Durante certo tempo ocupei uma posição única: entre as centenas de criaturas solitárias que assombravam a parte baixa do centro de Denver, não havia nenhuma tão jovem quanto eu. Dentre aqueles homens sombrios que haviam se dedicado, cada um por sua própria e boa razão, à tarefa de terminar seus dias bêbados sem vintém, eu sozinho, ao compartilhar de seus modos de vida, lhes apresentava uma réplica da infância para o qual eles podiam, diariamente, voltar um olhar desamparado e, ao ser transportado para o meio deles, tornei-me o filho desnaturado de algumas dezenas de homens derrotados.

Ele poderia ser apenas mais um jovem delinqüente entre milhares. Um usuário das mais diversas drogas e com precedentes de mendicância desde a mais tenra infância. Que cresceu no meio de vagabundos, dormindo na rua ou em quartos condenados, infestados de pragas. Mas como todos que já mergulharam no selvagem universo beat bem sabem o destino de Neal Cassady foi completamente outro. Ele deixou de ser somente um homem para se tornar um símbolo. Um ideal de vida, de comportamento. A força propulsora que levou Jack Kerouac a desenvolver sua prosa espontânea e a dedicar dois dos seus melhores romances a ele, On The Road e Visões de Cody. E que levou Allen Ginsberg a criar o herói secreto de O Uivo. Em resumo, ele se tornou o último herói americano legítimo, daqueles capazes de levar uma pessoa a sair de casa apenas com uma mochila nas costas e desbravar os recantos menos desbravados dos Estados Unidos.

Tamanha fama fez Cassady ser um nervoso rolo compressor de contradições. Viveu cercado por escritores e outros artistas e ele mesmo nunca terminou de escrever nenhum livro, por mais que quisesse. Era cheio de amigos por todos os cantos dos Estados Unidos, mas morreu praticamente sozinho de overdose no México. E mesmo célebre, só havíamos tido a oportunidade de acompanhar seus atos pelos relatos de terceiros. Por estes e diversos outros motivos se faz tão essencial a leitura da autobiografia inconclusa de Neal, O Primeiro Terço. É a rara oportunidade de conhecer a sua trajetória desde as primeiras lágrimas infantis e compreender melhor o homem que ele se transformou quando conheceu os representantes beats.

Esgueirando-me pela porta para o assoalho todo lascado, eu cruzava por quartos onde corpos enfraquecidos e almas estilhaçadas uniam-se com os rumores de seu sono pesado, ao de meu pai.

A maior ambição de Cassady sempre foi ser escritor.  Parecia-lhe ser a sua única saída para mudar de vida. Sua salvação de passar o resto da sua vida entre passagens cada vez mais largas em prisões. Por meio desta idéia fixa que ele conheceu Jack Kerouac, a quem foi à sua casa pedir para lhe ensinar a escrever. A grande ironia deste encontro é que seria Neal quem acabaria ensinando alguma coisa, ao fazer Kerouac se libertar das suas amarras criativas e desenvolver seu estilo consagrado.

Em meio a pessoas como Allen Ginsberg, William Burroughs e outros beats, Neal Cassady iniciaria seu interminável épico sobre a sua vida. Mesmo sabendo que não tinha a técnica nem o conhecimento necessário para ser um bom escritor ele ficou anos para terminá-lo. Alternando períodos de alta produtividade estimulada por amigos com meses sem escrever uma única linha, a autobiografia ainda não estaria completa em 1968, o ano da sua morte. Considerada perdida para sempre até 1979, quando finalmente um pacote de páginas datilografadas foi encontrado em um arquivo, amarelado e esquecido por mais de uma década. Enfim, lá estava o relato inconcluso. O Primeiro Terço. As duas partes restantes Cassady partiu cedo demais para ter tempo de terminar.

Eles eram bêbados cujas mentes, enfraquecidas pelo álcool e por uma maneira subserviente de viver, pareciam continuamente ocupadas em emitir curtas declarações de óbvia inutilidade, pronunciadas de maneira que fossem instantaneamente reconhecidas pelo ouvinte, que, por sua vez, já havia escutado aquilo inúmeras vezes e esmerava-se de um modo geral em assentir para tudo que lhe era dito, e então dar seguimento à conversa com um comentário de sua própria autoria, igualmente transparente e carregado de generalidades. A simplicidade deste padrão era maravilhosa, e não havia limite para as conclusões a que eles poderiam chegar juntos, isso sem falar nos extremos de abstração que podiam ser atingidos. Depois de ouvir por vezes incontáveis a repetição sistemática desse papo furado especulativo, passei a conhecer suas mentes tão intimamente que era capaz de entender as coisas do modo como eles as entendiam, e logo já não havia mais mistério na conversa de nenhum deles.

Em seu início, O Primeiro Terço é quase documental. Uma saga americana raramente vista. Neal não se conforma com os parcos limites de uma biografia convencional, preferindo cavar cada vez mais fundo. Desde os primórdios da sua família nos Estados Unidos, bem antes dele nascer, até os primeiros empregos do pai e o casamento deste com a mãe.

