[Resenha] O Clube dos Canibais (2018)

Com forte inspiração do ciclo italiano de cinema de horror dos anos 70 e 80, O Clube dos Canibais sustenta sua narrativa em uma alegórica denúncia da exploração da população pobre e negra por uma elite aristocrática branca. Trata-se de um interessante thriller, com um apelo gore (assinado por Rodrigo Aragão como responsável pelos efeitos especiais) e marcantes sequências narrativas. Apesar de contar um roteiro bem amarrado, sofre de uma narrativa sem drama, que não encontra um guião firme. Oferece uma história com camadas, como por exemplo, a luta de classes e a presença crua do escravismo racial nos tempos atuais, mas não as aprofunda. No geral, é um filme interessante, gore e divertido. O filme de Guto Parente contribui para essa interessante retomada do cinema de gênero brasileiro, em oposição as pretensões de realismo social. Entretanto, ao fazer uso do “absurdo” enquanto horizonte, chega a tocar questões nucleares da história sociopolítica brasileira como somente uma boa ficção tende a tocar.

No filme, o casal Otávio e Gilda são um casal da elite nordestina brasileira. Ele é proprietário de uma empresa de segurança privada que cuida de alguns figurões da política, sendo um deles um deputado chamado Borges. Ela é uma socialite que ao mesmo tempo que é firme no seu desejo de ser sustenta pelo marido, também fica entediada buscando satisfação na bebida e no sexo. Eles moram em uma grande casa à beira da praia, provavelmente no nordeste brasileiro – o filme foi gravado no Ceará. Muito cedo na história, descobrimos que o casal está familiarizado a realizar um bizarro ritual, no qual Gilda seduz e leva para cama um de seus funcionários. Enquanto ela transa com o caseiro, Otávio se masturba assistindo a tudo por de trás de um espelho. No clímax, Otávio e Gilda apenas atingem o orgasmo quando ele sai de seu esconderijo e assassina o funcionário sobre o corpo da esposa. Na sequência, após destrinchar o cadáver, o casal prepara a carne do caseiro e o canibaliza, tomando um vinho, em um aparentemente convencional jantar à luz de velas.

Essa breve sinopse de O Clube dos Canibais é de fato uma breve descrição da sequência de abertura do filme. Entretanto, nada que pudesse ser escrito aqui em palavras estaria à altura do que de fato é a abertura do filme de Guto Parente. O destaque é da cinematografia de Lucas Barbi, bem como a já de cara impressionante trilha composta por Fernando Catatau. O filme começa com uma espécie de “demora” na tela escura, alguns segundos, produzindo aquele efeito de “tédio” na escuridão descrito por Hugo Mauerhofer em 1966. Não se trata de um tédio que chateia o espectador, pelo contrário é um tempo insignificante no qual esperamos no escuro e acabamos por ser triplamente recompensados ao receber qualquer estimulo que não seja o silêncio e a escuridão. Os segundos de tela escura são invadidos pela trilha de Catatau que invade a diegese intensificando e muito o impacto da cena de abertura do filme: alguns minutos de uma panorâmica na qual vemos o céu azul sobre o mar verde, enquanto as ondas alcançam a praia.

Enquanto um blues bastante ralentado com pitadas de sintetizadores, a cinematografia de Barbi nos sugere que a visão panorâmica para mar é do vigia da casa na qual o casal Otávio e Gilda moram, que segura um rifle e escuta o blues supostamente diegético em seus fones de ouvido. Somo apresentados à Gilda que se bronzeia, na esteira dentro da piscina, tomando um Aperol Spritz e “secando” o caseiro enquanto ele limpa a piscina. A decupagem, montagem, e fotografia até aqui são impecáveis. A imagem de Gilda, seu biquini, os óculos escuros e o drink às mãos fazem um contraponto imagético tensional com a imagem do caseiro e do vigia, que no sol à pino estão completamente vestidos, suando e trabalhando. A construção da cena não deixa dúvidas quanto a tensão sexual entre Gilda e o caseiro, porém a cena consegue facilmente tocar a tensão socioeconômica entre as personagens.

