Macaco não mata macaco

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Este é o recheio abundante de uma história que poderia ser fraca. O filme-meio da nova leitura dos clássicos que iniciaram em 1968, vem proporcionar o óbvio em seu enredo. Óbvio, digo, pois é correspondendo aos problemas verdadeiros criados por uma história improvável, quase uma fábula, que o filme começa a trilhar seus acertos. Ao que propunha o primeiro filme, Planeta dos Macacos – A Origem (Rise of the Planet of the Apes, 2011), a abordagem da inteligência animal foi simplória, não ultrapassando o interesse de contar a história de um macaco, ao invés do que seria, em maior abrangência, a contextualização da inteligência em outro ser vivo que não o ser humano.

Sendo assim, o filme inicial funciona como um prequel – ou, como o título diz, um filme de origem –, um pontapé com ênfase na contextualização de sua história, isto é, o objetivo maior e quase único de pontuar com máxima clareza todos os elementos que futuramente seriam aprofundados. De tal modo, portanto, este primeiro trabalho é, se comparado a ele mesmo, um exemplar sem grande destaque em seu conteúdo, onde a história de Caesar em início-meio-fim contempla-se em sua maioria ao desenrolar de sua história, ao invés de sua representação maior.

O inverso, portanto, é verdadeiro. O desenvolvimento desta sequência, Planeta dos Macacos – O Confronto (Dawn of the Planet of the Apes, 2014), através da forma como trabalha seu rico material, consegue se auto-sustentar como um filme com notório conteúdo e principalmente grande poder de discussão, ao mesmo tempo que ainda é uma resposta ao filme antecessor, transformando-o em, não mais, um filme satisfatório. A conexão destes dois trabalhos parece, no entanto, ir à contramão de outras franquias, pois nesta história o segundo ato justifica o primeiro, por mais que este pudesse ter lhe dado um grande material para ser trabalhado.

O conteúdo desenvolvido no Planeta dos Macacos – O Confronto calca-se em magníficas camadas de leitura política e social para abordar o embate ente homem e macaco. Há muita – destaque para muita – possibilidade de compreender as motivações de todos os personagens centrais, tanto do lado animal, com o heroico Caesar (Andy Serkis) e o vilão Koba (Toby Kebell), e do lado humano com o herói Malcolm (Jason Clarke) e seu vilão Dreyfus (Gary Oldman), além do contexto maior e mais importante que estes representam, que justificam-se a narrar o confronto das espécies.

Ao chegar na imersão deste confronto, as camadas de leitura do filme rapidamente se multiplicam, sem deixar para trás lacunas que possam dificultar a análise desta história em seu contexto, mas ainda propondo pontos em aberto para possibilitar o preenchimento pela conclusão de cada espectador, fornecendo-o rapidamente ferramentas para as diversas análises. As camadas citadas são, em maior importância: contextualização do poder, tipos de poder, política através do poder (não é gratuita a aparição de Koba sob a bandeira dos Estados Unidos como um trono), liderança, líder eleito pelo povo, líder auto-eleito, poder de coerção, evolução social, e outras igualmente nítidas e bem aplicadas.

O que o filme conquista com todo este material é o que chama a atenção, pois, como uma árvore, possui uma força clara e estabelecida, onde sem complexidade procura e consegue apresentar um centro narrativo conciso aos problemas propostos para homens e macacos; aliado a isso, surgem seus ramos, objetivos menores e variados que dão diversidade ao tema e, aí sim, deixam de ser unilaterais, permitindo variados pontos-de-vista que facilmente serão contraditórios em qualquer debate.

Apesar de blockbuster, e – me permito acreditar – nem por isso automaticamente descartado à objetivos mais arriscados, a alcunha de filme artístico também parece conceder-se ao mérito deste filme-sequência. Seria inoportuno – embora com argumentos e histórico para isso – julgar o filme por seu selo popular, pois certamente ele tende à satisfazer expectativas, construir-se por meio de previsões narrativas, possuindo liberdade limitada para redescobrir-se como um exemplar equilibrado em linguagem de arte e entretenimento.

Diante de tal ponto, talvez pela maioria nem julgado, é possível encontrar o elo entre o roteiro óbvio, aquele descrito inicialmente nesta crítica, e o roteiro autêntico. O primeiro, tendencioso ao embate, à expectativa de se propor o choque das espécies através de uma batalha ou guerra. Sua apresentação, apesar de confirmada no filme, é mais que um desfile cênico e apelativo ao impacto visual, com coreografias belas e sons imponentes. Até chegar a este ponto, o filme atravessa seus bons argumentos para dar razão à luta – algo raro, inclusive –, dar sentido, se possível, à motivação de homem ou macaco para aniquiliar um ao outro. O segundo ponto, demonstrado pela análise forte de consequências entre o ato de crer e descrer no juramento inimigo.