Graças ao alcoolismo cada vez mais crônico do pai, a mãe exige o divórcio. Em vez de escolher ficar com os irmãos e a mãe na segurança de um lar, ele parte com um pai para um conjunto de apartamentos prestes a desabar. Para as esquinas, onde podiam mendigar trocados aos transeuntes para comprar garrafas de bebida. Para os restaurantes da igreja, onde qualquer mendigo ou vagabundo  podia ter uma refeição completa de graça. São nestes ambientes, entre a imundície e a fome, a mais extrema pobreza e decadência, cercado por bêbados, que cresceria o pequeno Neal.

Com o pai inconsciente pelo álcool em algum canto, Neal desfrutaria de uma liberdade que poucas crianças da sua idade sequer sonhariam em ter. Poderia andar por onde e por quantas horas quisessem, fuçando latas de lixo à procura de objeto de algum valor. E ainda podendo aflorar livremente sua sexualidade precoce, seja esfregando-se em garotas da sua idade ou indo para os finalmentes com as mais liberadas das suas vizinhas.

É uma experiência que se tem poucas vezes na vida e que se concentra naqueles segundos de antecipação antes que seja dada a resposta a uma pergunta que cresceu tanto em importância que parece determinar o destino de uma pessoa irrevogavelmente. Esses momentos de tensão – olhos arregalados, boca aberta, respiração suspensa, a garganta apertada e a mente a todo o vapor –foram sentidos pela primeira vez por Neal quando seguia quase correndo pelo caminho tão familiar que levava até a barbearia.

O Neal que encontramos aqui está bem longe dos que estamos acostumados a ver na obra de Kerouac. É apenas um garoto desamparado como tantos outros, daqueles que precisam inventar jogos para esquecer a fome, sem qualquer perspectiva de futuro. Subjugado pelo sadismo dos irmãos, que nunca soube o que era ter brinquedos ou ganhar presentes de Natal. O próprio amor do pai, um simples gesto, já era motivo de um êxtase. Uma ida ao cinema mais fodido da cidade então já é motivo de conversa animada por dias.

A narrativa de Cassady é rude e por vezes confusa, mas guarda em si uma beleza simples e sincera. Ele dá voltas mais voltas sobre o mesmo assunto, como alguém que conta uma história, falando horas sem parar. Ler O Primeiro Terço é como ouvir a história da sua vida saindo da sua própria boca no ritmo acelerado da sua  voz de malandro incorrigível.

Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, sempre foi uma das grandes paixões de Neal Cassady, a ponto de sair sempre com ele em sua mochila quando pegava a estrada.Inspirado nele, faria longas e detalhadas descrições de ruas e casas, além de se esforçar ao máximo para estender suas frases. Infelizmente, Neal nunca fez o mesmo esforço que Proust para recuperar suas memórias perdidas. Algumas vezes seu cérebro parece tão pifado pelo abuso de drogas que ele só consegue relembrar de um ou dois detalhes da escola ou de uma viagem.

De vez em quando, silenciosamente, mas com a energia das crianças, eu irrompia no quarto e pegava o Baixinho acariciando as partes. Mesmo já tendo mais de quarenta, sua preocupação com essa forma de diversão era justificada. Tenho certeza, a julgar por sua apa rência, de que ele não devia dormir com uma mulher desde a sua juventude, se é que antes já o tivesse feito. Com crostas de sujeira, ele cheirava mal e era muito feio, com uma cara sem testa ocupada por uma boca arreganhada parecendo de borracha, que exibia dentes pretos como tocos.

O Primeiro Terço, como relato inconcluso, pode fazer os leitores sentirem falta de peças-chave da vida de Neal Cassady. Seus quinhentos furtos de carros, suas viagens pela América, o início da amizade com Kerouac e Burroughs e sua relação homossexual com Allen Ginsberg ficaram de fora do livro. São trechos que ganham vida em palavras apenas pela lenda da ficção kerouaquiana. A edição até tenta corrigir o problema com cartas e fragmentos de Cassady. Neles finalmente podemos acompanhar em primeira mão fatos importantes como sua estadia em reformatórios, casos com mulheres e furtos. Mas a sensação ainda é de incompletude. Uma obra interrompida no meio de uma frase.

O Primeiro Terço é a oportunidade de acompanhar muitos dos fatos e reviravoltas que fizeram a criança Neal se tornar o Dean Moriarty de On The Road e o Cody Pomeray de Visões de Cody. É por ele também que finalmente o vemos como pessoa e não como personagem. O homem que fez tudo o que um romance fez, que viveu em vez de escrever. E assim podemos tentar entender como alguém que cresceu entre as pessoas mais fracassadas e decadentes do país poderia manifestar tanto amor pela vida e vontade de viver. Talvez porque assim tenha percebido o quão frágil é a vida humana e simplesmente resolveu aproveitar cada segundo com o máximo de intensidade antes que fosse tarde demais.

 

Autor: Neal Cassady

Páginas: 199                                                

Nota: 7,0

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