Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr Em 2007, enquanto Pascal Laugier finalizava o genial Mártires (Martyrs, 2008), a Blumhouse Productions já experimentava o reconhecimento, através do sucesso de público de Atividade Paranormal (Paranormal Activity), enquanto planejava o retorno da franquia nos anos de 2010 e 2011. Se Atividade Paranormal encontrou seu lugar dentro do cinema de terror hegemônico, em terras americanas (Norte e Sul), a película francesa de Laugier dominou a cena indie e cult dos cinéfilos de terror, mantendo o alto nível daquilo que ficou conhecido como o “pequeno ciclo” do terror francês nos anos dois mil. Mártires (2008) era aquele tipo de filme do qual você podia se gabar de conhecer, ao mesmo tempo em que podia sentir-se “por fora” ao ouvir sobre ele pela primeira vez. A qualidade do filme francês nos convoca a falar sobre ele, isto é, convoca ao testemunho daqueles que o viram, entretanto, hoje precisamos falar sobre o seu remake: o filme americano Martyrs (2016), dirigido por Kevin e Michael Goetz. Observação: Recomendamos que todos assistam ao filme original de Pascal Laugier, antes mesmo de ver um mísero trailer desse remake! Quando o assunto é remake ficamos extremamente tentados a comparar cópia e original, e de certa maneira esse tipo de comparação é até intencional. Por exemplo, Martyrs (2016) em sua publicidade tem contato com essa comparação, buscando “puxar” através da mesma, algum tipo de revival relacionado à película francesa. Mesmo que a tendência nos direcione a olhar para o que há de igual entre o antecessor e a homenagem, podemos nos esforçar em localizar aquilo que os distanciam, principalmente quando o são detalhes, deslocados e embaralhados, perdidos na experiência estética. A ideia não é procurar aquilo que grita “diferença”, “traição” ou “má interpretação”, mas trazer à tona algum pequeno lapso que escapa ao controle diretivo. Tal detalhe pode apontar para o que tem de mais singular em uma película, ou até mesmo em um cineasta, dizendo sobre uma intenção que talvez realmente tenha passado despercebida. A estratégia na coleta de tais lampejos é buscar repetições, estranhamentos, radicalidades, insistências, negações e até mesmo o que podemos entender como “erros”, isto é Cangurus na Amazônia. Talvez a diferença mais gritante entre original e remake seja as mudanças em relação ao corte narrativo entre as histórias de Anna e Lucie. Na película mais recente, a estrutura narrativa é contínua e plena de sentido. Sente-se tanto uma preocupação, quanto um excesso em termos de continuidade. Não podemos hesitar em nomear de “apelação”, a insistência do roteiro em produzir efeitos de sentido entre cenas, planos, sequências, lógicas, montagens, discursos, personagens e até mesmo entre Mártires e o filme atual. Por exemplo, no trabalho de montagem vemos e revemos – no mínimo umas 5 vezes – cenas da infância Anna e Lucie. Não é difícil perceber o objetivo de tais retornos, principalmente quando estão mesclados com as mais diversificadas cenas de perseguição, aflição e tortura: enfiar goela abaixo a ligação afetiva entre a garotas. Com tal preocupação entre outras, os irmãos Goetz derrapam em contar uma história, pois recorrem à uma forma narrativa tradicional que revela o desenvolvimento de maneira linear e progressiva, recorrendo de maneira convencional e enfadonha aos flashbacks. O filme francês de 2008 impactava em suas quebras de sentido, principalmente na última sequência do filme, que propositalmente propõe um brusco fechamento da linha narrativa com um furo de acontecimento que tem por efeito o que poderíamos denominar de “trauma narrativo”. Em Martyrs (2016) há uma espécie de bricolagem entre os eventos que solapam o espectador para a própria posição de montador. Demanda-se de quem assiste a frieza interpretativa e a assunção intuitiva – para além do estomago para com o gore. O remake afoba-se em suturar os “traumas narrativos” de seu antecessor, exagerando nas explicações diretas e indiretas. E não se trata apenas de uma mudança estilística, a sensação é de que ele tenta melhorar o filme francês– o que não poderia soar mais prepotente. Isso faz com que a própria construção diegética composta pelos Goetz funcione como um antecipação interpretativa apressada