Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr “É a palavra que ordena e organiza, que induz as pessoas a fazerem as coisas, comprar e aceitar.” – Herbert Marcuse “Serás herege para ti mesmo, serás feiticeiro, adivinho, doido, incrédulo, ímpio e malvado.” – Nietzsche Já indiquei Os Invisíveis para muitas pessoas, desde amigos próximos até a quase desconhecidos que por acaso me pediram indicação de alguma HQ boa. O resultado da leitura de cada um foi diferente, mas um tipo de leitor em especial sempre me irritava: aquele que dizia que o roteiro de Invisíveis era um monte de coisas aleatórias sem qualquer sentido e que as pessoas simplesmente engoliam como “foda” por parecer cult. Em homenagem exatamente a essas pessoas que resolvi escrever esse texto, em que Os Invisíveis perdem o protagonismo pra filósofos que de alguma forma estão envolvidos no mesmo caldeirão entrópico de referências que Grant Morrison uma vez esteve. Não que Morrison tenha exatamente lido esses caras que vou comentar, não posso falar por ele, no entanto isso não impede que as suas ideias por ressonância de uma época através de filmes, música e literatura tenham chegado ao seu sistema neural. De uma forma ou de outra seus roteiros são marcados por esses pensamentos, mesmo que não por influência direta, estão lá os vestígios como prova do que vou dizer. Para quem não conhece Os Invisíveis recomendo antes a leitura do texto do Voz do Além sobre a obra aqui. *** Em célebre passagem do Breviário de Decomposição o filósofo romeno Cioran, que foi erradicado na França, se perguntou “por que cada geração não cria um novo idioma? Por que se ‘ama’ e ‘sofre’ como há 100 anos, usando as mesmas palavras ensebadas de tantas outras eras?”. Conhecido por sua franqueza explosiva e pessimista – sendo chamado às vezes de filósofo em chamas -, Cioran acabou involuntariamente se alinhando a vários outros nomes numa luta contra a linguagem estabelecida pelo status quo da sociedade. Uma luta que Grant Morrison faz questão de colocar como central em quase todas suas HQs do final da década de 80, desde Patrulha do Destino, Homem-Animal e que teve seu ápice em Os Invisíveis. A posição de Cioran é a de quem prefere o dom supremo do silêncio ao uso de palavras, estas que por si só emitem um caleidoscópio de significados, impedindo uma comunicação precisa. E se a comunicação alfabética não pode ser precisa, qual o sentido de sua existência? Pois que voltemos ao uso de sinais, bem mais precisos em transmitir mensagens do que a abstração dos alfabetos, ou nos calemos para sempre. As palavras… essas prostitutas semânticas que só perdem em velhice para as verdadeiras putas das ruas, são mais sujas que elas, mais babadas, mesmo as bonitas são feias já que se observadas de perto, em si mesmo não querem dizer nada! Diversidade, democracia, liberdade, loucura, felicidade, tristeza, realidade, superação, inteligência, diversão, morte e vida… o som não tem a ver com o símbolo, a assimilação de um ao outro é arbitrária, e os conceitos passam longe de serem o objeto a que se referem, já que sua pureza é devassada em seu nascimento na própria consciência do homem. Cada época lambeu com suas línguas depravadas as palavras como quis, cada pessoa as gozou de acordo com seus fetiches, e elas nos chegaram até hoje desta forma, imundas, podres, devassadas e ainda temos a coragem de colocá-las em nossas bocas! É assim que herdamos doenças antiquíssimas, racionalismo, platonismo, aristotelismo, sofisma, tudo herdado através da praga do vocabulário. Quanto mais palavras estiverem enfileiradas menos se consegue comunicar algo. Burroughs, um dos escritores mais radicais do século XX – e que influenciou fortemente Morrison e Alan Moore (além de Kerouac, Ginsberg, Beatles, Kurt Cobain, Ministry, Steely Dan, etc. etc. etc.) -, certa vez disse que civilizações inteiras ficaram séculos estagnadas em uma situação psico-social por causa de algumas palavras: fé, ciência, realidade, supremacia, bondade. O que herdamos do passado são vocabulários inúteis. Até temos coragem de eliminar os cadáveres mais eminentemente decompostos, coisas