Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr Comprei quatro revistas em quadrinhos de Joe Sacco há uns três anos. Só sabia que misturava jornalismo e quadrinhos, e era multipremiado. Li algumas partes, curti o desenho e a veia política, mas não cheguei a mergulhar nas narrativas do cara. Recentemente fiquei sem notebook, uma verdadeira porrada na minha produtividade – e resolvi ler a montanha de quadrinhos e livros que tinha comprado nos últimos tempos. Joe Sacco estava lá, com cinco HQs – tinha comprado a autobiografia dele, O Derrotista, em uma promoção online. Li tudo numa porrada só e pareceu como um soco no estômago. De cara, todas as obras de Sacco entraram pra minha lista de Coisas Que Queria Ter Escrito, junto com uns livros do Hunter Thompson, do Robert Anton Wilson e alguns textos do Bob Black. Joe Sacco é um tipo de jornalista difícil de encontrar por aí, e utiliza uma abordagem qualitativa e microcósmica para relatar uma narrativa completamente macrocósmica – algo como a escola de pesquisa do antropólogo italiano Carlo Ginzburg. Ele não pratica o jornalismo tipicamente vomitado da atualidade: com matérias que servem somente como um amontoado de dados, e entrevistas de um ou dois especialistas – e, quando há algum espaço, para uma testemunha. O cara não se preocupa somente em descobrir quantas pessoas foram afetadas pela Guerra da Bósnia, ou quanto de prejuízo a população palestina teve com a truculência israelense. O que importa para Sacco é dar voz para as pessoas que viveram o que está estampado em suas páginas, e isso ele faz muito bem. Joe possui as poderosas abordagens de apuração de jornalistas políticos como Matt Taibb, somado ao humor de um P. J. O’Rourke, um dos melhores correspondentes de guerra que já li. A combinação é rara, e ainda faz uso das técnicas de quadrinhos para nos entregar uma abordagem completa, emocionante e visceral, que não encontra tempo para concessões e ao mesmo tempo oferece um portentoso background histórico para qualquer um entender o que tá rolando nas páginas dos livros. Sacco começou sua carreira mainstream de fazer jornalismo em quadrinhos em 1996, com o conflito mais mal entendido, mal abordado e semeador de opiniões pífias do século XX: a ocupação da Palestina. Não é um tema fácil, principalmente para alguém que não tinha renome no jornalismo internacional. Falar sobre a Palestina envolve se livrar de toneladas de lixo publicado nos noticiários israelenses e de seus respectivos mandatários, os ingleses e norte-americanos. Envolve entrar em um mundo historicamente sujo, e no epicentro de um dos maiores massacres psicológicos que uma população já sofreu. Joe Sacco faz isso muito bem, e com algo que poucos jornalistas nativamente possuem: humor corrosivo. Depois que o Jornalismo Gonzo virou o sucesso que é, se tornou extremamente clichê a auto-inserção de jornalistas em suas reportagens. A médio prazo, o Gonzo deixou de ser estilo vinculado a um autor genial para virar uma muleta para jornalista falar merda e se sentir cult por isso – mesmo que nenhuma gota de informação tenha sido passada no texto dele. Sacco nos mostra o equilíbrio de um jornalismo profundamente literário, com uma carga informativa da pesada. Ele é bem humorado, com tiradas desconcertantes sobre mazelas desumanas. Consegue divertir e ao mesmo tempo chocar e informar. Coisa fina, feita por poucos, ainda mais quando lembramos que tudo está em quadrinhos e não em longos textos rebuscados. O humor de Sacco não é para fazer rir, mas sim para evitar um despedaçamento emocional. As informações obtidas por ele compõem uma metralhadora que destrói até os emocionalmente mais fortes, e piadas são uma espécie de fuga do momento para evitar simplesmente cair no chão de choro. Ao mesmo tempo em que evita que ele próprio seja sugado pelos dolorosos relatos dos palestinos, ele salva os leitores, que encontram momentos de respiro em meio a depoimentos escabrosos, de fazer qualquer simplesmente desistir da humanidade. A obra dupla de Joe Sacco sobre a Palestina