Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr Essa é uma espécie de Versão Estendida do texto “Comic Con: o futuro da cultura nerd é se tornar um jardim de infância” O termo “nerd” nasceu basicamente como um estereótipo barato para designar um sujeito com dificuldades de sociabilização, obsessivo e inteligente. Olhando assim, parecia a definição de alguém com problemas psicológicos, mas se tratava apenas de uma geração de deslocados que se focou em criação ou se dedicou de forma quase maníaca ao que gosta. Em um artigo clássico de fevereiro de 2003, o programador e ensaísta Paul Graham definiu porque os nerds nasceram como uma classe impopular: pela inteligência. Não apenas aptidão natural para aprender, mas dedicação aos estudos. Correlacionar popularidade com inteligência é um conceito tipicamente americano, mas pode se estender sem grandes dificuldades às escolas de Ensino Médio em todo o mundo ocidental, principalmente em sociedades mais competitivas ou com camadas sociais claras que brigam entre si. Já o psicólogo David Anderegg define um nerd como “uma combinação de sucesso escolar, pouco conhecimento de si próprio, tendências adultas e interesse em ficção”, especialmente em criar ficção. Em resumo, existe algum grau de inadequação social nos nerds, o que é exacerbado durante o complicado rito de passagem do Ensino Médio. Porque os nerds não eram populares? Provavelmente porque não era esse o foco deles e porque o jogo da popularidade adolescente era um tanto quanto chato para os que estavam focados em estudar. Era uma espécie de escolha, entre a popularidade e o estudo e eles escolhiam o segundo. (Tal jogo entre “dedicação versus popularidade” também é flagrante no mundo adulto, principalmente na cultura empresarial focada em tabelas e produtividade matemática, onde não demora a ficar claro para qualquer um inserido nele que uma escolha entre trabalhar de fato e propagandear que trabalha precisa ser feita e ela é raiz das promoções daqueles colegas especialistas em uma forma velada de puxa-saquismo, fazer reuniões e enviar emails com cópias para metade dos chefes.) Iconograficamente, no cinema, o nerd foi definido como um tipo magro (ou gordão), geralmente virgem, socialmente lerdo, conhecedor de tudo que é hermético, óculos, acne e roupas inadequadas. Como um estereótipo, a imagem é exagerada, porém representa um espelho deformado da realidade. Eles gostavam de Star Wars, mexiam em computadores como ninguém em uma época que mal mal os técnicos de empresas o sabiam, e ainda falavam élfico. Muitos provavelmente conviveram com esses tipos esquisitos na escola (ou era um deles), embora nossas hierarquias sociais escolares sejam menos competitivas e draconianas, e mais inclusivas que os filmes americanos demonstram. Então, parece claro que o que definia um nerd não era exatamente o que ele gostava, mas como gostava. Seus gostos eram sua obsessão como uma espécie de compensação pela própria dificuldade em se sociabilizar ou como fruto da constante necessidade de conhecer as coisas que gosta a fundo — seja em conhecer programação, gematria, teoria da evolução darwiniana, ciência política ou os nomes de todas as bases e naves da Frota Estelar. Como esses filmes, livros e assuntos eram escolhidos dentro da cultura nerd é um tanto difícil de chegar a uma definição, mas o mais unificador provavelmente foi Star Wars. Não por ser complexo (Star Wars é uma fábula básica com personagens de nomes legais), mas provavelmente por determinar o surgimento de um novo universo. Star Wars conta uma história simples (assim como O Senhor dos Anéis), mas possui um mundo vasto onde essa história se desenrola, em que cada coadjuvante pode sustentar histórias próprias, geralmente criadas pelos próprios nerds. O mesmo vale para Star Trek, O Guia do Mochileiro das Galáxias e Discworld, um dos meus preferidos. O espaço para os próprios fãs criarem teorias, discussões ou histórias alternativas é uma das características mais comuns dos filmes cultuados