que de tão fedidas ninguém mais aceita colocar em sua boca, como aquelas gírias que perderam sua sustentação histórica “morô”, “broto”, “transar” (no sentido de criar), etc. Porém a grande maioria dos zumbis semânticos continuam lá, se não prendendo nossa civilização, prendendo ao menos os indivíduos em sua engrenagem infernal de repetição de um ciclo mental estéril. Herdamos a debilidade de outras épocas através da continuação de sua forma de comunicação. Vida e morte, por exemplo, são clichês metafísicos que poderiam ser renovados através de outra perspectiva com uma nova gama de formas de comunicação. Essa temática das palavras como o limite da existência humana percorre quase todas as páginas de Os Invisíveis, porém no VOL. 2 há um arco em específico que isso se torna o centro de toda a discussão, me refiro a “Campo de Extermínio Americano” que começa no nº 11 desse volume. Em certo momento da trama os Invisíveis, ao tentar resgatar um de seus membros que sumiu misteriosamente com um artefato que eles haviam conseguido capturar dos inimigos, caem em uma armadilha, em que o lado oposto vai tentar derrotá-los os infectando com… vírus de palavras! Acompanhando as discussões do Burroughs podemos entender mais ou menos como esse ataque funciona. As palavras já não vibram como 60 anos atrás, qualquer babaca já percebeu que a poesia está morta e a prosa só sobrevive se for eletrizada. Poetas se têm aos montes! Só que como todos usam um vocabulário zumbificado, que não pulsa, suas poesias já nascem mortas em suas cabeças. Vez ou outra ainda surge alguém que consegue através da necromancia semântica extrair os últimos gritos legítimos dos cadáveres das palavras. Retirando alguns de seus delírios mais intensos, não seria sensato acreditar em Burroughs e considerar a palavra como um vírus em que o homem é o hospedeiro? Não era algo do tipo que Kafka quis dizer transformando Gregor Samsa em uma barata gigante? Se como diz Burroughs, as palavras são vírus, esse vírus é o que diferencia o homem dos outros animais. A característica mais proeminente em um vírus é a sua replicação ad infinitum quando encontra um hospedeiro, exatamente como fazemos com as palavras, as reproduzindo em nossos cadernos, paredes, computadores, conversas nas praças, banheiros, faixas, CDs, cinema, música, enfim, uma epidemia linguística irrefreável. A referência do velho beat na HQ é notória, como podemos ver no uso de “palavras virais” como arma de controle do inimigo abaixo. Para Burroughs, ao contrário dos outros vírus as palavras não matam seus hospedeiros, se misturam a eles em uma simbiose sincrônica, até por que precisam deles para continuar a se reproduzir. No entanto os humanos (os hospedeiros), deixam de desenvolver plenamente suas capacidades mentais, param num estágio de desenvolvimento psicológico extremamente limitado. Nesse estado o homem é submisso à linguagem. E como entidade de vida própria instalada no cérebro humano, as palavras controlam todos os nossos sentidos, inclusive nossa consciência sobre nós mesmos já que só podemos pensar através delas. No controle de nossos corpos e consciência as palavras apenas almejam sua reprodução infinita e a atrofiação completa do órgão cerebral humano. Dando-nos acesso regulado aos nossos próprios pensamentos, as letras nos impedem de atingirmos áreas restritas da realidade. Imaginemos que as letras são como chaves, que liberam fragmentos da realidade assim que unidas em uma palavra, no entanto nós temos apenas um número limitado de letras que nos foram dadas pelo vírus, se pudermos nos livrar do vírus podemos então criar outras letras e acessar sem qualquer limite os recantos da realidade. Na imagem abaixo, ainda do nº 13 do VOL.2 de Os Invisíveis isso é dito de uma forma bem mais compreensível. O grande problema do vírus da linguagem é que ele transforma nosso cérebro em uma máquina de alucinações programadas: somos capturados para dentro de um sistema simbólico que quer substituir os objetos a que se referem como realidade e que nos convence do absurdo de que a realidade é uma só e é a que os nossos olhos