Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr [ARTE DA VITRINE]: Thiago Chaves (@chavespapel) Texto publicado originalmente em: 3 de março de 2009 Quando Alan Moore teve a idéia de criar uma minissérie com os personagens da Charlton Comics, intitulada Who Killed the Peacemaker, ele não sabia que estava criando a mais revolucionária revista em quadrinhos da história, além da principal responsável por aproximar uma mídia, antes considerada infantil, definitivamente, do público adulto. Ou talvez soubesse de tudo isso, afinal estamos falando mago barbudo inglês, um dos mais visionários criadores do mundo, incluindo aí todas as mídias. Quando entregou o embrião do que seria Watchmen, Dick Giordano, o editor da DC que o recebeu, fez então uma coisa fundamental para o real sucesso da empreitada: desgarrou o roteiro que tinha em mãos dos abobalhados personagens da Charlton, dando liberdade para Moore criar algo totalmente novo, mesmo que inspirado neles. A ambição de Moore foi ainda mais longe. Ele não ficou satisfeito em criar apenas mais uma revista, mais uma minissérie; ele tratou logo de abalar todos os alicerces sobre a qual estava fundamentada toda a indústria de quadrinhos, com heróis endeusados, tidos como infalíveis. À partir de Watchmen – e de O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, lançada um pouco antes – tudo isso mudou. Tanto que Moore foi acusado de ser o assassino dos super heróis, que nunca mais obtiveram o status que tinham outrora. À partir sucesso, tanto crítico, quanto comercial (ela está em catálogo a mais de vinte anos, vendendo milhões de exemplares, e enchendo os bolsos de muita gente, inclusive de Moore), de Watchmen, a indústria de quadrinhos viu começar a fase dos heróis realistas, que se juntaram à fase adulta e mais criativa da DC, capitaneada pelo selo Vertigo, que despontou gente como Grant Morrison, Neil Gaiman, Garth Ennis, além do próprio Moore, que transformou o Monstro do Pântano em um símbolo cult. Com essa fase nos acostumamos a menções à drogas, distúrbios psicóticos e sexuais, violência e morte de inocentes, ou tudo isso junto, em histórias de super heróis. Mesmo com coisas de baixíssimo nível, como praticamente qualquer gibi da Image Comics, tivemos, para compensar, as tramas de Mark Millar e Warren Ellis, que transformaram Autorithy e Planetary em expoentes da boa fase (mesmo que violenta) dos super heróis modernos. crédito: DanOhh Design Mas os valores de Moore para a criação de grande parte dessas histórias (inclua aí, por exemplo, as tentativas de J. Michael Straczinsky de criar tramas adultas em Rising Stars e Poder Supremo, só com a última obtendo qualidade) foram desvirtuados, ficando somente a violência, e o uso de artifícios não tradicionais, como drogas e homossexualismo entre os heróis. O motivo para isso é óbvio: falta para esses roteiristas, a inteligência de um Moore, um Morrison, ou um Ellis, para a criação de algo completamente diferente e quebrador de paradigmas como Watchmen, Os Invisíveis, ou Planetary. O que sobrava (e ainda sobra) geralmente era algo grosseiro e gratuito, sem contextualização. Os socos, sangue e decaptações dessas histórias não tinham motivação, a não ser a figura do herói descontrolado e amargurado. Com os vigilantes tivemos a fantástica trama de fundo, usando e abusando de elementos críveis para a sua construção. Vemos Nixon, seu nariz aquilino e inchado, assim como sua gana pelo poder, já perpetuado com o terceiro mandato; temos o perigo do Holocausto Nuclear, e temos um Deus misto com Superman, quase neutro a todas as movimentações. Sim, pela primeira vez pudemos vislumbrar como realmente seria o mundo com a presença de heróis na porção mais importante do século passado. O roteiro da grahic novel explora isso com autoridade, ao avançar com uma precisão matemática, discorrendo em todo o contexto dos deprimentes anos 40, passando pela década de 60, até chegar aos delirantes