Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr “Este pobre rapaz, dez anos mais novo do que eu, está fazendo com que eu pareça um tolo que esqueceu, durante os recentes anos de bebedeira e decepção, todos os ideais e prazeres que conhecia anteriormente, ele não liga a mínima para o fato de não ter dinheiro: não precisa de dinheiro nenhum, tudo de que necessita está dentro de sua mochila com aqueles pacotinhos de comida desidratada e um bom par de sapatos e lá vai ele desfrutar dos privilégios e um milionário em um ambiente desses.” A partir da década de 50, um grupo de escritores iniciariam a revolução. As obras deles, gritos de liberdade de criação, romperam com o formalismo e o beletrismo da literatura americana e o falso bom-mocismo da sociedade. Escritas em primeira pessoa e fazendo alusão a fatos verídicos, recriaram a relação entre a poesia e a vida, o autor e a obra. Como se isso não fosse o suficiente, tais artistas contribuiriam para a criação de uma nova ideologia, uma nova percepção do mundo que guiaria milhões de jovens na chamada geração beat dos anos 50 e durante a contracultura e a rebeliões juvenis de 60 e 70. Tópicos que hoje mal lembramos de tão comuns que se tornaram, passaram a serem amplamente debatidos como a liberdade individual, o fim dos modos de repressão, o sexo livre e o uso de drogas, a ampliação de consciência e a valorização do conhecimento. Alguns desses escritores seriam Allen Ginsberg com seu longo e controverso Uivo, William Burroughs com o psicodélico Lanche Nu e Lawrence Ferlinghetti com seu Um Parque de Diversões da Cabeça. Mas o autor que alcançou mais sucesso e foi mais influente foi, sem dúvida alguma, um dos meus preferidos: Jack Kerouac. Dono de feitos como mais de dez livros de poesia e dezenove romances que, lidos em conjunto, formam uma história absolutamente maior, A Lenda de Duluoz. Suas obras, principalmente seu segundo livro On The Road, aumentariam a percepção dos seus leitores, invadiriam os cantos mais recônditos de suas mentes, fazendo que tomassem as rédeas dos seus destinos. “Vagabundos do Darma que se recusam a concordar com a afirmação generalizada de que consomem a produção e portanto precisam trabalhar pelo privilégio de consumir, por toda aquela porcaria que não queriam, como refrigeradores, aparelhos de TV, carros, pelo menos os mais novos e chiques, certos óleos de cabelo e desodorantes e bobagens em geral que a gente acaba vendo no lixo depois de uma semana.” “Estava de fato preparado para o Apocalipse, sem piada; se uma bomba atômica caísse em São Francisco naquela noite, eu só precisaria me enfiar no mato, se fosse possível, e com meus alimentos desidratados bem embalados e o meu quarto e a minha cozinha não haveria problema nenhum no mundo.” A consagração, contudo, também teria seu lado amargo. Kerouac jamais repetiria o mesmo êxito de lucro e público de On The Road, embora lançasse depois livros tão bons e às vezes até melhores que ele. É o caso de Vagabundos Iluminados. Há nele tudo o que o consagrou como um dos mais originais escritores do século passado. A prosa rápida e cheia de emoção e humor. A sonoridade bop e as longas frases repletas de adjetivos. Mesmo assim, o livro é pouco conhecido pelo grande público,sendo mais lido pelos fãs do autor. Não poderia haver maior injustiça. Ele é tão bom quanto On The Road, superior em alguns momentos. A própria estrutura chega a ser parecida, tal como o efeito duradouro na alma do leitor. Apenas o tema é totalmente diferente. Um artifício comum da literatura é usar um personagem narrando a história de uma pessoa extraordinária que conheceu. Nos livros de Conan Doyle temos o Dr. Watson contando os feitos do amigo Sherlock Holmes. Em À Espera de um Milagre Paul Edgecombe relata como condenado à morte Paul Coffey mudou a sua vida. E, de forma mais torta e original, o Narrador do Clube da Luta explora sua experiência com Tyler Durden. Isso é ainda mais comum quando se trata de Jack Kerouac, com a vantagem de