infectados pelo vírus veem. Em suma, o vírus e sua máquina de alucinações (que se torna o nosso cérebro) transformam o homem em um ultra-conformista que confia nas palavras/realidade, que acha qualquer ideia fora da realidade ou da racionalidade (estratagema através do qual o vírus cria sua argumentação auto-avaliativa da realidade) uma grande bobagem, um escravo (hospedeiro) perfeito. Através de técnicas diversas, como as estudadas pelo behavorismo, por exemplo, é possível desencadear reações controladas do vírus em nosso cérebro. É nisso que a publicidade foca suas pesquisas. E o homem não tem como fugir ao controle desses comandos pré-programados pelo vírus. Os que controlam as palavras controlam a realidade das massas. É justamente este último ponto que preocupa o filósofo frankfurtiano Herbert Marcuse. E é nisso que ele vai construir uma das bases teórico-críticas mais importantes do século XX, que foi exposta no livro “One-Dimensional Man”. Que talvez tenha chegado a Morrison mais indiretamente através de Foucault do que através do próprio Marcuse. O conformismo total, segundo Marcuse, é a principal desgraça do mundo pós-Segunda Guerra Mundial. E o pior, esse conformismo era novo, por que era racional e justificado por uma semântica hipnótica que perpassa todos os regimes políticos do mundo, dos comunistas aos capitalistas. Nos dizem que “guerra é guerra” para justificar as atrocidade; invadem países em busca de combustível fóssil e dizem que é no intuito de levar democracia e liberdade; fazem eleições não-paritárias e fraudulentas e chamam de “festa da democracia”, “as eleições mais livres já feitas no país”; espancam os cidadãos em nome da ordem ou da revolução; ou seja, mais do que simplesmente usar as pessoas como ferramentas (o que as tornam escravas), os donos da linguagem nos comprovam por estatísticas que nunca estivemos melhores, minando a capacidade de questionamento. PIB, IDH, enfim, uma série de siglas seguidas de números que não dizem nada, mas que nos calam racionalmente sempre. A linguagem usada pelas pessoas no poder e na publicidade tem principalmente dois objetivos: causar identificação do consumidor com uma situação e depois tentar unificar o modo de pensar do receptor com o padrão desejado. A identificação é uma tentativa de desarmar o nosso sistema mental defensivo através da familiarização, nos dizem “sua universidade”, “seu país”, “sua cidade”, “sua vida”, “seu emprego”, “feito pra você”, quando na verdade tudo está fora do seu controle, isso é apenas parte da máquina de ilusão das palavras tentando sintonizar seu cérebro com a mensagem do patrocinador. É aí que então vem a proposta velada de unificação de ideias, no intuito de uniformizar e depois enviar um comando que em grande número será executado “compre coca-cola”, “compre chiclete x”, “compre computador Y”, “compre videogame z”. Não importa a necessidade do objeto, o comando será executado. É assim que sem ver nem pra quê você acaba com um monte de tranqueira tecnológica que não vai usar! Esse tema do controle mental através dos meios de comunicação precede a temática do próprio vírus da linguagem dentro do universo de Os Invisíveis. Já no nº 2 do primeiro volume da série, antes mesmo de Dane ser treinado por Tom O’ Bedlam e ingressar na célula Invisível, a discussão de Marcuse aparece claramente. Levando em conta a biografia do Morrison é possível notar que esse trecho da imagem abaixo faz parte de alguma memória sua da década de 70, época em que o livro “One-Dimensional Man” era um dos mais vendidos em todas as livrarias do mundo e muito utilizado como referência pelos ativistas sociais (como seu pai era). Por alguns o livro era considerado, por exemplo, como uma das causas do “Maio de 68 francês”. Então é fácil entender o eco marcuseano em vários momentos de sua obra. Para Marcuse as palavras foram destituídas do empirismo de seus significados e retornaram transformadas em elementos mágicos, ritualísticos e autoritários. “Os conceitos que compreendem os fatos, e desse modo transcendem estes, estão perdendo sua representação linguística autêntica. Sem tais