Um dia desses eu estava vendo um episódio de Sopranos no qual o Tony Soprano tem o seguinte diálogo com sua terapeuta:

Vi um programa sobre a Revolução Americana no History Channel. Somos o único país no mundo onde a busca da felicidade foi garantida por escrito. Acredita nisso? Bando de fedelhos mimados! Cadê a minha felicidade?

E ela prontamente responde:

O garantido foi a busca.

Esse diálogo me inspirou a fazer este texto sobre o brilhante quadrinho A saga do Tio Patinhas. Escrito e desenhado por Don Rosa o quadrinho mostra como o Tio Patinhas se tornou um cara tão rico e tão rabugento. Neste texto eu vou abordar o capítulo que deu a transição do personagem de uma pessoa pobre para um pessoa rica, isso está no capítulo 8 com o título de O Rei do Klondike mas antes disso vou dar uma contextualizada em quem foi Don Rosa e em qual momento surgiu este quadrinho.

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Don Rosa é um dos maiores artistas que já passaram pela Disney e ele já tinha influência suficiente para fazer uma série muito ambiciosa, calma que eu já chego lá. Antes do Don RosaCarl Barks (este sim o maior artista que já passou pela Disney) já tinha criado o personagem e aos poucos foi inserindo elementos de seu passado, tudo isso servia para fazer a história do Pato Donald andar e em nenhum momento Barks decidiu fazer uma cronologia do personagem. Ninguém sabia motivo pelo qual o Patinhas ficou rico, ambicioso e ranzinza. Foi aí que o Don Rosa entrou na vida do personagem e decidiu contar a vida do personagem do começo até o momento em que os leitores conheciam, para isso ele usou todos os elementos usados pelo Barks nas páginas do Pato Donald para a história ficar cronologicamente coesa.

A série teve 12 capítulos e ganhou o prêmio Eisner de melhor série continuadano ano de 1995 e depois de terminar Don Rosa voltou para mais 6 capítulos extras.

Don Rosa e Carl Barks.

O quadrinho é uma aula de narrativa gráfica e é um tutorial de como fazer uma história cheia de sub-textos para todas as idades. O público infantil é obviamente o alvo principal da história e para isso ele seguiu a mesma métrica do Barks e foi adicionando muitas idéias para compor a narrativa desta obra. Nada está lá por acaso e uma parte fundamental do quadrinho é o que está acontecendo em segundo plano. Muita das vezes coisas chaves são jogadas lá e depois retomadas com um maior cuidado no futuro, claro que também tem momentos que é pura descontração. A arte é soberba e ao mesmo tempo limpa lembrando as artes de quadrinhos europeus.

Dito tudo isso, vamos ao que interessa. Preciso deixar claro que para ilustrar os meus argumentos eu retirei trechos do quadrinho, ou seja, vai ter bastante imagem.

A corrida do ouro em Klondike.

Por todo o desenrolar da história nós acompanhamos o Patinhas participando de momentos históricos e encontrou pessoas importantes como Theodore Roosevelt, político esse que mais tarde viraria presidente dos EUA de 1901 a 1909. E um dos momentos-chave da história foi a Corrida Ouro de KlondikeKlondike é uma região do Yukon que fica a noroeste do Canadá e a Leste da fronteira com o Alasca. O clima lá era bem severo e sem meio termo, no verão era quente demais e no inverno era extremamente frio.

A Corrida do Ouro foi a migração de 100.000 garimpeiros em busca da tão sonhada fortuna que o outro prometia. Aproximadamente 30.000 a 40.000 conseguiram chegar. Realmente era uma odisseia chegar na região, os garimpeiros além de enfrentarem o clima eles tinham que lidar com as limitações físicas, tendo em mente que precisava andar grandes distâncias, atravessar rios com barcos improvisados e por aí vai. A corrida durou muito pouco e apenas uma parcela pequena dos garimpeiros conseguiram ficar ricos de verdade.

Garimpeiros em busca do tão sonhado ouro.

Um dos participantes da corrida do outro foi o próprio Tio Patinhas e no final de tudo ele conseguiu sair rico de lá, o próprio Don Rosa afirma que ele ficou rico por conta do seu trabalho duro e dá a entender que existe o sistema chamado Meritocracia. Este termo foi criado em 1950 pelo sociólogo britânico Michael Young. A palavra é composta do latim mereo (ser digno, merecer) e pelo grego κράτος, transl. krátos (força, poder). O que isso quer dizer? Ele diz que o mérito vem a partir de seu trabalho duro e se você trabalhar muito você vai conseguir o seu objetivo, afinal você é merecedor disso.