pelos nerds. A vida e morte da Web 2.0 Mas isso eram os longínquos anos 80, época em que os nerds se dedicavam aos seus gostos (peculiares, como diria o personagem famoso) como uma forma de pertencer a algum tipo de comunidade. Hoje eles venceram. Os computadores que eles fuçavam hoje estão nos bolsos de todos, as maiores corporações do globo valem bilhões sem precisarem de linha de montagem — são virtuais, em última análise -, Bill Gates e sua eterna cara de nerd só deixa de ser o homem mais rico do mundo se quiser, Star Wars é a maior franquia da história e, o mais importante, ser nerd se tornou um fator de atração social, quase sexy. Então, por que a infantilização? A infantilização não está na popularização, porque a popularização é uma vitória. A infantilização surge quando toda a experiência dos nerds (fãs, para facilitar as coisas) é mediada pelas empresas, num esforço único para alavancar o consumo. Ao invés do conhecimento sobre a cultura ser o ponto focal da cultura nerd, consumir se torna a sua principal bandeira. Em alguns casos, a única. Dizer que gosta de algo é tão ou mais importante que efetivamente gostar. É o que o comediante Patton Oswalt chama de “nerd instantâneo” em seu artigo sobre “a morte da cultura geek”. Eu nem sou tão velho, tenho 30 anos, mas vivi numa época anterior a popularização desse tipo de cultura no Brasil, em que para conhecer algum jogo novo para comprar pro meu Super Nintendo (ou o meu Top Game, um NES da CCE numa década em que era possível fazer esse tipo de pirataria), precisava pedir pra um amigo trazer uma revista Nintendo Dream americana na bagagem — uma revista de dois meses antes. Ou uma Ação Games, se tivesse numa banca perto de casa. E ficar feliz com isso. Ou comprava a Herói numa época em que ela era a única revista decente de cultura pop. Isso era ser underground (há coisa de nem 15 anos) e não posso dizer que tenho grande saudade dessa época. Eu vi a Nintendo World e seus quase 20 anos ser lançada. Vi o primeiro número na banca, mas não tinha dinheiro para comprar e por isso só comprei a segunda. Hoje isto não existe. O Brasil possui um evento de games de porte mundial (a BGS) e uma feira de cultura pop que em nada deve as americanas (a Comic Con Experience, que apenas os convidados ainda não têm o mesmo nível da feira de San Diego). O país definitivamente está na rota dos grandes produtos internacionais e frequentemente ganha lançamentos antes mesmo dos americanos. De lá para cá, um tanto de coisas aconteceu, várias delas fora do escopo das grandes empresas de mídia, mas plenamente aproveitados por elas e indiretamente responsáveis por esse processo de profunda infantilização. Pense em como você se informava há sete ou oito anos atrás. Quando o Facebook ainda engatinhava por aqui, quando os portais já não reinavam tão soberanos. Nós éramos tão bem informados quanto hoje (provavelmente melhor, mas não tenho dados para sustentar a afirmação) e quem não lia apenas os grandes portais, utilizava ferramentas que estavam sob controle: blogs e RSS. Essas ferramentas tinham em comum a participação plena dos usuários frente ao antigo monopólio da mídia por grandes empresas. Foi uma vitória essencialmente tecnológica que levou a uma grande mudança social. Quem ouviu falar da chamada Web 2.0, aquela que dava as ferramentas para os usuários criarem conteúdo, sabe do que estou falando. Aliás, um dos grandes responsáveis pela já falecida Web 2.0 foi Aaron Swartz, um dos fundadores do Reddit e do padrão RSS, que se suicidou em 2013 após ser processado em milhões por um banco de dados que lucrava bilhões vendendo os direitos de leitura de pesquisas científicas, o que contrariava o modo de vida dele de informação aberta ao público. A Internet era um tanto diferente essa época — e por essa época, entenda de 2004 a 2009, um pequeno século instável na cronologia da Web. Se hoje portais gigantes enfrentam problemas crônicos de audiência e precisam se render a Síndrome de Estocolmo que é o sistema