anos 80, época em que, na trama, o mundo está mergulhado no cada vez mais crescente medo nuclear, com duas superpotências cada vez mais com os nervos à flor da pele. A Obra Foi Stan Lee um dos primeiros a empreender uma mudança significativa no mundo dos super heróis, ao inserir problemas humanos como contas para pagar no dia-a-dia deles. Mas, convenhamos, à luz dos dias de hoje, parecem infantis, quase bobas, as primeiras aventuras do Homem-Aranha, por exemplo, escritas àquela época (as de hoje, com retornos a vida de solteiro, são inadjetiváveis). Ainda por cima veio o Comic Code e uma caça às bruxas empreendida pelo Senador Joseph McCarthy, que só manteve os quadrinhos como “arroz do povo”, jamais experimentando qualquer dose de renovação artística e narrativa. Fases alegres como a época em que o Batman caçava monstros do tempo, e extraterrestres, só foram um espelho desse momento. Em outras palavras: era de se esperar outra sacudida, ou as coisas se encaminhavam para a extinção. Essa nova revolução – tanto estética, quanto narrativa – foi Watchmen. Com ela um novo ciclo se começou. Começando por sua visão incrivelmente realista e depressiva dos super-heróis, Watchmen acertou em cheio o estômago do arquétipo das figuras que apareciam normalmente nas HQ’s. A sua leitura é uma jornada, longa, desconstrutiva de tudo que se tinha feito até então. Com o passar das páginas, aos olhos de quem está lendo, os heróis começam a parecer (mais) infantis, e (mais) bobos. É como se usar um colã e sair para combater o crime fosse vergonhoso, quase escapismo barato. Após a conclusão da leitura é realmente impossível enxergar o indestrutível Superman, ou o irrefreável Capitão América com os mesmos olhos. São quase peças de museu, representantes de uma era que se passou e que não deveria voltar. O mundo agora é outro, não mais comportando histórias fáceis e heróis divinos. Até que ponto isso é bom, é difícil precisar, mas, mesmo assim, excelentes histórias com a essência do “jeito super-herói” de ser continuam a existir. All-Star Superman, roteirizada por Grant Morrison, e com arte soberba de Frank Quitely é uma delas, além das sagas mais recentes do Lanterna Verde, de Geoff Johns, e do Demolidor, de Brian Michael Bendis, esse último com ressalvas, visto a própria natureza violenta e com uma visão de justiça muito própria do Homem sem Medo. Mas, no geral, a obra-prima de Moore representou uma grande queimada na indústria de quadrinhos, atingindo justamente sua colheita mais farta e lucrativa (e não necessariamente a com mais qualidade), com as cinzas tornando o solo mais fértil, mesmo com a menor quantidade de germinações. Mas, queimou-se (apesar de não permanecer queimada), principalmente, a velha atitude moralista-maniqueísta que guiava os personagens (principalmente) da DC, em sua maioria, herança dos longínquos anos 30, ou a Era de Ouro dos quadrinhos. Apesar dessa revolução ter começado antes, com Monstro do Pântano, V de Vingança, Batman: Ano Um; essas obras representam uma espécie de primeiras infiltrações em um grande dique com águas revoltas. Watchmen foi como a quebra final do dique, já bastante esburacado. À partir daquele momento, as coisas realmente não seriam mais as mesmas. Foi como V, destruindo todo um modo de sociedade, para dos restos dessa destruição, construir algo novo. Mas, antes de tudo, Watchmen é uma obra que desconstrói. É necessário conhecer o gênero super-heróis (devidamente reduzido a pó) para admirar (e entender tudo) o que está acontecendo lá. Moore não economizou ao colocar toda uma geração de heróis juntamente com elementos políticos (só podem agir heróis permitidos pelo governo, base da recente saga Guerra Civil, da Marvel, criada décadas depois, por exemplo), e no centro dos principais acontecimentos da Guerra Fria (Manhattan no Vietnã, e como principal arma real e de propagando dos americanos). Mas se no quesito história, onde alguns autores conseguem