Por mais que o autor afirme que exista uma meritocracia em sua obra, a própria história prova o contrário e tudo isso por conta de um personagem: Porcolino. Depois de perder suas únicas finanças, Patinhas resolve ir a um cara que dá empréstimos com juros baixos e as taxas são honestas. Tenha em consideração uma coisa: Porcolino já é rico antes mesmo de começar a corrida do ouro. Ele é única pessoa que tem dinheiro suficiente para dar empréstimos nesta pacata cidadezinha.

Claro que como um bom vilão ele engana o patinhas colocando um 0 a mais na taxa de juros do empréstimo mas isso é irrelevante para o ponto que eu quero levantar. Na cidadezinha as pessoas começam a espalhar que existe ouro em Klondike e prontamente uma porção de pessoas começam a correr atrás do tão sonhado ouro. Patinhas e Porcolino saíram no mesmo momento e ainda assim Porcolino sai com várias vantagens por conta que ele já é rico e Patinhas por ser pobre tem que fazer um esforço tremendo para alcançar ele. Por si só isso já contradiz a meritocracia que ‘existe’ na história mas vou deixar isso ainda mais consistente.

Depois de chegar no topo, Porcolino novamente sai na frente por ter um trenó que é puxado por cães e você vê pela suas vestimentas que ele está preparado para o clima extremamente hostil do local enquanto patinhas tem que fazer de improviso uma jangada para atravessar um rio, só que a história dá uma liberdade poética e o Patinhas faz uma flauta que atrai um alce e ele consegue atravessar o rio, com muito custo.

Deixando um pouco de lado a competição dos personagens principais do capítulo, vamos focar em todas as outras pessoas que tentaram chegar no até lá. Vemos no começo do capítulo que a cidade que eles saíram era uma cidade bem simples e dificilmente alguém era rico. Se alguém fosse rico teriam feito como o Porcolino fez e pegado várias vantagens que o dinheiro pode comprar. Como eu disse lá em cima saíram aproximadamente 100.000 garimpeiros na corrida e somente 30.000 a 40.000 conseguiram chegar lá e isso está bem explícito neste quadro do rio Yukon com vários garimpeiros que falharam em conseguir algo.

Dentro do quadrinho, existe uma caverna que as pessoas comentam que lá dentro existe um monstro e a maioria das pessoas não conseguiam pela caverna por conta do medo. Patinhas sempre foi muito corajoso e claro que ele atravessou e no final o monstro se revelou ser um cadáver congelado de um mamute. Quando ele ultrapassa esta caverna por sorte ele encontra um local inexplorado e completamente virgem e é aqui que eu me senti completamente incomodado com o quadrinho e foi aqui que começou a verdadeira transformação dele.

Primeiro ele se declara o Rei do Vale da Agonia Branca e nessa época se você achasse algum local que não tinha um proprietário, você poderia registrar em seu nome e o local seria seu. Prontamente ele volta para cidade para registar e tem uma bela surpresa. Enquanto ele ainda estava pobre a cidade já tinha prosperado assim como o Porcolino. Historicamente falando o quadrinho está correto, a cidade do Alasca praticamente dobrou com a corrida do ouro passado de 33 mil habitantes para 63 mil habitantes.

Patinhas tem aqui uma das melhores discussões internas sobre meio-ambiente, progresso e a corrupção que o dinheiro trás. Tem um momento que ele tem lapso de sensatez em que se questiona se ele quer mesmo destruir tudo aquilo ali para tentar achar ouro, note que o ouro ainda era incerto até esse ponto da história. Ele poderia ou não acabar com aquilo tudo e ele escolheu o pior caminho. Neste ponto o quadrinho é bem atual, vamos colocar o nosso país como exemplo, a Amazônia é considerada como sendo o pulmão do mundo e diariamente ela é desmatada e ceifada por conta do progresso. De 2008 a 2016 a Amazônia perdeu 7.989 km² e já estamos em 2018 e esse número deve ter crescido.

Depois de começar a criar sua casa, Patinhas teve que voltar mais uma vez para a cidade para pagar aquela dívida que o Porcolino superfaturou e ele tem a prova de como que o dinheiro corrompe, esse é um dos quadros mais tristes do quadrinho.