começa com Palestina: Uma Nação Ocupada, que relata uma viagem dele a Cisjordânia – o maior dos territórios ocupados – ao mesmo tempo em que reconstrói todo o histórico do complexo conflito. É assustador conhecer a fundo os relatos de palestinos que conheceram o inferno de perto. Em um dos relatos entendemos com detalhes como as Forças de Defesa de Israel simplesmente destruíram centenas de oliveiras de famílias palestinas pelo simples motivo de que elas poderiam abrigar terroristas. O detalhe é que o azeite das oliveiras era a única forma deles ganharem algum dinheiro. Em outro caso ficamos sabendo como soldados israelenses atiraram em crianças para atrair os pais delas para a linha de fogo – e assassina-los. Ou ainda a história da mulher que teve de ficar em pé num cubículo por três dias e depois foi espancada para confessar sob tortura, mas resistiu. Ao mesmo tempo, retrata os palestinos como um povo sofrido que se acostumou a esse tipo de mazela – como comprovam os orgulhosos palestinos que já foram presos após lançarem pedras em soldados de Israel. Os eventos brutais são intercalados com um levantamento histórico rigoroso – mas de fácil assimilação – e com pequenos eventos cotidianos de suma importância, como o pequeno capítulo dedicado a questão do desumano controle da água dos palestinos pelos israelenses. Uma Nação Ocupada é completada por Na Faixa de Gaza, que apesar de ser menos abrangente do que a história anterior, nos apresenta uma realidade ainda mais miserável. A Faixa de Gaza é menor, é controlada pelo Hamas – partido inimigo do partido governista, o Fatah – e é uma das áreas mais densamente povoadas do planeta. A semelhança óbvia aqui no Brasil é com a Rocinha ou outra favela superpopulosa – mas sob ataques militares ainda mais constantes e brutais. Na Faixa, a vida é ainda menos importante. Médicos em missão de salvamento tomam tiro e precisam aprender regras militares para poderem sobreviver e salvar – só podem correr e pegar feridos quando os franco-atiradores estão recarregando as armas. Até cachorros e crianças são alvos da insanidade assassina israelense. Os colonos judeus que ajudam o governo a inserir sua própria população nos assentamentos são quase tão cruéis quanto os soldados, e não veem qualquer problema em saírem em bando a noite e quebrarem casas palestinas e insultarem a religião islâmica. Me chocou, mesmo que já tenha visto o documentário de terror To Shoot an Elephant, que mostra a brutalidade de uma das mais recentes operações israelenses da pesada – assista!, dá pra baixar legendado no site oficial, de graça, sem peso na consciência. Palestina transformou Sacco em celebridade mundial do Jornalismo. Foi merecido. Seu relato é brutal e inteligente, e é encerrado com uma conversa nada amistosa com duas israelenses meio cabeças ocas. No sucesso vieram comparações com Art Spielgman, que se tornou famoso com a publicação do seminal Maus, que conta a história de como o pai dele, Vladek, sobreviveu ao Holocausto. As comparações são errôneas em seu cerne, já que Spielgman não produz jornalismo, mas um profundo relato puramente literário de relação pai e filho, como atestam os momentos emocionantes da apuração dele, às vezes mais importantes do que o próprio Holocausto. Mas, no fim, comparar faz sentido sob alguns aspectos. Após o sucesso de Palestina, Joe Sacco viaja a outra complexa e sanguinária área de guerra: a Bósnia. O país é uma mostra recente e ainda sangrenta de como a comunidade internacional não sabe resolver qualquer tipo de conflito. As diferenças são claras: enquanto a Palestina é um micropedaço de terra em uma das porções mais instáveis do mundo, e o sofrimento de sua população é soterrado por um jornalismo americano e israelense que mais parece propaganda militar; a Bósnia está na Europa, no nariz das grandes potências. A Guerra da Bósnia começou em 1992, quando o mundo ocidental ainda comemorava o desmembramento da União Soviética. Mas se os estados soviéticos se separaram de forma relativamente pouco traumática, a Iugoslávia, que