de algoritmos do Facebook, no início do século era possível um blog sair do nada e alcançar milhões de pageviews em um ano ou até menos. Apenas postando comentários opinativos de notícias de sites gringos e conseguindo um furo ou outro. E, mais importante, era possível o cara que investia o tempo dele nisso ganhar dinheiro — muito dinheiro, se fosse esperto. Para isso, o blogueiro precisava se tornar um Exército de Um Homem Só e entender o básico de linguagens de programação, lidar com hospedagem, moderação de comentários, SEO, as manhas do AdSense, edição de imagens de forma minimamente decente, ser um departamento comercial inteiro, fazer parcerias com outros blogs para atrair audiência e finalmente escrever e editar os próprios textos e de colaboradores — entre outras coisas. Hoje equipes inteiras de alguns sites profissionais não conseguem fazer isso de forma eficiente enquanto muitos blogueiros 100% amadores anos antes conseguiam tocar um veículo de médio porte. Como parece um pouco óbvio, esses veículos tinham linguagem próprias e não eram (como muitos entusiastas bobos proclamaram) competidores da mídia tradicional. É interessante como esses donos de blogs muitas vezes aprendiam sozinhos o que hoje cursos de social media ensinam pelas metades — coisas que deixarão de ter utilidade quando o Facebook deixar de ser a mídia dominante. A mídia 2.0 era um tipo de camada extra a aridez das notícias tradicionais e acrescentava uma série de opiniões. Em outras palavras, a Web 2.0 criou uma massa crítica que foi muito bem usada para trocar ideia entre si. Nessa multidão de pequenos veículos de comunicação surgiram iniciativas como o Jovem Nerd e o Judão (o site se chamava Cu do Judas, impossível não respeitar), junto com o anárquico, polêmico e execrável Melhores do Mundo. Somada a outras dezenas de pequenos sites com comunidades de discussão próprias, que geralmente tretavam em grandes fóruns, como o FARRA e o Fórum do Uol Jogos, que além das discussões culturais também eram antros de machismo e degradação social — e, mais importante, retratos de uma subcultura quase intocada, mas prestes a acabar. Apesar de hoje estarem devidamente mergulhados em um mundo massivo de marketing, tais sites mantém uma identidade própria e uma forma de se expressar. Comparando com os sites de games, por exemplo, seria a diferença de ler um artigo no IGN ou no Destructoid (ou Giant Bomb). Há uma comunidade ao redor deles, que discute e busca exatamente embrenhar-se no que as origens da cultura nerd apontam: sociabilização e influenciar e ser influenciado pela cultura — seja ela pop, erudita, cult, de nicho, não importa. Hoje esses sites estão estagnados em termos de crescimento de público e, provavelmente, não veremos o surgimento de nenhum outro grande site/blog do gênero nos próximos anos sem nenhum investimento massivo de grana, como foi o caso do Polygon. Porém eles representam o último fechar de página do que um dia foi a imprensa nerd. Provavelmente não veremos algo tão esquisito e divertido quanto o Ain’t It Cool News novamente. O carismático Harry Knowles, do Ain’t It Cool News. Crédito: Ronald Woan Gosto de colocar grande parte dessa culpa em redes sociais, especialmente o Facebook. A timeline do Facebook não é exatamente uma bolha, mas uma gaiola grande onde você está preso sem saber. O motivo é bem claro: um algoritmo secreto da empresa escolhe o que deve aparecer pra você com base nas coisas que você curte ou pessoas que você interage. O efeito disso parece óbvio e já foi dissecado como um cadáver que se recusa a morrer: quem está dentro dessa gaiola, um pântano que aos poucos endurece e somente permite um escape com um esforço monumental de meses, devora as próprias vísceras em busca de sobrevivência. Pessoas leem apenas o que lhes interessa, curtem posts de amigos, gostam de comentários com afagos ao próprio ego. Apenas uma deformidade cognitiva completa — para não dizer morte cerebral — pode nascer de uma experiência dessas. Quer um sintoma