de Cannes, que geralmente repudia esse tipo de tratado ultra-violento. Com certeza o fator primordial para a ascensão de Oldboy ao mainstream seja a escolha de Quentin Tarantino para Presidente do Júri do Festival, em 2004. Apesar do júri acabar por dar o prêmio mais importante para Fahrenheit 11/9, Tarantino em uma entrevista posterior deixou claro qual era seu filme favorito: Oldboy, que ficou com o segundo prêmio mais importante. Essa ascensão, aliada ao poder do filme, foi como um estouro de um dique furioso que inundou o Ocidente com o melhor cinema ainda “escondido”: o Cinema Coreano. Tal processo realizado no Ocidente (leia-se: nos Estados Unidos) de “descobrir” e importar aos montes produções cinematográficas de outros cantos do mundo não é lá muito nova, mas quando rola, dá vazão para chupinhações aos montes, e toneladas de remakes americanos inúteis de fazer corar de vergonha até caras desprovidos de talento como o cineasta Uwe Boll. Talvez a mais impactante descoberta desse estilo seja quando Steven Spielberg produziu o parto ocidental de O Chamado. Após uma bem sucedida carreira no cinema, e alguns milhões a mais na conta da DreamWorks, começou a marcha de tudo quanto é filme japonês de terror para o lado de cá do mundo. E com eles, os remakes… Se O Chamado foi válido, mesmo sendo duramente criticado (com razão) pelos fãs do original japonês, o que se viu à seguir mais parecia um bando de urubus querendo comer carniça. Os executivos americanos iam a festivais orientais e assinavam contratos de distribuição aos montes com uma miríade de diretores, tudo para garantir que suas empresas tivessem um lugar no filão cinematográfico da moda. Depois veio O Grito… e toda essa brincadeira foi declinando, beijando a lona ao apelar para o tailandês Espíritos e lançar o remake fudidamente ruim Água Negra (acredite: não falo isso pelo fato dele ter sido dirigido por um brasileiro). Depois eles tentaram algo com Bollywood, a indústria cinematográfica indiana, após Danny Boyle lançar Quem Quer Ser um Milionário?, mas convenhamos que o Cinema Indiano realmente não é grandes coisas, e perde até mesmo para remendado cinema hollywoodiano no quesito criatividade… Felizmente a onda com os coreanos foi mais amena! Até tentaram fazer um remake de Oldboy – sim, com Will Smith no papel principal e Spielberg dirigindo -, mas desistiram da idéia após surgir uma multidão de problemas. É melhor assim, pois se as produtoras querem grana limpa, que tragam os filme originais para cá, ao invés de financiarem tentativas imbecis de gente sem talento reproduzirem a qualidade dos filmes coreanos (Eu ia falar sobre downloads, que não necessitam de distribuidores, mas deixa pra uma outra hora…). E, ao trazerem integralmente o cinema coreano como ele é – violento, visualmente foda, e facilmente melhor que 95% do que é lançado do lado de cá do globo -, podemos contemplar obras-primas realmente deslumbrantes e viscerais. O irônico é que foram os americanos que indiretamente plantaram o embrião do cinema coreano que existe hoje. E quando digo “hoje”, me refiro a um dos países com maior índice de comparecimento à salas de cinema – mesmo em tempos de downloads – com mais de 140 milhões de entradas vendidas em salas de cinema em um ano (dados de 2005). Uma comparação covarde? No Brasil, em 2009, foram vendidos 110 milhões de ingressos (16 milhões para filmes nacionais). E o detalhe é que população da Coréia do Sul é de 49,5 milhões, e a do Brasil… bom, a do Brasil é de 190 milhões de pessoas. No mercado interno, as produções coreanas também imperam: cerca de 62% dos filmes lançados no país, são feitos por lá mesmo. A história da construção dessa identidade cinematográfica não é menos vitoriosa, e tem seu momento de virada mais importante após o fim da II Guerra Mundial. Com a divisão das coréias e o estabelecimento delas como feudos – Norte Comunista e Sul Capitalista -, a parte sul foi infestada de americanos, que naturalmente aproveitaram a situação econômica do país para oferecer seus filmes como entretenimento. Mas os ditadores militares que governavam o país tinham planos diferentes, e estabeleceram que o cinema seria como um símbolo de preservação da cultura coreana. Dessa decisão surgiram leis que limitavam as projeções de filmes estrangeiros no país, o que bem depressa foi usado como moeda de troca por militares. Lá pelos anos 