mediações, a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão e do fato, da verdade e da verdade estabelecida, da essência e da existência, da coisa e de sua função”. – H. Marcuse Os conceitos foram absorvidos pelas palavras e certas palavras se operacionalizaram de tal maneira que mesmo as pessoas que não saibam o que querem dizer as defendem a todo custo. Se alguma pessoa diz que algo é “pós-moderno”, automaticamente este algo se torna pós-moderno mesmo que seja medieval, já que este não passa de um conceito coisificador-operacional. O mesmo acontece com “esquerda” na cabeça de muito marxista, se alguém é contra o status quo, automaticamente na cabeça desses caras essa pessoa está localizada na esquerda, mesmo que seja um neo-nazista homofóbico. É neste ponto que uma luta “contra-a-linguagem” se faz necessária, tentar romper com o significado ritualisto-autoritário ou com conceitos aprisionadores de sentido, mas como fazer isso? Usando uma estratégia situacionista, Morrison transforma a luta contra as palavras dentro do universo d’Os Invisíveis numa luta contra o EGO, contra a identidade – imagem que se tem de si mesmo. Os personagens atacados pelo vírus tem que enfrentar o realismo puro, a autocrítica intensa, capaz de deixar qualquer um confuso em relação aos seus “objetivos de vida”. A estratégia de controle é simples: deixar todo mundo vulnerável para nos convencerem através de teses audo-validativas que a realidade é única e que é só ela que podemos ter, para então nos unificar em torno de algo que não acreditamos. Mas como profere Marcuse, não dá pra dizer que as pessoas realmente acreditem no que a hipnose mercadológica sugere, porém como já foi dito, ela cria um novo tipo de conformismo. Esse novo conformismo é composto de realismo exacerbado e ceticismo extremo, que fogem mesmo à lógica erótico-destrutiva dos niilistas. Esses conformistas seguem uma linha Thanatos de niilismo: aceitam a realidade como ela é; algo externo, palpável, único e imutável. Para eles a história é feita desde sempre de sexo e sangue; deuses não existem; o indivíduo nada pode contra o universo; são pessoas que creem apenas no nada e não são capazes de retirar um suspiro do vazio; são incapazes de inventar o amor; de escapar da sua ficção de solidão; não fazem NADA e reclamam que o mundo surgiu apenas para a infelicidade do homem, que é o que sua experiência pobre de vida lhes “ensinou”; estéreis de criatividade se limitam a observar as coisas do modo como foram convencidos pelos outros que são. Esses conformistas são os que esperam do escuro de seu quarto que uma revolução de repente irrompa por aí, que será o momento em que poderá expor o seu ódio contra a vida, ceifando a vida dos outros. São também os homens de negócio em Wall Street, em que a vida é toda controlada por dígitos seguidos de cifrões. Eles não são convencidos da hipnose semântica dos governantes e do capital, mas o que podem eles, miseráveis criaturas que surgiram da casualidade cósmica e da evolução da espécie contra a realidade? Ela está aí, é imutável, a mesma desde a origem da matéria, a história também prova que se vão os nomes mas a base humana de guerra e sexo continua, não há como resistir com sucesso. Então mesmo não acreditando na mágica dos discursos, eles se silenciam e fazem na prática o mesmo que os que foram hipnotizados, eles não se importam, não há nada que se possa fazer, é a nossa realidade e só podemos aceitá-la. É por estas vias que Marcuse acusa a tecnocracia da Sociedade Industrial Avançada de ter “unidimensionalizado” o homem ocidental. Sua força vital e criativa foi decepada, o que restou foi apenas a pobreza de uma realidade histórica voltada para a escravização da existência. Tanto é esta ilusão o último valor desses homens que muitas das pessoas mais inteligentes e críticas de nossa época defendem o realismo, a realidade concreta, como única alternativa possível para a vida. Desta maneira uma fuga do reino de Thanatos se torna impossível, já que o homem foi programado por uma linguagem específica a ver tudo por apenas um ângulo. É nesse tom pessimista é que