que ele dedicou suas páginas a pessoas que realmente existiam e admirava. Foi assim em Visions of Gerard, dedicado ao irmão morto ainda na infância. Em Os Subterrâneos, romance impregnado da prosa poderosa de Dostoievski, foi escrito com o caso amoroso que teve com Alene Lee em mente. On The Road e Visões de Cody fariam do inspirador Neal Cassady, um simples ferroviário, celebridade mundial e símbolo vivo da geração beat. Todas essas pessoas lhe foram tão importantes que ele simplesmente não podia relegá-las às suas memórias pessoais apenas. Tinha que pô-las no papel, eternizá-las com sua arte. Talvez alguns estranhem o fato de uma pessoa que se tornaria tão célebre, a figura central de todo um movimento, pudesse adotar tanto a postura de coadjuvante em seus livros. Mas Kerouac sempre foi de natureza bastante introvertida. Era comum que ele preferisse ver e refletir sobre um acontecimento do que participar propriamente dele. Quando o sucesso de On The Road bateu em sua porta não foi com alegrai e exaltação que ele o recebeu. Foi com medo. Daquele dia em diante teria que tomar consciência sobre todos os seus atos, vivendo o resto da sua vida para a sua imagem pública, porque todos esperariam que ele fosse como o Dean Moriarty. Convertido ao budismo enquanto ainda rodava de carona em carona e viagens clandestinas em trens ele encontra uma das pessoas mais incríveis que conheceria em toda a vida. O poeta e tradutor budista Gary Snyder mudaria sua forma de ver o mundo e encarar a sua busca pela iluminação, enquanto seguiam em busca de realizações espirituais. As experiências dos dois originariam Vagabundos Iluminados, sobre Ray Smith (Kerouac) e Japhy Rider (Snyder). “Mas havia uma sabedoria naquilo tudo, como você perceberá se der um passeio à noite por uma rua suburbana e for passando na frente de uma casa depois da outra nos dois lados da rua, cada uma com o abajur da sala emitindo um brilho dourado, e lá dentro o quadradinho azul da televisão, todas as famílias vivas concentrando sua total atenção em provavelmente um só programa; ninguém conversando; silêncio no quintal; cães latindo pra você porque você se locomove sobre pés humanos em vez de rodas.” “faculdades não passam de uma escola que dá lustro à falta de identidade da classe média que habitualmente encontra sua expressão perfeita às margens do campus em fileiras de casas abastadas com gramados e um aparelho de televisão na sala e todo mundo olhando a mesma coisa e pensando a mesma coisa enquanto os Japhys do mundo saem à deriva no mato para ouvir a voz que grita na floresta, para achar o êxtase das estrelas, para descobrir o segredo obscuro e misterioso da origem da civilização sem rosto, que não se maravilha e acorda de ressaca.” Japhy Rider é um dos personagens mais marcantes de Kerouac. Com sua vitalidade inesgotável e animada ele ilumina a todos apenas por estar por perto. Ele criou a sua própria busca pelo nirvana, juntando alpinismo, orgias, bebedeiras, meditação e atos de caridade. É um santo vagabundo, tão alheio à fútil sociedade consumista que seus únicos bens são uma cabana coberta de esteiras, um saco de dormir, um par de botas e montanhas de livros que lê, traduz ou estuda. Quando foi lançado, On The Road inspirou centenas de jovens a fugirem de casa para cruzar o país ou seguir atrás dos seus sonhos. Vagabundos Iluminados tem o mesmo poder genuíno de influenciar o comportamento das pessoas. Alguns se converteram ao budismo depois de lê-lo e outros chegaram a repensar a sua postura consumista. Chega a ser uma pena que Kerouac ainda estivesse tão inconsciente do poder que tinha em mãos, escrevendo um romance que exige uma certa dose de conhecimento de budismo por parte dos leitores para entender completamente os diálogos dos personagens. “Caminhando por essa região dava para compreender as gemas perfeitas dos haicais que os poetas orientais escreveram, sem nunca se embebedar nas montanhas nem nada, mas simplesmente avançando tão puros quanto crianças que