Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr A Versátil Home Vídeo anunciou para o mês de fevereiro a caixa Sessão Dupla de Terror, que reúne as duas primeiras versões para o cinema de Eu Sou a Lenda, o famoso romance do escritor Richard Matheson, em inéditas versões restauradas: Mortos que Matam (The Last Man on Earth, 1964) e A Última Esperança da Terra (The Omega Man, 1971). A caixa também conta com dois clássicos dos filmes de zumbi: O Morto Ambulante (The Walking Dead, 1936), interpretado por Boris Karloff e Zumbi Branco (White Zombie, 1932), interpretado por Bela Lugosi. Sob a curadoria de Fernando Brito, A Versátil vem realizando um trabalho esplendoroso nos últimos anos com as caixas de colecionador: Obras-Primas do terror, Clássicos Sci-Fi, Westerns, Samurais, Filmes Noir, Filmes de Guerra – fora as edições especiais de diretores como Hitchcock, Fellini, Cassavetes, Renoir entre muitos outros. Para animar o lançamento, o Mob preparou um texto especial sobre o filme Zumbi Branco – o primeira obra de zumbis no cinema. Antes de Zumbi Branco (White Zombie, 1932) a figura do zumbi era pouco difundida no imaginário de uma grande população. Apesar desta figura do morto-vivo poder ser encontrada em civilizações primitivas, a influência do Vodu na imagem popular do monstro é inegável. Em 1929 o jornalista e escritor norte-americano William Seabrook foi responsável pela popularização dos mortos-vivos no ocidente com o livro A Ilha da Magia: Fatos e Ficção. Seabrook debruçou-se na pesquisa e relato dos rituais vodus, que ele mesmo havia testemunhado durante sua estadia no Haiti em 1928. Coube ao autor explicar pela primeira vez as sutilezas envolvidas na compreensão da controversa religião. Em vários trechos do livro, Seabrook surpreende-se e descreve que os haitianos não possuíam dúvidas quanto à existência destes tais zumbis. O autor inclusive visita uma lavoura onde quatro supostos zumbis trabalhavam. Não confiando em suas impressões, foi conversar com um médico haitiano seu amigo, para desmistificar a estranheza deste encontro. O próprio Seabrook ao contar sobre suas experiências com zumbis não chega a duvidar do que vê, porém minutos depois desconsidera a possibilidade e justifica que os ditos “zumbis” eram pessoas vivas sob o efeito de entorpecentes. Quando o livro A Ilha da Magia: Fatos e Ficção foi publicado nos Estados Unidos em 1929 foi instantaneamente um sucesso entre a população culta. O timing foi essencial para esta recepção calorosa. Após a declaração de independência do Haiti, a “República Negra” foi completamente isolada pela comunidade internacional, especialmente pelos EUA. Porém, ao fim do século XIX a política norte-americana estava novamente interessada no Caribe, principalmente pelo controle do Canal do Panamá. O Haiti neste momento sofria uma extrema instabilidade política passando por sete regimes diferentes no período de 1908 a 1915. Utilizando como premissa a dívida externa de 21 milhões de dólares e a instabilidade política do país, em 1915 os Estados Unidos enviou a canhoneira U.S.S. Washington no comando do almirante Caperton para ajudar o presidente Guillaume Sam – amigo partidário do EUA – a manter a estabilidade haitiana. Esta intervenção não tanto solidária provocou nos anos de 1918 e 1919 diversas revoltas violentas que eram reprimidas com mais violência. Durante a data de 1929 a situação permanecia a mesma: haitianos e norte-americanos em uma disputa brutal no solo caribenho. Seabrook pública seu livro no auge do domínio americano no Haiti, e embora em A Ilha da Magia o autor seja extremamente tendencioso a favor dos nativos, o livro era recheado de informações do obscuro país sobre o qual todos estavam falando. O livro fora tão influente que as editoras norte-americanas brigavam para financiar relatos cada vez mais sensacionalistas sobre o Caribe. O zumbi não passou despercebido pela população americana e em 1932 invadiu Hollywood. O sucesso de A Ilha da Magia proporcionou aos zumbis uma entrada pela “porta dos fundos” no cinema. Os zumbis estrearam no teatro em 1932 no EUA, porém sua repercussão foi mínima. A peça Zombie sofreu de um mal ainda existente na mitologia zumbi: a escassez literária que fazia com que os enredos fossem fracos. Porém, ainda em 1932 o zumbi foi apresentado à grande