Marcuse termina o seu livro: a unidimensionalidade venceu a existência. Romper esse realismo grosseiro é a grande lição que Tom tenta ensinar a Dane durante sua iniciação n’Os Invisíveis. Para um garoto rebeldezinho que vive nos subúrbios da Inglaterra, com a mãe prostituta, sem pai e aprendendo tudo de ruim que as ruas tinham a lhe ensinar, a realidade como “é” era a única coisa em que podia confiar sem se decepcionar. Por isso que pra dar um choque em Dane, Tom usa mofo azul, uma maneira de desconectar violentamente seu corpo do espírito e lhe mostrar de forma irrefutável que as coisas não são “o que parecem ser”. Apesar de tudo, Dane tenta resistir aos ensinamentos. Observando o comportamento rebelde do garoto, Tom chegou à conclusão de que apenas lhe mostrando que ele via o mundo exatamente da mesma forma que todos os outros robôs humanos ele aprenderia, se não por via da sabedoria… por via da desobediência. Nietzsche, através de outro viés, chegou às mesmas respostas expostas por Marcuse e presentes nas obras de Morrison. Enquanto Marcuse se preocupava em discutir o controle institucional da realidade em que vivemos, Nietzsche vai além: o indivíduo como prisão de si mesmo. O controle do Estado, mídia e capital sobre cada um de nós é real, porém secundário, primeiramente somos limitados pelas nossas próprias experiências sensoriais! O que são as coisas se não os limites de nossos sentidos? Desta maneira nosso corpo não passa de uma prisão. Talvez uma brincadeira perversa de Deus, já que é das prisões a única na qual não se pode sequer desejar escapar. Cito agora um longo trecho de um aforisma de Nietzsche presente no livro “Aurora” que retrata essas questões: “Minha vista, quer seja aguda, quer seja fraca, não vê senão a certa distância. Vivo e ajo nesse espaço, essa linha do horizonte é meu mais próximo destino, grande ou pequeno, ao qual não posso escapar. Em torno de cada ser se estende assim um círculo concêntrico que lhe é particular. Igualmente o ouvido nos encerra num pequeno espaço, da mesma forma que o sentido do tato. E a partir desses horizontes, onde nossos sentidos encerram cada um de nós, como nos muros de uma prisão, que avaliamos o mundo, dizendo que tal coisa está perto, tal outra está longe, tal coisa é grande, tal outra é pequena, tal coisa é dura e tal outra é mole: chamamos “sensação” essa forma de medir — e tudo isso é simplesmente um erro em si! A partir da quantidade de experiências e emoções que nos são possíveis em média num espaço de tempo dado, avaliamos nossa vida, a achamos curta ou longa, rica ou pobre, cheia ou vazia: em função da média da vida humana, avaliamos aquela de todos os outros seres — e isso, tudo isso, é simplesmente um erro em si! Se tivéssemos uma vista cem vezes mais penetrante para as coisas próximas, o homem nos pareceria enorme; poderíamos até imaginar órgãos por meio dos quais o homem pareceria incomensurável. Por outro lado, certos órgãos poderiam ser constituídos de tal maneira que reduziriam e limitariam sistemas solares inteiros, para torná-los semelhantes a uma única célula: e para seres inversamente constituídos, uma única célula do corpo humano poderia apresentar-se em sua construção, seu movimento e sua harmonia como um sistema solar. Os hábitos de nossos sentidos nos envolveram num tecido de sensações enganadoras que são, por sua vez, a base todos os nossos juízos e de nosso “entendimento” — não há absolutamente saída, não há escapatória, não há senda voltada para o mundo real! Estamos em nossa teia como aranhas e ainda que apanhemos alguma coisa, podemos apanhar somente e sempre o que se deixar prender em nossa teia.” Nietzsche é sem dúvidas um dos grandes responsáveis por esses debates a partir do século XX. Outro nome da mesma época que trata destas questões em tons parecidos é Max Stirner, o filósofo do anarco-individualismo radical. Stirner é o filósofo mais – se não o único – sincero do século XIX. Do que trata suas divagações filosóficas? Da única coisa que pode interessar o homem: o egoísmo. Para Stirner não existe nada no mundo além do egoísmo e por isso a única coisa que