pior dessa doença que 55% dos brasileiros (e 58% dos indianos) confundirem o Facebook com a própria Internet? Ou que a rede social é uma das principais responsáveis pelo que foi chamado de Era de Ouro de Notícias Falsas? A ideia do Facebook é fazer você expor sua vida ao limite e nunca te deixar sair de lá, para que gurus tecnológicos possam vender perfis detalhados da sua vida para chefes de marketing de grandes empresas. Dessa forma, apenas posts triviais tendem a crescer em alcance, justamente pelo algoritmo estar programado para fazer esse tipo de publicação se espalhar mais rápido e coletar o máximo de informações pessoais possíveis. Notícias sofrem nesse meio. Uma fanpage que há coisa de quatro ou cinco anos alcançava perto de 100% de seus fãs a cada publicação, hoje têm sorte (muita sorte) de chegar a 10%. O padrão atual é 1% e o futuro lógico de alcance 0% é cada mais iminente, onde será necessário comprar audiência como milho para pombos. (Tal estratégia de atrair players para sua plataforma e depois sufocá-los até a morte é comum da empresa [Facebook], como demonstra o casamento da rede social com a produtora de games viciantes Zynga. A Zynga chegou a ser responsável por 55% da receita da rede social, com seus mais de 80 milhões de usuários ativos mensais em games como FarmVille [lembre-se, em 2010 o Facebook tinha cerca de 500 milhões de usuários registrados]. Como o número de usuários desses games parou de crescer e as notificações estavam irritando novos usuários, o Facebook afastou a Zynga de suas operações, até finalmente chutar a empresa de suas parceiras em 2013). Nesse universo, onde até o New York Times precisa lutar para sobreviver a essa plataforma gigante e monopólica, os blogs praticamente morreram pela total falta de audiência. Sem dó nem piedade. Apenas alguns grandes, muito de nicho ou com muita personalidade sobreviveram. Outros seguiram como operações amadoras, como durante a época de seu nascimento. Com eles morre cada vez mais rapidamente uma massa crítica. Blogs não eram bons com notícia, mas formavam um time de respeito quando o assunto opinião era requerido. Havia uma multiplicidade de opiniões ali presentes e o resultado final era bastante heterogêneo. Poucos ali pensavam em negócios, mas sim em envolver-se com a cultura/tecnologia. Eu tiro pelo meu próprio e finado blog dessa época criado e mantido com a ajuda de amigos, o Nerds Somos Nozes. Hoje, pelo que vejo em conversas e pessoas que pergunto, o pensamento crítico é formado pelo YouTuber em primeiro lugar e sites de crítica em segundo. Gameplays e pensamento crítico Existe uma certa complicação nisso, uma vez que grandes empresas pagam muito bem para terem seus games exibidos em gameplays de grandes youtubers ou filmes comentados. Até aí normal, mas fica a pergunta se esses youtubers falarão o que realmente pensam de um jogo a qual foram pagos para jogar? E se levarmos em conta que muitos desses youtubers são pagos pela quantidade de views que conseguem gerar? Principalmente de uma grande publisher como a Ubisoft (uma das que mais investem no mercado nacional e que, até onde sei, é ética nessas questões) ou a Electronic Arts. Essas empresas poderiam (como são livres para fazer) simplesmente não repetir a ação de marketing e deixar de comprar espaço naquele canal. Porque a compra é exatamente isso: uma propaganda, e como tal ela deve dar resultado positivo e um diretor regional da publisher precisará exibir relatórios demonstrando o impacto positivo da grana gasta por eles em vender aquele jogo. As empresas querem vender seus jogos, isso é completamente natural e é a missão dela, e mesmo jogos (ou filmes, ou gibis) que elas sabem que são uma porcaria completa, feitos nas coxas, sem orçamento. Tudo precisa vender e vender bem, de preferência. (Um olhar mais ou menos claro de como ocorre a distribuição de grana de empresas para sites brasileiros no caso de filmes, pode ser vista na série de emails da Sony vazados no WikiLeaks. O Jovem Nerd [um