foi mantida unificada pela mão-de-ferro sempre admirada do Marechal Tito, se viu envolta em massacres, limpezas étnicas e crimes poucas vezes já vistos. Os motivos que levaram a isso se deve ao fato da Bósnia ser a república mais multiétnica da antiga Iugoslávia – meses antes, Eslovênia e Croácia, que abrigavam seus próprios povos, conseguiram ser independentes sem grandes problemas. Os sérvios, que mandavam em boa parte do Exército Popular da Iugoslávia, não gostaram da possibilidade de independência do país e iniciaram uma invasão em larga escala. O conflito bósnio consegue ser ainda mais complexo de se explicar que o palestino, mas Sacco consegue o feito de torna-lo entendível até a leigos em geopolítica ao simplesmente se ater a fatos. Ao mesmo tempo em que explica toda a escalada de guerra dos sérvios, Sacco entrevista pessoas sofridas que conseguiram algum alívio após a chegada da ONU e a realização de uma série de acordos – humilhantes – com os sérvios. A fórmula é a mesma de Palestina, mas com uma abordagem ainda mais humana. O resultado é Área de Segurança: Gorazde, que disseca a realidade e a rotina dos bósnios – nem todos eles muçulmanos, como muitos espalharam – após a presença dos horrores da guerra por quatro anos. Gorazde consegue ser um soco no estômago ainda mais forte que os dois relatos sobre a Palestina. O motivo é o fato dos palestinos já terem criado uma rotina a guerra, e até uma poderosa cultura de resistência, que ainda acompanhará muitas gerações dos que nascerem no país. Para os bósnios, a guerra foi como uma tempestade de terror chegada repentinamente, e eles não estavam preparados para ela. Os testemunhos dos habitantes são quase inacreditáveis. Vizinhos antes amigos há 10 anos se converteram em assassinos cruéis, não poupando mulheres ou crianças. Estupros, degolamentos e massacres em massa são rotineiros na realidade de guerra do país. As histórias não são empilhadas como ocorre no jornalismo praticado diariamente pelos grandes veículos. Cada relato merece sua atenção, e até denúncias do uso de armas químicas surgem em suas páginas. Sacco também alterna relatos de massacres inomináveis pelos sérvios com a total incapacidade da ONU e da Otan de apontar qualquer tipo de resolução ao conflito – mesmo com o uso da força. Vemos líderes sérvios chantagearem a ONU sem qualquer tipo de punição, e ainda obterem todas as concessões que exigiram. Como solução para impedir um desastre de proporções gigantes, a ONU cria Áreas de Segurança, e impede os sérvios de entrarem nelas. Gorazde é uma dessas áreas, que logo se veem no meio de problemas de abastecimento e sob constantes riscos de invasões e novos massacres. Não se dando por satisfeito com os relatos das mazelas propagadas pelos sérvios – vários deles civis que planejaram o assassinato de vários muçulmanos mesmo antes da guerra explodir – sob os muçulmanos bósnios, Sacco volta ao país após a publicação da revista e escreve Uma História de Sarajevo, que relata como o exército dos bósnios também se entregou a massacres desumanos, matanças desordenadas e crimes de guerra – embora em muito menor proporção – sob o comando dos Senhores da Guerra, chefes militares poderosos com exércitos praticamente rebeldes. Além de escrever, Sacco desenha muito bem. Suas páginas duplas são algumas das mais detalhistas que já coloquei os olhos nos quadrinhos. Ele não nos poupa, e as formas arredondadas de seus personagens ficam em um limbo imperceptível entre a detalhista realidade sensorial e a mais pura fantasia. Tudo isso é capturado pelos quadrinhos de Joe Sacco, que insere em suas páginas toda essa degradação da humanidade e ainda proporciona seus habituais respiros bem-humorados, ao questionar o futuro de toda uma geração de estudantes que ficou ao menos quatro anos sem estudo, ou dedicar um divertido capítulo inteiro aos desejos que as mulheres bósnias têm por calças jeans importadas. É por ser completo que Sacco está na vanguarda – e olha que tem dois anos que ele não lança nada. Compre as obras de Joe Sacco