chegar perto de Watchmen em sua qualidade ímpar (leia Planetary, já resenhada completamente aqui no blog, e chegue a mesma conclusão), no quesito narrativa jamais se viu alguma coisa igual. Mesmo nos dias de hoje. O próprio autor barbudo disse que, para ele, essa obra foi particularmente decepcionante. Não por falta de qualidade, mas por não ter produzido o efeito esperado na indústria. Foi como abrir um compartimento onde uma multidão de baratas, antes presas, pudessem sair para um lugar antes inexplorado. Nada de organização ou trabalho em grupo. Foi cada um pro seu canto tentando sobreviver, sabendo dos novos tempos, mas sem a mínima idéia do lugar para onde ir. E esse efeito “barata-tonta” foi causado principalmente pelo tema da revista. Mas eles não atentaram para outra qualidade muito flagrante na série: sua narrativa ambiciosa. Temos diversos personagens olhando o passado a sua maneira, geralmente amargurada, afinal, eles estão proibidos de agir por ordem de um governo semi-fascista. É como os Quatro Evangelhos, com cada evangelista contando a sua própria versão da história de Cristo. Temos a HQ dentro da HQ, representada por Contos do Cargueiro Negro, fazendo um sentido absurdo e servindo, mais uma vez, de espelho para toda a trama que se desenvolve. E temos até uma obra literária genuína inserida na revista. Além disso a série é uma mistura de gêneros muitíssimo bem engrenada, com elementos das velhas histórias de detetive do estilo noir, passando por uma forte crítica social e política, até se revelar também uma ficção científica. Bom, a única maneira de descreve-la é como um épico legítimo do gênero, soando como uma grande despedida tristonha, sombria e depressiva de personagens que muito tempo habitaram nossa vida, mas que não têm mais lugar nela. É por motivos como esse que Moore deve odiar tanto adaptações. Se em parte as declarações guardam chatices desnecessárias, quando o autor realmente quer mostrar porque é considerado mestre ele consegue. Ele argumenta que o cinema não dá tempo para o espectador pensar, digerir a história, jogando seus 24 quadros por segundo de forma arbitrária. Enquanto isso, nos quadrinhos, a coisa funciona com uma mecânica diferente. Quando você vira a página, nada te impede de voltar outras trinta para relembrar como foi a expressão facial do Comediante, durante uma reunião dos Minuteman. Logo após isso, você pode novamente retornar para onde estava, ou antes ler novamente a narrativa em off de Rorschach enquanto ainda digeria a morte do próprio Comediante. E Watchmen (assim como outro épico, Sete Soldados da Vitória) foi construído com essa narrativa na cabeça, e depende dela para fazer sentido completamente. Daí parte da dificuldade para se adaptar tal obra. Fora isso temos o uso da teoria do caos e de elementos fractais na construção dos quadros. Os quadros são dispostos na revista como uma ópera, uma sinfonia absurdamente complexa que depende de dezenas de elementos, e de uma visão apurada para mostrar toda a sua grandeza. Há todo um intricado esquema de espelhamento – as formas dos quadros se repetem inversamente na página ao lado – não só a nível de páginas, mas de edições de revistas. A última revista, por exemplo, é espelhada com a primeira de forma simétrica. Há até um capítulo inteiramente dedicado ao tema na revista, que se espelha de forma inteira, a última página com a primeira, a penúltima com a segunda e assim sucessivamente. Assustadoramente genial. Porém não foi só Moore que concebeu a obra. Dave Gibbons desenhista da série também deu sua contribuição importante. A começar pelo seu estilo acadêmico, meio retrô de desenhar, tudo feito de forma proposital, para imprimir um marcante clima noir a série. Mais uma vez numa obra de Moore, as referências visuais quase se igualam as referências do texto. Coube também a Gibbons batizar o personagem Nite Owl, inserido na história um personagem que ele criou quando tinha 14 