site que respeito] levou R$ 16 mil num vídeo de trailer comentado do filme Chappie após alcançar 50 mil views de audiência. Para ter um panorama completo de como funciona o mercado, vá até a seção de documentos da Sony no WiliLeaks e pesquise por um veículo de comunicação. Leve em conta que o mercado de cinema funciona de forma ligeiramente diferente dos games, uma vez que não existem “gameplays” de filmes, que são uma mistura de exposição e opinião, apenas trailers comentados ou programas episódicos.) Geoff Keighley e o “jornalismo Doritos” Está claro que a mídia está em flagrante desvantagem nessa queda-de-braço. Precisa urgentemente de grana e as publishers cada vez menos precisam de grandes veículos de comunicação para divulgarem seus produtos. Reviews e críticas são quase cortesia nesse contexto. Veículos com história de serem “críticos demais” geralmente recebem os jogos depois de já estarem nas lojas — semanas depois, em alguns casos que já presenciei — ou não são convidados para cabines de imprensa. Nos Estados Unidos, publishers já falam abertamente em formas de influenciar reviews através de viagens, festas com estrelas e as melhores entrevistas para veículos selecionados. Já editoras como a Bethesda abdicaram de dar cópias para a imprensa. A ideia da Bethesda é que os jogadores encomendem seus jogos antes do lançamento e ganhem vantagens com isso. As empresas estão certas: precisam agradar acionistas, os donos, os CEOs precisam mostrar resultado. Mas quem sai perdendo é a gente, consumidor. Jornalismo é o tipo de coisa que a gente só descobre que precisa quando já é meio tarde. Um exemplo claro da necessidade de crítica e jornalismo nos games foi o lançamento de Aliens: Colonial Marines, um game aguardado que se mostrou pavoroso e ainda envolveu uma treta gigante da Gearbox e da publisher SEGA. Segundo a história apurada posteriormente, a Gearbox teria pegado o dinheiro pago pela SEGA pelo desenvolvimento e investido na criação de Borderlands 2 (um jogaço, por sinal) e terceirizado a criação do jogo dos aliens. O resultado foi bisonho, um jogo ruim como um todo. Antes de chegar ao público, a crítica o massacrou justamente e a coisa chegou num nível que a SEGA praticamente matou o jogo posteriormente — e depois nos presenteou com o ótimo Alien: Isolation. Antes da SEGA, os fãs mais nerds até desenvolveram um mod que consertou diversos dos problemas mais graves do game. No estado atual da relação jornalismo deficiente & empresas nos entupindo com ações de marketing, um gigantesco painel numa BGS aliado a uma divulgação gigante, com gameplays nos principais canais de youtubers gamers talvez fosse o suficiente não para o sucesso do game, mas para evitar um fracasso tão retumbante. A importância de uma boa crítica não é “mudar sua opinião”, como muitos dizem, mas estimular o pensamento crítico. Te dar ferramentas para entender melhor como funcionam as engrenagens narrativas para que diálogos soem “realistas” e “personagens sejam complexos”. A crítica não está aí para te tornar um chato (mesmo o mais mala dos críticos se diverte com Vingadores), mas sim absorver melhor as mensagens de obras culturais, seja na técnica, na narrativa ou em aspectos visuais. Em um momento em que o jornalismo tem como missão auto-imposta apenas regurgitar memes e clickbaits de coisas catadas em redes sociais, essa missão parece cada vez mais morta. É a capacidade crítica que uma mídia sucateada e departamentos comerciais de grandes corporações buscam destruir. A cultura como medidor de progresso da humanidade Esse contexto todo foi para deixar marcado que o que chamo de infantilização da cultura nerd não é apenas uma constatação de que ela se tornou consumista — uma vez que cultura pop como a concebemos é consumo, nem que seja para comprar ingressos de cinema -, mas sim uma operação gigantesca para soterrar qualquer possibilidade de ela não ser só consumo. Veja bem: entendo a cultura como algo capaz não apenas de criar comunidades que tenham coisas em