Orange Night Girls é um livro de tiras, histórias curtas e desenhos de autoria de Ana Cavalieri e que está em uma campanha de financiamento coletivo no Catarse. É uma obra composta por artes deslumbrantes e textos de reflexões e pensamentos que giram em torno de como a questão da feminilidade e da sexualidade, quando atravessadas por uma experiência singular, podem em algum nível dizer algo de uma experiência universalizada que extrapola inclusive possíveis barreiras de gênero e moral. A arte da Ana é algo que precisa ser salientado, pois é o ponto forte do livro. Seus traços, suas cores e a composição das páginas são características que de fato se destacam na obra. E foi exatamente isso que chamou minha atenção durante minha cobertura do Artist Alley na Comic Con Experience 2018. Orange Night Girls é o primeiro projeto gráfico da autora e foi produzido de maneira totalmente independente. Entretanto, há uma campanha no Catarse para uma maior tiragem e distribuição do quadrinho. A campanha está chegando ao fim e ainda não está próxima de atingir sua meta. Uma coisa curiosa sobre a campanha no catarse é a de que nas recompensas, além de adesivos, marcadores de páginas, comissions, quadros, prints e do próprio livro, há também a curiosa recompensa de receber um tatuagem realizada pela própria Ana.

Como ficamos sabendo pela página do projeto, a ideia para a composição de Orange Night Girls, surgiu de uma frase que Ana Cavalieri ouviu certa vez, de que “O laranja é a cor mais triste…”. Essa frase a levou a certa fixação e fascinação pela cor laranja que desde então predominou em seus desenhos. Além disso, a questão reflexiva-emocional é patente no projeto. Quem lê Orange Night Girls logo percebe que tem em mãos o maravilhoso resultado de questões muito dolorosas e difíceis, mesmo que isso não seja exatamente o tema da obra. Não sabemos claramente pelo que a autora passou ou quais eram especificamente os demônios que foram exorcizados no projeto. Entretanto, seu tom e sua textura conseguem transmitir essa carga que no fundo fortalece o quadrinho enquanto obra.

O livro está divido em três capítulos temáticos. No primeiro capítulo, que se chama “No que os Olhos Vermelhos Crêem”, Ana nos apresenta algumas reflexões sobre a oposição “opacidade/transparência”, principalmente no que tange a relação ao olhar e ser olhada. Apresenta uma série de tiras que entre imagens e textos, apresentam uma espécie de autoflagelação consciente, ao mesmo tempo que expõe muita dor inconsciente. A febre, o luto, o gozo, a solidão, a objetificação e a culpa são o suco ácido da primeira laranja que as mãos de Ana espremem. A representação das mãos e uma suposta externalização do caos interno que as mesma realizariam são uma imagem bastante potente aqui. Ao narrar sobre a criação de Orange Night Girls, Ana diz: “Abril de 2017, eu me encontrei num estado de perturbação emocional e mental muito forte, cheia de questões trancafiadas dentro do peito, com uma insônia severa. Foi em uma dessas madrugadas de insônia e portando um marcador laranja que desenhei a primeira ORANGE NIGHT GIRLS, com todo o meu coração, com minhas frustrações, emoções e uma vontade de externar tudo aquilo que estava formando um nó imenso na minha garganta”. As mãos que constantemente aparecem no fluxo narrativo do primeiro capítulo estão sempre sujas de fluídos corporais que escorrem por entre os dedos e pulsos. Elas são o representante simbólico do ato inicial de abertura do quadrinho, exatamente porque são também a causa e única possibilidade de tais emoções e ideias encontraram um caminho psico-afetivo de expressão, isto é, em Orange Night Girls encontramos sangue, suor e lágrimas transformados em tinta, ejetados pelas mãos da artista.

O segundo capítulo chamado “Lembranças de um Verão” estabelece uma relação paradoxal com o primeiro capítulo, pois apesar de ele puxar o gacho lógico que não separa dor e prazer, que já estava presente em uma das tiras do primeiro capítulo, na qual Ana traça um paralelo entre as amarras de uma transa bondage com as amarras narcísicas, a ideia de “lembrança” reforça a noção de que o aspecto romântico, juvenil e suave do segundo capítulo possa ser apenas nostalgia. A narrativa acompanha uma mulher que se sente deslocada perante os códigos sociais supostamente compartilhados, para um novo campo no qual a sororidade torna-se um referencial suplente e estratégico. Da desconexão com o campo referencial social parece brotar uma conexão com a sexualidade principalmente no que tange à presença do corpo e de suas parcialidades erotizadas. A bunda da mulher é o representante simbólico que se presentifica em diferentes contextos, obliterando a mítica relação que supostamente o brasileiro deveria ter com ela. As bundas que desenha Ana Cavalieri definitivamente não são a bunda fetichizada pelo protagonista de O Cheiro do Ralo do Lourenço Mutarelli. Ela é aquela que é banhada pelo sol, a que senta na cadeira, a que se enrola no lençol, a que se liberta do jeans, a que mergulha, a que monta no rapaz e sobre quem o rapaz monta, a que senta na garota, a que engole a calcinha, a que respira no banheiro, alvo dos olhos, aquela que pula quando corre e o local seguro para onde os amantes vão quando querem se sentir protegidos do preconceito. Trata-se de retirar a “bunda” enquanto conceito da báscula sagrado/profano que parece dominar o pensamento brasileiro. Qualquer vulgarização que pudesse estar presente na nudez desenhada aqui está diluída no tom cítrico, típico de verão no qual os sucos de Orange Night Girls se transformam.

Com isso, o segundo capítulo avança em termos de traço e cor, expressando afetos mais acolhedores e mais sensualizados. A arte é o coração desse capítulo, fazendo com que ele tenha certo descompasso entre texto e imagem. De certa forma, passa a impressão de que há uma primazia no avanço da imagem em relação ao texto, o que nessa obra é a mesma coisa que dizer que há uma primazia do corpo em relação ao pensamento, em uma espécie de subversão do paradigma de Lolita,– o corpo aqui amadurece antes da intenção.

No último capítulo, nomeado de “Memórias Gravadas na Mão” o foco é deslocado para os olhos. Aqui Ana abre mão quase que totalmente da utilização da sobreposição de texto e imagem. É uma sequência de desenhos de mulheres em diversos estilos, formas, faces, poses, cores e temas. O que prevalece então é o olhar que está direcionado ao leitor, olhando nos olhos e implicando-o no jogo especulativo. Os olhos das mulheres que até então praticamente permaneciam fechados ou cobertos pelas mãos, neste capítulo estão abertos e focados. Ao mesmo tempo em que essas mulheres devolvem o olhar que se debruça sobre a tinta e o papel, Ana toca no que tange a representação do corpo da mulher de maneira muito habilidosa. Se há a incansável e fundamental crítica às formas constantes de representação do corpo da mulher nos quadrinhos, aqui o leitor irá se deparar com uma diversidade estonteante de escolhas representacionais. O que surpreende é o fato de que todas as mulheres desenhadas sejam frutos dos mesmos olhos e das mesmas mãos, já que estamos tão acostumados à reconhecer nas mãos de um artista sempre variações de uma mesma mulher. A imagem de mulher para Ana Cavalieri é plural.

A sexualidade em Orange Night Girls é latente do começo ao fim, mas principalmente no último capítulo, onde encontra sua potência mais sensualizada. Entretanto, não se trata aqui do sexual ou sensual atado ao corpo fatiado em peitos, bundas, pernas e vagina de mulher. O ato erótico da arte de Ana está na maneira curiosa como a fusão de um estilo que remete aos mangás e de uma postura e presença pin-up se faz presente. Entretanto, talvez a sexualidade mais pulsante esteja mesmo no deslocamento que ocorre da postura introspectiva para a variabilidade ampla e extrovertida, expressa pela presença das frutas ao longo do livro. Se a arte de abertura do quadrinho é uma fatia de laranja sensualmente tendo seu suco espremido para dentro de uma boca insaciável, ao fim do quadrinho vemos bananas, melancias e morangos como simples gadgets de composição de um quadro mais amplo em que não há mais um olhar que invasor de corpos femininos e sim um olhar de mulher devolvido.

 

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