anos. O famoso broche amarelo com o smile, um símbolo da série, também é coisa dele. Enfim, nos quadrinhos, Watchmen pode ser considerado uma obra perfeita. Praticamente sem falhas, fruto do esforço mental sem limites de Alan Moore e de um seleto grupo de colaboradores, que incluiu até o amigo Neil Gaiman (autor de outra obra superlativa que atende pelo nome de Sandman), o responsável por pesquisar as citações que fecham os capítulos e servem de títulos para os próximos. E, sim, a obra máxima de toda uma geração de roteiristas grandiosos e inventivos é o motivo para a existência da nota 11, e deve ser lembrada enquanto a humanidade ainda existir. Um milagre em Hollywood …e onde muitos falharam, Zach Snyder triunfou. A criação de Watchmen, o filme, parecia uma coisa praticamente impossível, devido as alardeadas (por Moore) limitações do cinema perante os quadrinhos. Filmar suas mais de 300 páginas de quadrinhos – e de livros, além de uma revista em quadrinhos dentro da revista em quadrinhos – parecia coisa de outro mundo. Mas, somente o primeiro trailer do filme, a qual hoje é difícil de ser lembrado devido a avalanche de informações (às vezes ruins, principalmente por causa do processo de uma tal Fox, que acabou enterrado aos 45’ do segundo tempo) e imagens (sempre beirando a perfeição) a respeito do filme; já valeu por todo o fim de ano cinematográfico modorrento de 2008. Mas a história da obra máxima de Alan Moore no cinema não começa com aquele trailer, e muito menos com Snyder. Há décadas que se planeja e tenta se executar uma adaptação de uma das maiores obras literárias da história. Nomes como Terry Gilian (Os 12 Macacos), Darren Aronofsky (The Wrestler) e Paul Greengras (O Ultimato Bourne) já chegaram a esquentar a cadeira de diretor, mas não sem evitar que o filme voltasse pro limbo. Daí surgiu Snyder, egresso do sucesso de um remake de um filme de George Romero; Madrugada dos Mortos, e da adaptação de um outro gibi; 300 de Esparta. Os trabalhos de Snyder começaram com a contratação de Alex Tse para trabalhar em cima do roteiro de David Hayter, que demorou quase uma década para ser escrito. Mas, com o começar dessas movimentações, todo o momento cinematográfico dos personagens de gibis também mudou, e se aproximava do que os heróis viveram nos quadrinhos nos anos 80. Hoje vemos filmes até de personagens rasos como O Motoqueiro Fantasma. A cada ano uma multidão de filmes, de uma multidão de personagens que jamais deveriam sair das páginas das revistas que os originaram. O primeiro passo para tentar conter essa onda foi O Cavaleiro das Trevas, saído das mãos de Christopher Nolan. O filme mostra tudo que um filme adaptando um personagem dos quadrinhos tem que ter: respeito ao material original, e alguma originalidade visual. Snyder já havia adaptado 300, obra de Frank Miller, seguindo esses requisitos, apesar de seus excessos em alguns momentos. O resultado dessa bem sucedida adaptação foi um convite para fazer o mesmo com Watchmen. Ele imediatamente rejeitou, como um bom fanboy. Mas, pensando com a cabeça de um homem de Hollywood, ele chegou a conclusão de que o filme sairia de qualquer jeito, e resolveu fazer do jeito dele, ou do melhor jeito, se preferir. Daí para frente, o dique, dessa vez no mundo do cinema se rompeu, como a teoria do caos determina. O que nos leva a escalação de um elenco de ilustres desconhecidos, ao primeiro trailer, ao retorno da graphic novel ao topo das paradas, àquele trailer, aos pôsteres, aos spots, e a todo o restante do material de divulgação que você conhece clicando no nosso banner de Watchmen à direita, a essa matéria e a estréia na próxima sexta. Se o filme terá o mesmo impacto, culto e qualidade que a obra literária alcançou, só o tempo dirá. Mas, no mínimo, Snyder e toda a sua equipe já fizeram história ao adaptar algo inadaptável. Milagres realmente existem, mesmo de lugares que a gente não espera que venham! Hollywood é um deles…