O blues de fundo se intensifica, enquanto a socialite “come com os olhos” o funcionário. A cena é cortada e na sequência temos um pedaço de carne malpassada sendo fatiada em uma tábua. Filmado inicialmente em close nas mãos, é Otávio que vestindo apenas uma sunga, fatia a carne ao lado da churrasqueira, enquanto bebe um whisky. Ele leva as fatias de carne para e piscina e as serve para a esposa. O blues dá lugar à uma trilha sintetizada, que ao que tudo indica estava o tempo todo ao fundo, mas só agora pode ser escutada. Gilda come a carne enquanto fixa seu olhar no caseiro. Nesta e em outras cenas, principalmente na cena seguinte podemos facilmente reconhecer as influências de Dario Argento, Lucio Fulci e até mesmo Mario Bava na direção de Guto Parente – a cena na qual Ana Luiza Rios desse as escadas nua e ensanguentada para encontrar Tavinho Teixeira destrinchando um cadáver é digna de ser chamada de “argentiana” ou “bavaniana”. Entretanto, o filme não se preocupa em construir uma grande atmosfera de horror. Há de maneira mais constante um tom irônico, mais puxado para a comédia crítica. Isso não significa que não seja um filme bastante que dialogue com o gênero do horror. O gore é bastante presente apesar de não ser extremo. A questão é que um dos momentos mais asquerosos do filme não é explícito. Mais incômodo e potente do que as cenas brilhantemente produzidas por Rodrigo Aragão (responsável pelos efeitos especiais) é, por exemplo, a cena na qual Gilda e Otávio jantam a carne do funcionário recém-assassinado, na maior naturalidade.

A cena do assassinato relembra com bastante vigor à filmes como Psicopata Americano (American Psycho, 2000), Psicose (Psycho, 1960). Definitivamente há algo muito similar entre a caminhada para o assassinato de Tavinho Teixeira (Otávio) e de Anthony Perkins (Norman Bates) no filme de Hitchcock. Apesar da semelhança de situação, na qual ambos estão a espiar por de trás das paredes, acredito que a ressonância esteja em um determinado detalhe: a velocidade entre estado de passividade e a ação. Há algo bastante sinistro e perturbador na maneira como Perkins avança do quarto à escada para o assassinato de Arbogast. Aqui ocorre o mesmo, Tavinho Teixeira nesse pequeno detalhe consegue ser bastante sinistro e perturbador.

O “clube” a que se refere o título do filme é uma espécie de confraria, da qual Otávio faz parte. Dela fazem parte apenas homens que ocupam posições de poder na região. O deputado, Borges é o líder do clube. O clube remonta à famosa cena da orgia de De olhos bem fechados (Eyes Wide Shut, 1999), entretanto, com algumas pitadas de filmes como A Serbian Film – Terror sem Limites (Srpski film, 2010) e O albergue (Hostel, 2005). A cena busca apresentar uma alegoria sociopolítica na qual os membros do clube restrito, homens de meia idade, políticos e poderosos brancos em seus trajes pomposos assistem à um casal de negros acorrentados e transando. Em determinado momento, um carrasco vestido uma máscara de pele humana adentra o galpão portando um porrete farpado para assassinar o casal. Como indica o título do filme, depois o Clube se reúne para jantar a carne das vítimas. A sequência em si é bem feita, apesar do clichê, nesse sentido o filme de Guto Parente se assemelha bastante com o cinema do Rob Zombie. Ele faz uso de tropos cinematográficos que de maneira alguma poderiam ser considerados inovadores, entretanto, há um interessante movimento de levar estas imagens ao seu extremo. Assim como os filmes de Zombie, o O Clube dos Canibais é bastante visceral, em determinados momentos, chega a ter “cheiro de suor e podridão” – o que é totalmente intencional.