população. O primeiro filme que apostou nos mortos-vivos foi Zumbi Branco (White Zombie, 1932), um filme de pouco orçamento para época – 62,5 mil dólares – que acabou por render 8 milhões de dólares de bilheteria. O roteiro escrito por Garnett Weston foi escancaradamente inspirado no livro de Seabrook. As influências foram tantas que as campanhas publicitárias do filme afirmavam que os eventos da película eram “baseados em fatos reais”, se referindo às viagens de Seabrook. As cenas em que o feiticeiro Pierre presenteia um haitiano com um ouanga, ou quando Beumont e Legendre visitam o moinho de açúcar, poderiam fazer parte de uma adaptação de A Ilha da Magia, caso fosse realizada. Referências à obra de Seabrook são inúmeras. O filme foi muito mal recebido pelos críticos, mas durante um período marcado por Drácula (1931) e Frankenstein (1931), Zumbi Branco registrou o zumbi na história do cinema, suscitando uma inesperada fascinação dos americanos pelo monstro. Talvez não seja por um acaso que os cinemas norte-americanos foram tomados pelos filmes de terror no início da década de 30. Para quase toda a população norte-americana o recente ano de 1929 havia proporcionado para o país uma realidade aterrorizante. O terror estava dentro e fora dos cinemas durante a crise econômica resultante da quebra da Bolsa de Valores de Nova York. No final da década de 20 os Estados Unidos desfrutavam de uma onda de desenvolvimento econômico sem precedentes históricos em qualquer parte do mundo. O “bem-estar” imperava e fez com que os norte-americanos acabassem por iludidos com o crescimento econômico, o que levou a população consumir freneticamente. O consumo foi incentivado pelos políticos, imprensa e empresas, já que ele poderia aquecer a produção industrial, consequentemente produzindo a necessidade de novas contratações para atender a demanda. Juntamente a este frenesi, cresceu o ingresso de muitos americanos no mercado de especulações nas bolsas de valores. Em 29 de outubro, quando a Bolsa de Nova York quebrou, cerca de 16 bilhões de dólares haviam desaparecido. No mês seguinte já havia nas ruas figuras famintas de roupas esfarrapadas, enfileirando-se para se alimentar de sopa – para alguns a única refeição do dia. Quando Zumbi Branco estreou em 1932 a depressão vigorava em seu auge. O desemprego atingira cerca de 14 milhões de americanos, que passaram a caminhar pelas ruas de cabeça baixa, como se tivessem vergonha, ou medo, de viver. Viver naqueles dias tornou-se realmente um suplício. Não é difícil relacionar a imagem dos zumbis nesse período com a realidade em que vivia a população dos Estados Unidos. No Haiti o zumbi simbolizava o medo da escravidão, de se perder a “liberdade” no paraíso da pós-morte, mas nos Estados Unidos do início da década de 30 o zumbi representava uma forte imagem de identificação para a população engolida pela máquina do capital. No filme, o moinho de açúcar de Legendre era operado por uma dezena de trabalhadores humanos sem vida e indiferenciados, autômatos descartáveis. O que faz sentido, já que no início da década de 20 a classe média norte-americana acreditou que a fórmula para se ganhar dinheiro sem trabalhar, havia sido encontrada na especulação econômica. Desta maneira, Zumbi Branco transformou o próprio trabalho em terror, pois os zumbis de Legendre trabalhavam fielmente e não tinham medo de hora extra. A vontade de enriquecer sem trabalhar associada com a necessidade de aceitar qualquer emprego para poder sustentar-se tornou ambígua a relação dos americanos com o trabalho. Muitos norte-americanos que viveram esse período tinham medo do trabalho: medo de ser “escravo”, mas também de ser desempregado, e assim os americanos cambaleavam pelas ruas, magros, pálidos e falidos. O Haiti é retratado no filme de maneira muito preconceituosa. Um país de ladrões de defuntos, feiticeiros e autoridades falhas. Dr. Bruner é o personagem que durante todo o filme sintetiza a imagem fantasiosa criada sobre o Haiti. Morando há mais de 30 anos no país, o médico parece estar familiarizado com as peculiaridades da ilha. O próprio diz há anos tentar separar o fato da ficção. A população norte-americana do início da década de 30 estava fascinada por conhecer a obscura história das novas índias ocidentais e através de obras como