70 as leis estavam frouxas – ainda existiam, mas praticamente não eram cobradas – devido a pressões dos americanos sobre os ditadores que eram financiados por eles. Nesse cenário surge o estudante Kim Hyae-Joon, que iniciou um movimento pela volta aos tempos em que as leis do cinema eram aplicadas, e velhos-novos tempos surgiram. Os ditadores cairiam nos anos 80, e o protecionismo cinematográfico ressurgiria. Hoje Kim é secretário-geral do Conselho de Cinema Coreano (KOFIC), e, mesmo com as intensas críticas norte-americanas, mantém a lei de cotas, ao mesmo tempo em que a produção cinematográfica do país continua a pleno vapor. É claro que nem tudo são flores, e muitos cineastas reclamam que a produção independente do país está amplamente reduzida a pequenos cinemas de arte e festivais de médio porte, mas tais fatos são perfeitamente normais numa indústria em expansão, e a tendência futura é normalizar. Porém, esse aparente protecionismo dos coreanos seria idiotice se o país não produzisse filmes de tanta qualidade. Começando pelo próprio diretor de Oldboy, Chan-Wook Park, o popstar local, é possível sacar o que faz do cinema coreano tão foda quanto há muito tempo não víamos. Primeiramente, as influências ocidentais na filmografia de Park são visíveis, principalmente por um estilo meio Kubrick de compor as cenas, e desenvolver as sequências visuais mais derrete-cérebros que surgiram nas telas mainstream em muitos anos. Talvez por ter elementos tanto orientais – falta de pressa na construção de personagens e situações, cenas longas, sem cortes ultra-rápidos estilo Michael Bay – quanto ocidentais – fotografia primorosa, narrativa concisa -, o nome de Park tenha sido tão rapidamente comparado a gênios como Tarantino e os Irmãos Coen. Some a isso o fato de que ele não é um cineasta de um filme só, e entrega um filmaço atrás do outro, e está pronta a fórmula da importação de sucesso. Mas Oldboy foi apenas a ponta de uma lança ensanguentada que atingiu os gananciosos produtores americanos, e os levou a entenderem que tinha gente grande na área. Existem outros filmes e outros cineastas coreanos tão superlativos quanto ele. Mas comecemos a dar uma olhada nos outros filmes da própria Trilogia da Vingança, que é uma multifacetada mostra da grandeza coreana, com cada filme contendo aspectos únicos entre si. Mr. Vingança é uma intricada viagem pelo submundo da venda de órgãos, e vai ainda mais fundo ao âmago das consequências da vingança em si, ao misturar quatro personagens principais na trama, e iniciar uma onda de finais inesperados, que só se resolvem de verdade no último segundo de projeção. Entretanto, se tem uma mensagem no filme é: a vingança faz mal pra cacete, mesmo que o plano complexo armado tenha funcionado como um relógio suíço. E os personagens arrasados no final da trama mostram isso! O filho do meio da Trilogia, Oldboy, dispensa comentários. Basta dizer que é melhor que o mangá que o originou, o que é uma coisa meio rara de se ver. A trama mostra bem porque Tarantino se amarrou no filme, pois o jogo de vingança armado por Park e sua trupe se mostra bem semelhante às peripécias de um filme do queixudo diretor de Pulp Fiction. Oh Dae-su é um cara arrogante que é sequestrado e mantido em cativeiro por 15 anos, mas num certo dia é posto em liberdade para que descubra porque foi jogado num quarto. O que ele (e nem nós que estávamos assistindo) não sabia, era que até a liberdade dele fazia parte do plano de vingança de seu inimigo. Falar mais do que isso só estraga a ópera sanguinária cheia de reviravoltas que é o filme. E a trama é só metade da beleza dessa mostra do cinema coreano. A união kubrickiana de cenas violentas, com uma trilha sonora primorosa e recheada de música clássica (não é todo o dia que vemos uma cena brutal com As Quatro Estações, de Vivaldi embalando tudo) é uma marca do cinema de Chan-Wook Park, que atingiria o ápice no encerramento da sua trilogia: Lady Vingança, basicamente um quebra-cabeças violento com uma trama mais harmoniosa e bem armada que uma sinfonia de Beethoven, dessa vez mostrando uma forte personagem feminina à frente dos fatos. Existem também outras duas pérolas entre os filmes de Park: Zona de Risco e Sede de Sangue. O primeiro é um contraste animal, ao traçar uma história que trata sobre pacifismo e amizade bem no meio de uma das zonas mais tensas do mundo: justamente a tal zona desmilitarizada que separa as duas coréias. Foi o filme de Park que acabou por colocar os holofotes em cima dele. O segundo filme, Sede de Sangue, feito após a conclusão da Trilogia da Vingança, é um banho de terror e vísceras nos filmes de vampiro modorrentos e fracotes de hoje. Sabe aquele monte de metáforas sexuais duvidosas e um afrescalhamento dos vampiros que podemos ver na série Crepúsculo e em True Blood? Sede de Sangue chuta tudo com o melhor que um bom filme de terror pode oferecer, inclusive com um final romântico e trágico, quase uma versão vampiresca de Romeu e Julieta. Definitivamente é pra fazer esquecer quase qualquer coisa lançada recentemente com os sugadores de sangue – à exceção de Deixa Ela Entrar, um dos melhores filmes da década. Uma coisa que fica clara ao ver esses filmes é que coreanos interpretam bem melhor que japas. Eles não são exagerados como os gritões da ilha do Sol Nascente, além de terem as caras diferentes entre si o bastante para que se consiga identifica-los, mesmo sob doses alcoólicas, ou com alguma namorada perguntadeira do lado. Outra coisa é uma preocupação visual intensa, algo que orientais associam mais aos chineses. Essas características podem ser comprovadas facilmente em um filme como O Hospedeiro, por exemplo. Pense nele como um filme de monstros que atualiza primordialmente Godzilla – na verdade o deixa no chinelo – e vai além, pois não se prende em ficar mostrando um maldito dinossauro gigante destruindo maquetes de uma cidade cheia do material de um casulo de um extraterrestre. O lance de O Hospedeiro é mostrar pessoas, e como elas são afetadas pela chegada de um monstrengo que surge com explicações mais limitadas do que o campo de visão de um japonês. E isso meio que estraga – com classe, mas estraga – a graça de um filme como esse, pois nos faz torcer por personagens humanos, e não para que o maldito e vingativo bicho asqueroso destrua meia cidade e mate os militares intrusos que invariavelmente contribuíram para o surgimento dele. Acrescente a esse pacote muita tensão, efeitos especiais de primeira e uma narrativa simples e brilhante, sem planos mirabolantes, focando unicamente um dia na vida da população afetada por um monstrengo e você vai ver que tentativas americanas de fazer filmes de monstros (Godzilla e Cloverfield) soam toscas perto de quem realmente entende. Não gosta de monstros? Pegue um filme coreano mais tradicional então: The Chaser. É sobre um cafetão que é ex-policial, e percebe que suas putas estão desaparecendo. Ele imagina que se trata de mais um caso de tráfico de mulheres, mas logo se vê as voltas com um serial killer de prostitutas agindo na região. O que se vê a seguir é um dos filmes de investigação mais realistas e extremos que se tem notícia. Primeiro que os envolvidos não são Supermans ultra-poderosos, que pulam dois carros ao mesmo tempo, apanham como cachorros e não sofrem nada, e essas coisas que vemos nos Bad Boys e SWATs da vida! Jung-ho, o cafetão, se cansa quando corre, ele fica sem balas, ele apanha pra cacete… e basicamente é movido por um moral que poucos parecem entender que exista num cara que vive à margem da lei. Também não rola um CSI na trama, policiais não descobrem tudo só de olhar para as nuvens e refletirem… tudo demanda investigação, análise, vigia e métodos realistas. Mas não pense que se trata de um filme arrastado, cheio de conversa. NÃO, lá pela metade seus dentes estarão trincados e suas unhas devoradas, pois você sabe mais que todos os personagens, e isso é um privilégio que não gostaria de ter. Na Hong-jin, o diretor do longa, não tem vergonha de mostrar que aprendeu com seu amigo Park. Ele chega até a emular seu conterrâneo, mas com muito mais estética e força do que se espera, ou você acha que o longa possui a luta final com um martelo à toa? Pense em quantas vezes você achou bela uma cena em que uma prostituta é martelada até a morte, e vai entender a qualidade alcançada aqui. E ainda tem um monte de filmes, saiba que os listados acima são apenas alguns dos lançados por aqui, cara! Os coreanos também sabem fazer filmes de guerra (Irmandade da Guerra), superproduções de ação (Shiri) e filmes de gângsteres (A Bittersweet Life). Ou seja: quer sair da mesmice idiota da vasta maioria do cinema ocidental capitaneado pelos americanos? Dê uma espiada no que os coreanos fazem!