Patinhas continuava trabalhando duro enquanto a cidade toda estava um caos por conta dos frutos da corrida do outro e inclusive o Porcolino conseguiu ficar ainda mais rico do que ele já era. Ele já era dono de barcos, e tinha um Cruzeiro que funcionava como Saloon. Desde o momento que o Patinhas achou o Vale da Agonia Branca ele mudou bastante e depois disso ele é passado para trás novamente pelo Porcolino. Ele tenta roubar o papel que prova que o Vale da Agonia Branca é do Patinhas e acaba colocando o patinhas preso em seu Cruzeiro.

Novamente o Porcolino mostra que tem mais uma vantagem dentro do departamento de registros, ou seja, uma pessoa dentro do governo local cedeu uma informação do Patinhas por conta do poder que o Porcolino tem. Um dos pontos altos dos quadrinho é quando o Porcolino lê uma carta do pai do Patinhas dizendo sobre o falecimento de sua mãe, depois desse ponto ele se revolta e quebra tudo (depois esse momento vai se tornar um dos mitos em volta do Patinhas). O que uma pessoa normal faria? Iria até o funeral para dar um último adeus a mãe, certo? Errado! Patinhas continuou com a ganância para achar o tão sonhado ouro. E no final de tudo, ele conseguiu. Os quadros abaixo mostra o que já tinha sido pincelado na metade do capítulo, o personagem se corrompeu se transformando em outra pessoa, diferente daquele lá do começo.

Bom, quando eu terminei esse capítulo eu cheguei a conclusão que: Don Rosa provou que a meritocracia não existe dentro do contexto do quadrinho. Claro que isso é minha opinião e creio que quando uma obra é boa ela gera discordâncias e diálogos inteligentes. No final, se o Patinhas fosse um daqueles garimpeiros que fracassaram no rio Yukon ele não teria 1% da riqueza dele, então no final se provou que ele teve sorte.

Mas vamos fazer um exercício mental aqui: se caso a meritocracia exista e ele realmente ganhou a fortuna por conta do seu trabalho duro, no final de tudo, o que sobrou pra ele? Ele se tornou uma pessoa horrível, gananciosa, ranzinza e por consequência afastou todas as pessoas de perto dele, inclusive a mãe do Pato Donald. Será mesmo que valeu a pena ele acumular tamanha fortuna? A troco de que ele fez isso? Ele nem mesmo gasta nada e só gosta de acumular mais e mais riqueza como o próprio Donald questionou no quadro ao lado.

Existe este debate se a meritocracia existe ou não, eu acho bem utópico no nosso país que é o 10º país mais desigual do mundo e acho bem absurdo quem acredite que exista essa tal meritocracia. Por mais esforçado que você seja existe perto de você uma porção de Porcolinos que já nasceram em berço de ouro e está muito na frente na corrida da vida. E é curioso como cresceu o número das pessoas que defendem piamente a meritocracia em pleno 2018, acredito que foi com a difusão da ideia de que é possível ser um empreendedor bem sucedido no Brasil. Claro que pode ter sim empreendedores com sucesso em sua jornada, mas garanto que a quantidade que fracassou é bem maior. Hoje temos uma porção de pessoas que ganham dinheiro vendendo sonhos maravilhosos que dificilmente vão acontecer de fato e os mais necessitados agarram como se fossem uma realidade que claramente não se aplica em nosso país.

Típica frase de quem acredita em meritocracia e quem ama empreendedorismo.

Ficou um pouco grande mas consegui passar tudo que eu queria. Por mais crítico que este texto seja, eu indico que vocês comprem o quadrinho, de fato é um quadrinho muito bom e eu diria até que é essencial para quem curte o universo da Disney ou gosta de leitura em geral. Ele é bem engraçado e traz bons ensinamentos seja para crianças ou para adultos.

E não é que a terapeuta do Tony Soprano estava certa? O que foi garantido foi a Busca!

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One Comment

  1. Sopa niilista

    3 de setembro de 2018 at 17:51

    As pessoas têm que acreditar na “Meritocracia” porque isso é a base do discurso capitalista/liberal.

    Senão ninguém respeitaria a propriedade privada alheia.

    Se não há meritocracia o que me impede de tomar a força o que eu quero ?

    As pessoas acreditam na meritocracia porque acreditam numa “justiça”.

    Reply

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