das lacunas presente no filme Laugier. Por isso, temos que o segundo ato como um todo – isto é, o que deveria ser a história de Anna – seja uma bagunça ideológica de roteiro. Atenção: Para que sigamos com nosso argumento, a partir deste ponto detalhes da tramas e do encerramento do filme serão apresentados. Recomendamos que prossigam com a leitura aqueles que já viram o filme! Em Mártires (2008) temos uma divisão bastante clara entre a narrativa de Lucie e a de Anna. O primeiro ato apresenta a fuga de Lucie, o estabelecimento de sua relação com Anna e com seu demônio interior, seguindo para sua a vingança e por fim sua morte. Podemos ler o ato de Lucie como um terror metafórico, no sentido de que seu trauma é transmutado em vingança e sua culpa em monstro. Trauma e culpa são na personagem uma coisa só, fazendo com que o êxito da vingança não resulte na extinção do monstro interior que a perseguiu desde a fuga. Já no remake americano toda a sequência da vingança de Lucie é uma recapitulação quadro-a-quadro do filme anterior, com exceção de alguns detalhes importantes. O principal: no original, Lucie não está sofrendo. No remake, o sofrimento da personagem foi substituído por raiva, posicionando-a afirmativamente na posição de vítima que se vinga – impedimento a fratura narrativa que a envolveria com uma aura psicótica presente em sua contraparte de 2008. Para usar um exemplo, a morte da “mãe” da família no original é seguida de uma cena em que a Lucie parece agonizar por seus atos. Ela sacode, beija, acaricia e bate no corpo supostamente sem vida de sua carcereira. Já no remake, há apenas um tiro que falha, e uma série de facadas. A falta motivacional da personagem distorce sua finalidade. Se a primeira Lucie descobre ser impossível curar um trauma, permanecendo “quebrada” até seu fim, a segunda é construída como a escolhida, como portadora de um “dom” que há torna “inquebrável” até o fim. Assim chegamos ao ponto mais complicado, onde o remake assume-se como uma cópia patética e despretensiosa do filme original. A narrativa de Anna compõem em 2008 (original) o segundo ato e Lucie não participa mais do filme a partir desse ponto, levando o filme do terror metafórico, para uma das mais brutais representações da metafísica da tortura que já pode ser observada em película. Não é só o gore e aflição que fazem vezes neste ponto, também encontramos a representação da figura do Homo Sacer, aquele fiapo de humanidade produzido pelos campos de concentração e manicômios. O ser humano que é destituído de tudo o que lhe conferiria um lugar político e social. No remake, Anna empunha sua shotgun e retorna para salvar todas as vítimas do culto sádico. Trata-se de uma homenagem desonrosa para com os westers ou até mesmo para a própria ideologia norte-americana de que a barbárie tem de ser conquistada à bala. A espingarda e o revolver são os símbolos da civilização, enquanto a deturpação do cristianismo é o mal que deve ser eliminado. Uma vez cumprida a tarefa de exterminar o mal através, as pistoleiras protagonistas encontram os céus em um tipo de êxtase orgástico extremamente distante do olhar postado apresentado pelo primeiro filme. No remake, vemos que as torturas são impulsionadas por mais por uma loucura sádica, de pesquisa e idealismo em si. Há uma cena na qual Eleanor assiste ao sacrifício de uma vítima. Esta é queimada como uma bruxa na inquisição e podemos ver na interpretação de Kate Burton, que Eleanor também goza de seu sadismo. Por outro lado, o original ia além e era certeiro em apontar o regime burocrático e demasiado humano pelo qual os captores de Anna buscam lhe torturar. O sadismo não dá as faces em 2008, o que temos no lugar é trágica fusão entre razão e fé. Talvez esse seja de fato o “crime” deste remake, apagar a estrutura poética e política do original. Mártires (2008) é um filme que de certa maneira reconstrói a memória ficcional sobre o ato da tortura e até mesmo do colaboracionismo francês. A cópia americana transforma a tortura em mote para vingança e signo que aponta para a barbárie que deve ser combatida. [quote_box_center]Martys (EUA/2016) Direção: Kevin Goetz e Michael Goetz. Duração: 1h 26min Elenco: Troian Bellisario, Bailey Noble, Kate Burton. Distribuidora: Califórnia Filmes[/quote_box_center]