Em exemplos assertivos, é perceptível a boa escolha em transformar o homem o verdadeiro coadjuvante da história, aqui o que importa são macacos, e o pensamento humano já foi tratado em milhares de oportunidades artísticas, fato este que torna como foco o cérebro de nosso primata. Sempre julgando-se o único ser inteligente, o homem nunca foi páreo para nada, jamais encontrou limite, exceto por sua imaginação, como ele mesmo diz. Dotado de igual inteligência, Caesar lidera sua civilização pautada na evolução mental de sua espécie, porém ainda ligado à origem animal. É, portanto, um líder que põe em primeiro plano a proteção da família, da espécie e do coletivo, não individualizando interesses, como é perceptível do lado de cá.

Com esta inteligência, Caesar deixa de ser ingênuo, e percebe que a maior arma humana é o disfarce, a falsidade em parecer-se bondoso para unicamente conquistar seus objetivos. Este é outro ponto claro e muito bem trabalhado no filme. Koba, através de seu antagonismo, é mais um símbolo do objetivo narrativo: “Macaco não mata macaco”. A frase pertencente à Caesar, simples e certeira, é usada de modo inverso por Koba, sem empregá-la ao bem, usando-a de modo falso para trapacear seu rival em liderança. A busca de Koba por poder emerge acima do bem coletivo, e aí ele deixa de ser simplesmente um vilão, e passa a ser um humano: “Você não é macaco”, responde Caesar.

Ao que concerne sua técnica, a captura de movimentos é o maior trunfo, não por ser visualmente bonito, mas para atribuir a esta técnica a responsabilidade de comandar as expressões dos animais – o uso de máscara e maquiagem natural, por exemplo, seria altamente dispensável diante da proposta deste filme. Apesar de bonito, o apelo visual certamente ficará defasado em alguns anos por se tratar de um apuro técnico, o que restringe sua força à evolução tecnológica ao invés de apenas inspiração artística. É absolutamente diferente atribuir a beleza técnica de Toy Story, por exemplo, onde narra personagens totalmente irreais, sem a carência de atribuir aos sentimentos o seu principal meio de comunicação, à possibilidade de dar aos macacos sensações de raiva, amor, dúvida, compaixão, fúria, etc, e fazer disso o trunfo de seu carisma.

Sabendo disso, o filme exagera em closes – inicia e termina com cenas idênticas –, fecha a câmera à cada necessidade de exprimir o comportamento animal, pois este é o magnífico poder de linguagem que possui. Bem trabalhada, a captura de movimentos de Andy Serkis como Caesar atribui argumentos positivos à sua fama por ter realizado Gollum, em O Senhor dos Anéis, e divide competência com o trabalho pós produção que transborda em realismo. Eles são macacos.

Representados por três raças, chimpanzés, gorilas e orangotangos, eles respeitam a realidade de suas diferenças físicas, e percebe-se que a evolução de uma sociedade dos macacos é existente, distribuindo funções de liderança, comando e segurança ao seu povo, partindo para mostrar seu poder e domínio ao Planeta (macaco a cavalo).

Do lado humano, ao que se pode interpretar, o filme não propõe uma leitura igual a dos macacos – e aí ele é claro ao mostrar de qual lado está interessado apresentar. É dúbio, por exemplo, se as atitudes dos humanos são verdadeiramente boas, se eles realmente respeitarão sua coexistência com a sociedade dos macacos. Seu poder bélico caracteriza-o como uma ameaça, e suas intenções de reconstruir uma povoado aproveitando a energia de uma represa de água é bem mais uma desculpa do que um convincente motivo para permanecerem perto dos primatas.

Quase imperceptível, a postura humana é apresentada em consequências fáceis: fingindo-se bondoso, propõe a paz, o respeito e a não agressividade à sociedade dos macacos. Esperadamente traiçoeiro, os humanos atacam o líder primata no interesse de vencê-los e reconquistar seu domínio. Esta atitude faz emergir o mau de Koba, que tanto é uma ameaça aos macacos quanto aos humanos. Perceba: Descobrindo que Caesar é vítima de seu próprio ataque, ele é resgatado e tratado como oportunidade de justamente salvar o homem dos ataques de Koba, através de sua liderança de paz, uma atitude absolutamente traiçoeira.

A consequência deste ato é um suspense primoroso, onde Malcolm retorna para avisar ao filho de Caesar que seu pai está vivo, e é feito refém pela debandada animal. A arma apontada para Malcolm é tanto uma ameaça aos humanos (pela hipótese de não repassar a boa notícia sobre Caesar) e também para os macacos, pois a dependência deste líder fica cada vez mais evidente. A morte de Malcolm seria a morte de ambas espécies e a consolidação do poder de Koba.

Passados 10 anos da Origem apresentada no primeiro filme, a epidemia que atinge os humanos quase o dizima do planeta, e assim o título do filme pode-se confirmar verdadeiro.

É evidente que a mútua convivência em paz de homem e macacos não é possível, através da necessidade de superioridade que se atribuem. O macaco, porém, também não se salva com máxima inocência, o vírus atinge massivamente os humanos, parece favorecer os macacos, mas é fácil também perceber que estes foram atingidos, alterados em consciência similar a do homem e, por consequência, já configuram também lutas dentro de sua própria espécie.

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