anotam o que vêem sem ferramentas literárias nem expressões rebuscadas.” Após concluir seu primeiro romance Cidade Pequena, Cidade Grande, Kerouac estava exausto. Ele passou tanto tempo planejando a estrutura cuidadosamente e fazendo alterações que quando concluiu se sentiu tão cansado daquilo que passou meses até que escrevesse algo novo. Esse algo novo viria com a invenção da sua técnica da prosa espontânea. Em vez de passar horas e mais horas quebrando a cabeça sobre qual seria a próxima frase (ele chegou a afirmar chegou a levar um dia pra escrever uma única frase) ele simplesmente se encheria de altas doses de benzedrina, café e jazz, datilografando a primeira coisa que lhe viesse em mente, sem se preocupar em cadenciar o fluxo de palavras com os parágrafos. Escrevendo de cinco a sete horas por dia sem nenhum tipo de interrupção, usava uma série de grandes folhas de papel manteiga, que cortava para servirem na máquina e juntava com fita para não ter de trocar de folha a todo o momento. O que acabaria numa porcaria gigantesca nas mãos de um escritor menos talentoso, com Kerouac resultou em pura genialidade. É sempre impressionante notar o quanto a técnica fez com que ele adquirisse um ritmo próprio, ultrarápido e original, como também fez com que ele elaborasse trechos de grande inspiração e musicalidade, quase sem pensar. É impossível ler um trecho como este abaixo conhecendo as circunstâncias em que foram escritas sem sentir admiração: “Quando a gente está no mato fica com essa sensação: sempre parece que você já conhece aquele lugar, há muito esquecido, como o rosto de um parente morto há muito tempo, como um sonho antigo, como o trecho de uma canção esquecida que está à deriva sobre à água, mas acima de tudo como eternidades douradas de infância passada ou vida adulta passada e todos os vivos e os que estão à beira da morte e o coração que bateu ali há um milhão de anos e as nuvens que vão passando lá em cima parecem servir de testemunha dessa sensação (devido à sua própria familiaridade solitária). Êxtase, até, senti, com lampejos de repentinas lembranças.” A prosa espontânea em Vagabundos Iluminados está ainda mais afiada, potente. Em vez do clima alucinado presente em On The Road o clima aqui é de calma e reflexão, de ligação afetuosa entre as pessoas e a natureza e todo o universo. A linguagem também está em perfeita sintonia com o tom e o enredo. Kerouac deixa um pouco de lado seu montante de neologismos, gírias e aliterações, focando-se mais nas metáforas e nas longas discussões filosóficas entre os personagens. “O tom rosado desapareceu e então um anoitecer arroxeado se impôs e o bramir do silêncio parecia o murmúrio de uma maré de diamantes que atravessavam as camadas líquidas dos nossos ouvidos, suficientes para acalmar um homem durante mil anos.” No fim da vida Kerouac sucumbiria cada vez mais à bebida, voltando a morar com a mãe com o cérebro quase pifado de tanto álcool. São desse período as entrevistas que deu na televisão completamente bêbado, incapaz de dizer uma frase inteligível. Seu vício acabaria com a sua morte, relativamente jovem, por cirrose hepática. Em Vagabundos Iluminados, lançado em 1958, ele já dava indícios de chegaria a esse destino. Seu alter-ego Ray é mostrado quase sempre bêbado, chegando a brigar só pra poder encher a cara. Vagabundos Iluminados não é apenas mais um livro sobre uma religião. É literatura pura, com sopros de criatividade que tanto fazem falta hoje em dia. Numa época em que escritores como Stephenie Meyer e L. J. Smith conseguem vender milhões de exemplares apenas reciclando idéias de Anne Rice, os livros de Jack Kerouac permanecem tão originais quanto eram quando foram lançados. Ler Vagabundos Iluminados é como alcançar uma grande vitória espiritual: é ter em mãos o testamento artístico e pessoal de Jack Kerouac e Gary Snyder eternizado em livro. E isso é mais do que muitos bons escritores são capazes de alcançar. Autor: Jack Kerouac Páginas: 252 Editora: L&PM Nota: 8.5