É também na cena do Clube, que há um dos pontos altos do filme, ao mesmo tempo em que é um dos momentos mais desinteressantes. Durante o jantar do Clube, o deputado e chefe da reunião, Borges faz um monólogo que tem por função denunciar o caráter eugenista que sustenta discurso do “cidadão de bem”. O interessante aqui está nas escolhas provavelmente intencionais que fez Pedro Domingues para interpretar Borges. Em suas primeiras aparições, Borges está em seu gabinete de deputado, recebendo Otávio ou Gilda em uma reunião. O ator entrega as falas do personagem tal como se fossem robotizadas e memorizadas. Até o espectador mais desatento pode notar que há uma “péssima atuação”. Na antecipação afobada, assumimos que Pedro Domingues é um péssimo ator. Porém, quando chegamos à cena do monólogo, é palpável a mudança. No discurso eugenista e prol dos “cidadãos de bem”, Borges se apropria de sua enunciação e discursa com emoção em uma “ótima atuação”. Isso resignifica sua “péssima atuação” anterior, apontando para o caráter falacioso da figura do deputado, quando no fundo verdadeiramente é um eugenista sádico.

Borges é um herdeiro cinematográfico de Porfírio Diaz de Terra em Transe (1967). O discurso do deputado canibais não é apensa similar e filmado de maneira a homenagear seu antecessor, mais do que isso, pode-se supor uma espécie de sobrevivência de uma imagem do horror brasileiro. O deputado propõe um brinde à Clóvis, membro do Clube que havia sofrido um acidente fatal, segundo Borges. Entretanto, sabemos que foi exatamente Borges em conluio com Otávio que haviam arranjado o assassinato de Clóvis. Assim, trata-se de uma homenagem não apenas hipócrita como cínica – e a impressão que fica é a de que todos sabem da verdade, porém, mesmo assim, jogam o jogo. O monólogo, se encontra no segundo brinde proposto por Borges. Ele retifica a “responsabilidade” que eles, “homens distintos e privilegiados”, “fiéis aos valores universais da família, da fé e do trabalho”, tem de defender estes ideais da degradação efetuada por “aqueles que querem transformar nosso país e um lugar de miseráveis”. Afirma ser contra aqueles “pederastas e delinquentes” “capazes de todo tipo de vileza para nos derrubar” que “deveriam ser esmagados pelos nossos pés”.

O discurso segue nessa toada maniqueísta descrevendo os inimigos como a causa de toda a vilania e impureza social brasileira, e assim, localizando o Clube no lugar de último resquício da salvação e resistência dos bons costumes e da moral benfeitora social. O deputado fala de maneira apaixonada e agressiva, fazendo com que percebamos que a suposta “péssima atuação” nas cenas anteriores não eram uma péssima atuação de Domingues e sim do próprio Borges. Bem dirigido, por Guto Parente, o absurdo do monólogo está associado ao fato de que Borges o declama enquanto sobre seu prato e o de seus colegas se encontra um pedaço de carne recém tirado de um casal de negros brutalmente assassinados na cena anterior. O cinismo é o absurdo. O monólogo se encontra no coração do filme e de certa forma nos indica que a temática central é a “encenação social”.

Há uma espécie de jogo de encenações ao longo de todo o filme, que tem por efeito produzir uma infinidade de esquemas por trás de esquemas. Gilda e Otávio fingem contratar funcionários para trabalharem em casa, mas o verdadeiro objetivo é canibaliza-los. Gilda finge seduzir o caseiro. Otávio finge que vai sair de viagem. Gilda finge transar com o caseiro. Otávio finge confiar em Borges, que por sua vez finge confiar em Otávio. O clube finge que Clóvis sofreu um acidente, quando na realidade foi morto por Borges. Gilda finge que não sabe o segredo de Borges, que finge que ele não sabe que ela sabe. A empresa finge contratar um novo funcionário para o casal, que é o novo prato principal. Borges finge um assalto para tentar exterminar o casal. Otávio finge ter sobrevivido ao assalto para assassinar Borges.

Mesmo que a temática dos jogos de encenação sejam uma constante, é exatamente uma espécie de independência entre os núcleos da narrativa que faz O Clube dos Canibais perder parte de seu foco. Se utilizarmos o título enquanto chave de leitura, teremos que reconhecer a sequência do clube e o monólogo como o coração do filme – bem como falamos acima no texto. Porém, a película prefere nos oferecer o relacionamento de Gilda e Otávio como trilho principal do desenrolar da história. Assim sendo, não é o título do filme que é destoante, o problema é exatamente a lacuna de drama familiar no relacionamento do casal. Mesmo que a intenção de Guto Parente seja a construção de protagonistas absurdos que fujam do realismo ou do naturalismo, um bom thriller que flerte com o gore e o terror exige um bom romance familiar como pano de fundo. Não se trata exatamente de uma exigência formal imprescindível, porém em geral, sua ausência é notada pelo público em geral como “fraqueza de roteiro”.

