Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr [Nota do autor: escrevi esse texto como exercício pro meu curso de Criação e Crítica Literária, que tá rolando na USP. A ideia foi encontrar algum autor, personagem ou movimento moderno (ativo no século XXI, preferencialmente) que utilize os principais artifícios de construção de personagems definidos por Dostoiévski. Pensei em fazer uma versão maior, mas preferi manter do jeito que está, salvo algumas alterações cosméticas. O limite foi de duas páginas] Fiódor Dostoiévski é descrito como um autor de romances polifônicos, em que visões opostas são confrontadas de forma violenta e quase orgânica, muitas vezes no mesmo parágrafo. Essa flutuação dialética não se restringe a embates de diferentes personagens, mas na própria construção dramática de seus protagonistas, que não veem qualquer problema em contradizer o que defenderam tão abertamente algumas linhas atrás. Eles são otimistas e pessimistas ao mesmo tempo. Isso fica bastante claro, por exemplo, em Memórias do Subsolo, em que um longo monólogo do personagem principal – o Homem do Subsolo – demonstra alguém que levou ao limite a ideia da esquizofrenia. Tanto é assim que ele não aparenta ser um personagem propriamente dito, mas uma presença etérea que permea todo a prosa do autor russo. Às vezes se tem a impressão de que existe uma miríade de vozes escrevendo o tal diário do subterrâneo – uma referência também à própria concepção da mente e suas múltiplas personificações. Existem também conflitos subjacentes e menos claros na obra do escritor russo. O real e o delirante se completam em sua prosa, assim como a necessidade de levar uma ideia ou um conceito às suas últimas consequências, de forma cíclica e inescapável. Tal estilo complexo foi herdado por poucos artistas na virada do século XX. Um dos seus mais proeminentes utilizadores foi Grant Morrison, escritor de quadrinhos escocês que ficou famoso mundialmente ao se tornar um dos ingleses que revolucionaram os quadrinhos norte-americanos na década de 1980 – junto com Alan Moore, Neil Gaiman, Garth Ennis e outros. Morrison é o que pode ser chamado de pós-moderno, e faz uma mistura da chamada alta cultura, com heranças do folclore escocês e a Era de Prata dos quadrinhos, quando praticamente todas as histórias eram estreladas por heróis incorruptíveis. Inseridas em seus roteiros, várias das características principais de Dostoiévski estão presentes: uma desconstrução de Deus como âncora moral, a subversão da ideologia e linguagem, a mudança subjetiva na criação dos personagens, e um clima otimista salpicado de pessimismo absoluto em todas as páginas. Esse tom é levado ao máximo na obra-prima do escritor: Os Invisíveis, que é uma espécie de grande teoria da conspiração, onde o autor descreveu como enxerga o mundo e afirma que muito do que está ali é auto-biográfico. A série em quadrinhos é focada na luta entre uma célula do grupo anarquista que intitula a obra e inimigos misteriosos descritos apenas como Arcontes. Esse mistério parece apenas um artifício narrativo utilizado por Morrison, mas é um cerne da motivação e da manipulação ideológica por trás da obra. Uma das primeiras pistas que parecem indicar que o mistério é uma ferramenta revolucionária presente na obra em caráter muito mais importante que semear cliffhangers, é o próprio slogan de ordem da série: “De que lado você está?”. Esse conceito maniqueísta de dualidade é explorado – e abalado – já no segundo arco, intitulado Arcádia, onde o protagonista explica o conceito por trás do teatro javanês dos titereiros: Na Indonésia, especialmente na região de Java, existe um tradicional teatro de marionetes que representa a narrativa do Mahabharata, o livro sagrado do Hinduísmo, que tem como tema central a luta entre os Pandavas e os Kuruvas. Quem assiste ao teatro vai ouvir duas vozes distintas vindas das marionetes, duas formas de se comportar completamente distintas, o que leva a se pensar que existem dois artistas controlando as figuras. Mas na verdade, existe apenas o mestre Dalang, o titeriteiro, um único artista que manipula os dois lados da guerra e controla todas as forças. Ele faz as vozes, ele movimenta todos os bonecos, ele decide o destino da guerra, ele sabe a hora em que tudo começa e termina, ele manipula os sentimentos de quem assiste, ele faz todos torcerem por um lado… quando na verdade só existe ele, as duas forças conflitantes são somente seus braços exercendo o controle. Há somente o Dalang, o controlador [dá pra ler mais sobre o assunto no meu texto O Aprisionamento Psíquico]. O conceito do Dalang é central para entender que toda a guerra entre os Invisíveis e os Arcontes é apenas um conflito cíclico para fazer o caos dos acontecimentos do mundo fluírem. É o que Robert Anton Wilson afirma com veemência em seus livros: “Uma sociedade humana perfeita, similar a uma colônia de insetos seria completamente tediosa e anti-evolucionária”. Invisíveis e Arcontes seriam uma forma de impedir a regressão da humanidade a um estado de perfeição harmônica e estagnante. Não existe vitória ou derrota, apenas o combate e é ele que importa. A flutuação entre a utopia da vitória contra inimigos demoníacos e a distopia da conclusão de que todos estão do mesmo lado não ocorre apenas no campo macrocósmico da obra, mas no microcósmico também. Os próprios personagens mudam ao longo da série, de forma completamente não-linear. O líder da célula invisível, King Mob, começa a série como um assassino treinado e sanguinário, e se torna alguém extremamente fatigado pela violência – para mergulhar num banho de sangue logo a frente. Outros personagens seguem lógicas similares. A especialista em artes marciais Boy, tem sua personalidade e seu espírito de vingança quebrados por uma série das chamadas palavras-virais: construções linguísticas que liberam estados de consciência diferentes do modelo racional de mundo a qual todos estão acostumados. Uma palavra-viral destrói toda a construção subjetiva do mundo: é preciso encará-lo – e encarar a si próprio – sem autocrítica barata. É como a libertação violenta do Ego proposta por Friedrich Nietzsche – como escreveu o amigo Agostinho. Morrison herda de Burroughs muito dos conceitos místicos e ocultistas de suas obras. Em sua primeira obra para uma editora americana, Homem-Animal, aparece como ele mesmo ao final do último capítulo para se despedir dos seus leitores. Já The Filth, um gibi que prosseguiu com os temas de Os Invisíveis, o protagonista possui uma série de personalidades que podem ser trocadas de acordo com a vontade de seus patrões. Em uma delas ele é um pacato aposentado viciado em pornografia e em outra um furioso agente secreto de uma polícia alterada geneticamente. Difícil não pensar no hiperconsciente Homem do Subsolo, que parece saber das mínimas engrenagens de funcionamento do mundo, mesmo sem ter a mínima noção de como sair dela. Ou mesmo nos niilistas-anarquistas-terroristas de Os Demônios. O próprio Morrison assume a aura rockstar de seus personagens e fala que já foi abduzido por ETs no Nepal e que o sofrimento pela qual passam seus personagens se refletem na própria saúde dele. Típico de um herdeiro dostoievskiano que vive no limite entre a arte e a realidade.