comum, mas nos tornar pessoas mais críticas, inteligentes e melhores, por que não?! Apesar da cultura nerd ter sido absorvida por pessoas com francas dificuldades de sociabilização, o que as levava em um movimento contrário de tentar fechar ao seu redor os seus objetos de paixão, há muito dessa obsessão cultural que pode ser aplicada nos dias de hoje. Exemplos disso estão ao nosso redor. Um caso famoso é de Daniel Fleetwood, o fã de Star Wars com câncer terminal que após uma intensa campanha online, conseguiu ver Star Wars: O Despertar da Força antes da data de lançamento — e morreu 10 dias depois. Ou ainda o game That Dragon, Cancer, que mostra a luta dos pais Amy e Ryan Green durante o tratamento do filho pequeno acometido por um câncer raro. O game não só serviu como terapia para o casal, como expôs ao mundo um dos relatos mais íntimos a respeito da doença. Tudo feito de forma independente. Daniel Fleetwood pouco antes de falecer O futebol, massacrado como o ópio do povo pela nossa cada vez mais cínica e irônica cultura moderna, que descarta qualquer devoção como “ópio do povo”, é capaz de momentos ainda mais intensos. Não apenas a homenagem dos colombianos após a tragédia da Chapecoense (descrito sem exageros pelo Trivela como “um dos maiores dias da história da humanidade”), mas no senso de identidade que torcer para um time é capaz de proporcionar. E não estou falando apenas de times pequenos que se tornaram totens de vanguardismo cultural, como o FC St. Pauli e o Rayo Vallecano, mas também em agremiações grandes, inclusive as inglesas, acusadas de mercenárias em muitos momentos. Casos como o garoto Bradley Lowery, Johnny Heimes (responsável quase direto pela ascensão do Darmstadt da terceira para a primeira divisão alemã), o garoto uruguaio Mateo. Ou do torcedor fanático de 80 anos que morreu em pleno Signal Iduna Park, durante uma partida do time da casa, o Borussia Dortmund. Não foi o dinheiro de doações que tornou a luta contra o câncer desses meninos um pouco mais suportável, mas a cultura do futebol. O St. Pauli e o senso de identidade do futebol A cultura pop é capaz de fazer o mesmo. Mesmo que seja acusada de corromper os jovens, ou incentivar atrocidades como Columbine ou o massacre em um cinema em São Paulo durante uma sessão de Clube da Luta. A cultura, pop ou não, é uma longa luta psíquica do ser humano em busca de entender a si próprio, ou cada passo que dá como espécie, aglomerado em entidades onipresentes como o Estado, Religião, Crime, Violência. É o nosso medidor de progresso mais visível, mesmo que seja para entender como certos diretores e escritores produzem apenas lixo tóxico. Essa camada que é de importância central é a principal vítima da infantilização. A superficialidade de fácil assimilação parece ser o principal objetivo dos executivos de marketing que agora parecem apitar cada movimento de filmes nerd — hoje basicamente sinônimos de adaptação de quadrinhos. Quando isso aconteceu pela última vez tivemos um velório: basicamente os dois filmes da série Batman dirigidos por Joel Schumacher. O hype recente em torno da personagem Arlequina é uma mostra de como a cultura nerd está inundada em superficialidade. Meninas a idolatram por achar que a personagem “tem muito a ver com elas”. Em uma matéria sobre a própria Comic Con Experience 2016, o Omelete entrevistou várias cosplayers de Arlequina para saber a motivação delas para se vestirem como uma personagem que nem a própria atriz que multiplicou seu sucesso (Margot Robbie, em Esquadrão Suicida) acha que seja forte. Uma das respostas, dada por Simone Aparecida, diz: “A Arlequina é inteligente, é sexy, faz o que quiser. A liberdade dela é o que nos representa, queremos ser livres como ela”. As outras respostas não são muito diferentes e demonstram identificação com a “parte divertida dela”, ou mesmo “a loucura dela” Para quem conhece a origem da personagem (a canônica é o gibi Mad Love, de 1993) sabe que ela não ama o Coringa, mas sim passou por uma lavagem