No caso de A meia noite eu levarei a sua alma (1964), por exemplo, a questão da infertilidade assombra Zé do Caixão que ambiciona produzir o filho perfeito para salvar a humanidade. Apesar do eugenismo bizarro do coveiro, o drama familiar em torno das tentativas frustradas de engravidar sua esposa Lenita desliza o espectador para o ponto trágico da narrativa, no qual começamos a temer o e temer pelo vilão. Não é que não exista uma boa amarração entre o Clube dos Canibais e a história do casal. Na realidade, da maneira como o roteiro está escrito ambos os núcleos são fundamentais para o desenlace final do filme. O problema é exatamente que ambos funcionem tão bem de maneira independente. A ideia aqui é apontar que os núcleos poderiam muito bem funcionar como dois curta-metragem que se passam no mesmo universo ficcional. Isso não é um grande problema para o filme, mas é de se notar.

A questão do canibalismo é o verdadeiro ponto forte da argumentação de Guto Parente. A partir do momento em que esse é o tema da história e esse aspecto é feito com maestria, o restante da produção ganha de tabela. O Clube dos Canibais tem como antecessor fundamental O Massacre da Serra-Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre, 1974) de Tobe Hopper, e assim como em Bacurau (2019) há uma total inversão de alguns tropos, sem que a verdadeira essência do gênero freaks/canibais/caipiras se perca. O mote principal é aquele no qual pessoas de classe média alta dos centros urbanos acabam por se perder em um território inóspito e afastado no qual habita um grupo ou família de esquisitões deformados interna ou externamente que em geral acabam por se revelar como canibais.

As tensões sociais entre centro e periferia, barbárie e civilização é aspecto afetivo que explode em uma série de perseguições, assassinato e desmembramentos violentos. Porém, na película de Guto Parente os “sinais estão invertidos” e os canibais Gilda e Otávio são os representantes do centro urbano, enquanto Jonas e os outros funcionários são as vítimas da periferia interiorana. Tal inversão faz sentido, já que a história da representação do povo brasileiro serve-se dessa premissa. Lembremos aqui o relato de Hans Staden contido no livro História Verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos de 1557, no qual o aventureiro alemão foi feito prisioneiro por uma população Tupinambá que realizava rituais antropofágicos. O sucesso do livro o transformou em um clássico, a ponto de Cunhambebe, o cacique tupinambá ser uma das inspirações do quadro “Abaporu” da Tarsila do Amaral que por fim inspirou o “Movimento Antropofágico” de Oswald de Andrade em 1922.

A imagem do selvagem canibal é um gênero clássico do cinema de horror que viveu um ciclo importante na Itália durante os anos 1970 e 1980. Os exemplos são, Mundo Canibal (Il paese del sesso selvaggio, 1972), O último mundo dos canibais (Ultimo mondo cannibale, 1977), Emanuelle e os últimos canibais (Emanuelle e gli ultimi cannibali, 1977) e Holocausto Canibal (Cannibal Holocaust, 1979). Todos em comum a influência direta ou indireta, mas sempre muito presente das descrições imagéticas de Hans Staden. O mais famoso e importante dessa leva, Holocausto Canibal retoma a imagem do selvagem canibal como brasileiro. Em entrevista, Guto comentou ter se inspirado no caso de canibalismo ocorrido no sul do Brasil em 1864, que ficou conhecido como “Crimes da rua do Arvoredo”, porém a metáfora que une a ideia da elite sanguinária do selvagem canibal é mais interessante do que qualquer pressuposto “baseado em fatos reais”. Para colocarmos O Clube dos Canibais como um sucessor de Holocausto Canibal precisamos abrir mão de várias concepções pressupostas sobre o que um e outro significam e tentar pensar na possibilidade de Guto Parente ter tentado satirizar a “elite de cidadãos de bem brasileira” como meros “selvagens canibais”, assim como o contemporâneo Bacurau faz na cena em que os sulistas são desconstruídos enquanto “elite branca” pelos gringos europeus e norte-americanos.