interessa é o indivíduo enquanto “eu”. Verdade, justiça, sinceridade, realidade, tudo está se movendo graças ao combustível do egoísmo, tudo é para satisfazê-lo. A única realidade das coisas é o egoísmo e isso se prova justamente por não ter necessidade de ser verdadeiro, tudo que necessita ser verdadeiro já está cobrando o seu tributo de falsidade, como a pessoa que age de boa fé não porque age de boa fé, mas porque os outros esperam que ela aja assim. De que adianta a verdade e a justiça se não pudermos convencer os outros delas? Se não pudermos demonstrar aos outros o quanto somos sinceros, justos e queremos o bem? A satisfação egoísta está por trás de qualquer ato humano. Até o ódio exige um reconhecimento. É por isso que Stirner é tão mal visto pelos intelectuais como o niilista dos niilistas, já que chega a acusar a “ideia” (conceito que transcende a realidade em si) de ser projeção de um conceito teológico de Deus e por isso falsidade transportada para a filosofia. “O divino é a causa de Deus, o humano a causa «do homem». A minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre, etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal mas sim… única, tal como eu. Para mim, nada está acima de mim!” – Stirner Ele alega a impossibilidade do rompimento de nosso próprio universo individual, que é tão falso quanto qualquer outro universo. Nossos sentidos nos enganam, nossa razão, nossas experiências, nossas ideias, sonhos, delírios, não há o que se possa chamar de “certo” ou “verdadeiro”, tudo é falso, tudo tem a ver com o “eu”. Então pra quê Estado? Pra quê noção de propriedade? Nada é propriedade de ninguém, e não devíamos nos prender em alucinações dos outros! Contra essa prisão que é a “realidade” para Marcuse e a consciência para Nietzsche, Albert Camus propõe a saída mais icônica de todos os tempos, uma saída que provou a originalidade do ceticismo desse filósofo tão peculiar. Ele propõe uma busca ativa pelo impossível! Em vez do super-homem ou do socialismo, a saída é o homem impossível. Aquele que se auto-aliena da realidade que lhe é imposta, criando ilusões criativo-lunáticas ao qual vai tentar realizar contra todas as probabilidades matemáticas e senso-comum. É nesse tom de “homem impossível” que funcionam todos os personagens centrais de Os Invisíveis, modificando a realidade através da alteração de sua própria psique e leitura da realidade. Numa imagem do próprio Camus: há uma fileira de 10 metralhadoras automáticas postas contra um homem que possui apenas uma faca. É impossível que ele vença, mas nesta situação o que ele pode fazer? Lamentar o seu azar? Não teria qualquer valor. A tentativa de realização do que aparentemente é impossível pode fraturar a realidade através de uma contradição violenta! É impossível que o homem vença as metralhadoras, mas… oh, apenas se ele tentar pode vencê-las! É impossível, mas é remotamente possível, de alguma forma muito louca o impossível é possível! O que Camus quis com esse modelo auto-alienativo da realidade, foi tirar as pessoas que o liam do realismo estéril e pobre que abatia a Europa pós-guerra. Se a realidade é aceita meramente como ela se mostra ser, é por que qualquer luta pela satisfação dos sentidos ou independência mental está perdida. O homem é um deus, portanto, conhecimento, realidade, verdade, ciência, arte, tudo isso não passa de criação sua. O problema surge quando um projeto de realidade de uma pessoa se torna o projeto de um grupo, e esse grupo começa a tentar uniformizar a realidade das pessoas ao seu redor, até o ponto em que uma grande massa está convencida daquela realidade e tentam transformar todos em servos deste único modelo de dimensionalidade existencial. É exatamente esse controle da realidade o que os arcontes dimensionais tentam fazer no universo de Os Invisíveis, uniformizando a vida humana, transformando todos em robôs retransmissores de um plano de verdade, e é exatamente a missão dos Invisíveis afirmar a individualidade, o universo privado de cada mente, uma verdade como vontade mais do que realidade dos sentidos contra essa padronização de idéias.