cerebral e sofre de algum grau de Síndrome de Estocolmo após ser torturada e jogada no ácido por ele. Ela é uma espécie de apetrecho para o vilão, não há amor ali, apenas uma degradação psíquica. Para justificar a brutalidade da relação dos dois, o roteirista Paul Dini, responsável pela criação da personagem na série animada de Batman, afirmou: “Não ame sem pensar. Não mude a si mesmo por outra pessoa”. Por que tantas cosplayers escolheram justamente uma personagem torturada, que protagoniza um filme ruim (não assisti ainda) de uma safra esquecível dos heróis da DC? É difícil não apontar outra coisa a não ser o hype. A Warner nos presenteou com pelo menos 15 trailers do filme, um maior e mais revelador que o outro, todos eles estrelados por Arlequina. Ainda que o filme seja ruim e tenha naufragado (e foi picotado para se tornar um carnaval infanto-juvenil por uma empresa míope e sem rumo que busca apenas imitar a concorrência), a Warner colheu a vitória de transformar a Arlequina de Margot Robbie em uma personagem franqueável que sustentará uma espécie de Esquadrão Suicida com as vilãs de Batman, conhecidas por aqui como as Sereias de Gotham. E também mostra como as pessoas têm pouco contato com a cultura. “Ah, mas as pessoas gostam de Darth Vader, de Walter White, Tony Soprano”. Mas acredito que a grande maioria das pessoas que gosta desses personagens entenda duas coisas: a) esses são personagens grandiosos, completos e icônicos a seu modo, embora sejam vilões com um tipo de background dramático que os torne preenchidos, coisa que a Arlequina (ainda) não é; b) os fãs que gostam deles, sabem porque gostam deles. Nunca ouvi alguém dizer que gosta de Darth Vader porque ele foi um bom pai, ou de Walter White por cuidar de sua família acima de tudo. Esses são personagens capazes de subverter a realidade ao redor de si de forma similar a um buraco negro em atividade e esse é o tipo de característica que atrai reverência. Essa é a razão de sua força. Tal superficialidade não está presente na maioria dos fãs de Harry Potter. Conversar com esses não difere muito de falar com um fanático por Star Wars das antigas. Harry Potter é um tipo clássico de universo nerd: tem uma história central, mas permite muito mais (como demonstra os cinco filmes programados para a série Animais Fantásticos e Onde Habitam, saída de um livreto de 64 páginas). Seus fãs conhecem nomes de múltiplos feitiços, nomes de personagens terciários, motivações de cada um, porque cada um age de um jeito, e por aí vai. O motivo não envolve apenas a qualidade da série (nunca li os livros, vi apenas os filmes e gosto de quase todos eles), mas um outro fato igualmente essencial: trata-se de algo novo que exige que se conheça antes de gostar, e não uma reciclagem de personagens e totens que se firmaram há décadas na cultura pop. Pense em como estamos indo para o terceiro início da série Homem-Aranha nos cinemas em meros 14 anos (coitado do Tio Ben!) e você entende as coisas estão saindo do rumo, com pessoas em busca apenas de arrancar grana com bonecos e bilheteria. Uma área que se renova continuamente e representa o ápice da cultura nerd atual são as séries de TV, onde o controle artístico e a obsessão de fãs parece devidamente aflorada e cada vez mais crescente, vide os subreddits de cada série de TV no momento, onde alguns fãs parecem mais preocupados com a série que seus próprios showrunners. Lost, a citada Breaking Bad, Mr. Robot, The Wire, Sopranos e diversas outras criaram uma cultura de geeks como não se via há muito tempo, saboreando o novo e o artístico como há muito tempo não se via. Grana, grana & grana Ademais, existe um efeito colateral esperado após os nerds chegarem ao mainstream: pressão por resultados. Todo e qualquer filme custa no mínimo US$ 100 milhões, coisa que há 10 anos era uma faixa que apenas superpotências de bilheteria poderiam almejar. Pense que X-Men: O Confronto Final custou US$ 6 milhões a mais que Titanic. A pressão por resultados aumenta