Zumbi Branco os americanos podiam projetar a própria precariedade dos EUA na imagem fantasiosa de um país subdesenvolvido como o Haiti. A identificação parece inevitável, já que o medo da população americana fora projetado no filme: medo de retornar à marginalidade social. White Zombie (1932)Directed by Victor HalperinShown far left: Dan Crimmins; Frederick Peters; John Printz far right: George Burr McAnnan O filme apresenta personagens que sustentavam as identificações da população em geral. Neil representa o espírito cambaleante do americano que perdeu tudo. O americano desesperado por sair do Haiti – subdesenvolvimento – e voltar aos EUA – desenvolvido. Através de pura especulação, o desesperado Neil investe toda a sua confiança em Beaumont, acabando sem noiva e sem passagem de volta para os Estados Unidos. Este tipo de oportunista americano icônico, ao perder tudo, representava muito bem o sentimento de traição que todos os especuladores tiveram de engolir na grande depressão. Beaumont promete para Neil uma festa de casamento e um emprego nos EUA, ou seja, família e estabilidade econômica. Promessas essas tão fantasiosas quanto as lendas vodus. Neil é a personagem perfeita para a identificação dos norte-americanos, ele é o banqueiro quebrado, que teve sua mulher “zumbificada” por um feiticeiro vodu. No filme os zumbis são retratados como cadáveres que são obrigados a “re-viver” para serem controlados por um feiticeiro. Legendre – aristocrata europeu – é o patrão que suga suas almas e escraviza os seus corpos. Os controla como se fossem fantoches, utilizando-se apenas de poder mental. Os faz trabalhar na usina de açúcar, pilotar carroças, roubar cadáveres no cemitério e até perseguir e matar pessoas. Controlados, o zumbis fazem as coisas sem pensar nem sentir, ou seja, não participam da dicotomia razão-emoção, ficando difícil considerá-los humanos. Legendre pontua que quase ninguém pode escapar a essa situação, pois entre os seus zumbis está um curandeiro, um nobre, um Ministro do Interior, um bandido e um carrasco. Isso mostra o poder de Legendre ao controlar um representante de cada extrato social haitiano. Durante uma cena no moinho de açúcar, quando um zumbi tropeça, cai e é esmagado pelas engrenagens da usina, não se ouve grito algum. Os outros zumbis ignoram o evento e continuam a trabalhar. Os zumbis neste filme simbolizam a conhecida ideia de “ser engolido pela máquina” – como em Tempos Modernos ou em Matrix. Atuam como simples ferramentas em um contexto maior e mais complexo, representando tanto os haitianos affranchis excluídos, como os americanos falidos. Os zumbis são a imagem escancarada da alienação, que neste filme é imposta por forças maiores. Força localizada nas mãos dos economicamente poderosos, ou seja, ser patrão é estar fora da alienação neste contexto. Desejo de todo americano desta época: ser autônomo e não autômato. O filme, nas entrelinhas, trata de um mal-estar específico deste momento histórico. No país norte-americano ainda reverberavam as influências de uma recente pós-primeira guerra mundial e de uma pós-revolução industrial. A magnitude destes acontecimentos foi sobrepujada pelo marketing de um bem-estar norte-americano. Tais eventos produziam transformações sociais rápidas que passavam despercebidas para a população. Para os americanos a máquina foi absorvida como produto e quando os operários foram desempregados para que novas maquinarias os substituíssem não se ouviu nenhum grito de revolta, “os zumbis continuaram a trabalhar”. Apesar dos zumbis em Zumbi Branco serem escancaradamente os outros, ou seja, os haitianos – com exceção de Madeleine – a identificação destes monstros com a situação social americana era fácil de ocorrer. O fim para os zumbis é um fim sem sentido, quando não mais controlados por Legendre, apenas “despencam” por um abismo. No início dos anos 30 a realidade tornou-se incompatível com a o ideal americano de bem-estar. O homem americano deveria ser trabalhador, consumidor, pai de família provedor e inovador, enquanto a mulher americana era doméstica, dócil, mãe de família acolhedora e estável. Porém, após a quebra da bolsa, essa “fachada” tornou-se insustentável. No filme, Neil e Madeleine representam o casal americano que foi expulso do “paraíso”, habitam um purgatório social – