Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr A Corte é um filme francês, dirigido por Christian Vincent, muito bem editado e montado. Ao contrário do que se disse sobre esse filme por aí, não se trata de uma película indecisa, isto é, que flerta irresponsavelmente com a comédia e com o drama – supostamente fracassando em ambos os aspectos. Trata-se de um filme que trabalha muito bem sua “vestimenta”, deixando o espectador particularmente implicado em “saber quem veste o que”. De maneira geral é um filme bem agradável e aparentemente despretensioso, o que particularmente me levou a suspeitar que ele talvez não o seja. Acredito ser bem possível que um espectador que deixe passar os diversos detalhes da trama, ainda sim, possa ficar satisfeito e reconhecer algum mérito no filme. Entretanto, também é possível tatear-se cada canto do roteiro, na esperança de encontrar sinais e pequenas metáforas que te lançam a movimentos interpretativos. O filme narra os três dias de julgamento de Martial Beclin, um jovem militar francês, recém-chegado do campo, que é acusado do assassinato de sua filha pequena, a chutes. Porém, o protagonista desta história é Michel Rancine, o presidente do julgamento – um juiz famoso por sempre conseguir condenações de no mínimo 10 anos de prisão para os réus que lhes são incumbidos. Sequelas de um acidente, gripe e solidão abatem o juiz já nas primeiras cenas do filme, mas o mesmo não hesita em presidir a sessão. Durante o sorteio dos integrantes do júri, Rancine é surpreendido pela presença e escolha de Ditte Lorensen-Coteret, uma anestesista que “salvou sua vida”, após um acidente há alguns anos. O resultado foi que Rancine se apaixonou por Ditte, ou pelos cuidados dela. Em sua crítica sobre este filme, Bruno Carmelo indica que a tradução do título original L’hermine para A Corte foi insuspeitadamente feliz, algo raro nestes tipos de tradução, já que a película estabelece-se entre duas linhas narrativas concomitantes: A corte de justiça e o cortejo de Rancine para com Ditte. Quando o jurista se dá conta de que sua amada estará presente nas sessões, logo busca reatar com a mesma, correndo o risco de que o julgamento seja anulado caso o envolvimento dos dois venha à tona. Não se enganem, não é um filme sobre um grande amor proibido, na realidade a corte é um filme sobre estruturas sociais. A filha morta é o eixo central desta história, mas o problema é que este fenômeno, ou seja, a experiência da morte de uma criança encontra poucos recursos discursivos dos quais possa sustentar-se – não apenas no filme, mas no campo social também. Quando buscamos falar sobre pais e mães que perderam seus filhos, não encontramos palavras que os definam discursivamente. Não há nome para estes pais ou mães “órfãos” de um filho ou filha. É disso que se trata a mudez de Martial, ao responder todas as perguntas ou com silêncio ou com apenas a frase “eu não matei minha filha”. Sua insistência não se resume na afirmação de “sou inocente”, ou “foi um acidente”, sua postura busca apenas sustentar aquilo que ele não é, apesar de que o que ele é não tem nome. Tal mudez apresenta-se também na mãe, na forma de apatia e ausência. Porém, a chave de compreensão do filme está em outra filha, a filha de Ditte. Quando Ditte começa a conversar sobre o julgamento com sua filha, a jovem diz que para saber se Martial é culpado ou não bastaria saber como ele estava vestido. Isso também serviria para interpretar se a mãe da criança também estivera envolvida no crime, ou até mesmo se seria ela a própria culpada – essa tese é reforçado no filme, quando se pensa que Martial não gostaria que ela fosse presa, enquanto grávida do segundo filho. Ditte acha a teoria da filha um absurdo e até mesmo a filha parece estar apenas provocando a mãe ao dizer tais elucubrações. Entretanto, algumas cenas antes era a própria Ditte que em um jogo de flerte com Rancine dizia sobre o efeito que o echarpe vermelho do juiz tinha nas pessoas a sua volta. O próprio ainda lhe retruca falando em como o vestido perolado que Ditte havia usado uma vez no passado o havia marcado. Apesar de concordar com Bruno Carmelo em relação à tradução do título, L’hermine, o título original foi minha chave de compreensão do filme. A insistência de Martial em não cooperar com Rancine durante o julgamento, cada vez mais corroborava com a impossibilidade de absolvição do rapaz. Entretanto, em determinado momento Rancine ouve falar sobre uma aposta que estava sendo realizada entre o júri, no qual buscavam adivinhar se um jovem que integrava o corpo do júri iria apenas aparecer para as sessões vestindo seus coturnos, ou se em algum momento ele apareceria com outro sapato. Nos últimos momentos das arguições do processo, Rancine teve um importante insight em relação aos coturnos de Martial, aqueles através dos quais ele supostamente teria matado sua filha à pontapés. A investigação sobre os coturnos do soldado levam o julgamento para uma nova linha de consequências e efeitos que incidem tanto na vida dos personagens do filme, quando no próprio ritmo da película. A filha de Ditte tinha razão. A vestimenta é determinante, isto é, o fato de que cada soldado apenas ganha um par de coturnos de seu batalhão faz com que um pequeno detalhe alheatório ganhe destaque e subverta o fechamento de encaminhamentos. O “arminho” ao qual o título do filme se refere é um pequeno animal de pele branca que tornou-se o animal símbolo presente no brasão da Bretanha. Diz a lenda que Ana da Bretanha durante um dia de caça viu os cachorros perseguirem um arminho até uma poça de lama. A duquesa ficara emocionada com o animal, a partir do momento em que este recusou-se mergulhar na lama para fugir dos cachorros. “Potius Mori Quam Foedari “(Antes morrer que desonrar-me (sujar-me) )” tornou-se assim o lema da Bretanha. Arminho é o nome da vestimenta utilizada por Rancine durante o processo. Algo como uma toga vermelha remendada à uma pelugem branca que representa o espírito aristocrático pautado na preservação da honra em detrimento da vilania. Tal ato é assumido por Rancine quando ele assume perante ao júri selecionado e lhes indica que a verdade não está em jogo naquele julgamento, mas a aplicação da lei. Os fatos sobre Martial e a esposa não revelam a verdade, entretanto, assim mesmo, o júri precisa votar e decidir. O grande mérito de A Corte é a abordagem coloquial que a película faz das problemáticas. Temos a sensação de que os personagens estão lá vivendo e não “fazendo cena”. Este ponto é interessante, pois não se trata exatamente de realismo, mas de uma teatralidade banal, presente no tal tribunal francês. Isso faz com que a película fique bastante leve, apesar da trama circular em torno de um infanticídio. Talvez essa seja a metáfora presente em uma das primeiras cenas do filme, a qual busca representar o caráter insípido e solitário da vida de Rancine. Ao partir uma maçã para comer, Rancine surpreende-se – ou pouco se surpreende – com um verme que dá suas caras, abrindo caminho meio-fruto a fora. O juiz cutuca um pouco mais o pomo até descobrir que a maçã aparentemente saudável estava podre por dentro – o abjeto encapsulado de objeto. [quote_box_center]A Corte (França/2015) Diretor: Christian Vincent Duração: 1h 38min Elenco: Fabrice Luchini, Sidse Babett Knudsen, Eva Lallier. Estréia: 11/08/2016 Distribuidora: Califórnia Filmes[/quote_box_center]