enormemente, assim como os orçamentos estratosféricos com campanhas de marketing e divulgação. Se a cultura nerd nunca foi arte, hoje ela é menos ainda: em alguns casos não é sequer divertido, caso de Vingadores II, por exemplo, um filme no máximo esquecível. A fórmula “+ dinheiro = -ideias” é quase literal. Coloque na prancheta que o primeiro Exterminador do Futuro custou meros US$ 6 milhões (e olha que James Cameron sempre foi um gastador compulsivo), enquanto o primeiro Transformers custou US$ 147 milhões e você entende onde quero chegar. Obviamente é uma comparação um tanto quanto injusta, a medida que só o licenciamento de Transformers custou mais do que a estreia de Terminator nos cinemas, mas demonstra que injeções de dinheiro não garantem sucesso — ou garantem apenas até certo patamar. O mesmo vale para o futebol, quando times superbilionários e gastadores não alcançam o sucesso absoluto esperado, casos de Paris Saint-Germain e Manchester City, que estão longe de serem máquinas, praticantes de um futebol vistoso e goleador. O fato é que uma montanha de grana geralmente tira qualquer controle criativo sobre quem quer que seja o criador de tal coisa. E essa grana deve garantir que corporações tenham total controle não apenas para o que vai para a tela, mas em como iremos absorver tal coisa, através de pesquisas detalhadas que duram anos. Obviamente esse supercontrole quase conspiratório é impossível, o ser humano é mais complicado que o descrito em planilhas de pesquisas pagas, mas uma série de vitórias são obtidas nesse esforço de moldar a identidade de uma geração através de massificação cultural. O crescimento do merchandising — um número tão importante quanto bilheterias nessa nova realidade da cultura nerd — demonstra exatamente como a ideia agora passa obrigatoriamente por uma via consumista. A linha de produtos licenciados da Marvel cresceu mais de 500% de 2009 para 2014 — com Homem-Aranha batendo a marca de US$ 1,3 bilhão em vendas de merchandising em 2014 e Vingadores em segundo lugar com US$ 325 milhões. Uma comparação com os campeões de venda da DC/Warner chega a ser vergonhosa: Batman lidera a corrida com US$ 494 milhões e Superman com US$ 277 milhões. Os dados são do Hollywood Reporter. (Tais números são tão gigantescos que fica até risível pensar que a Disney comprou a Marvel em 2009 por meros US$ 4 bilhões, isso é US$ 2 bilhões a menos do que a Disney tirou só com produtos licenciados da Marvel dois anos depois. O valor é até pequeno frente ao fato de que a Disney embolsou US$ 41 bilhões com licenciamento em 2015, quase 40% de TODA a receita gerada com merchandising de produtos de entretenimento no mesmo ano.) Crédito: Hollywood Reporter A falha da Warner em construir um universo decente de seus heróis não apenas a sacramentou como a derrotada nos cinemas, como lhe roubou uma fatia gigantesca de merchandising, mesmo com personagens muito mais importantes para a história da cultura que do lado da Marvel. (Acho que não é demérito nenhum ao trabalho da Marvel dizer que seria preciso mais um século de trabalhos de alto nível para o Homem-Aranha chegar perto do que representa Batman e Superman para a cultura americana e mesmo global, o que exacerba o quanto a Disney possui uma fórmula vencedora em fixar personagens nas nossas mentes sem grandes esforços.) O futuro da cultura nerd já pode ser experimentado agora: as empresas mastigam tudo para você, desenvolvem quase todas as teorias possíveis, dizem que personagem é o mais legal e porque ele é mais legal, moldam sua identidade, onde os easter eggs são divulgados em trailers, onde todos os filmes têm cenas pós-créditos, onde uniformes são escolhidos baseado no potencial de vendas de bonecos, onde livrinhos rendem três filmes de três horas cada e onde todos os filmes e gibis parecem mergulhados nas mesmas ideias mancas, visando alcançar o máximo de público possível e pensando apenas na “coesão do universo”. Se isso não é estar no Jardim da Infância, Eu não sei mais o que é.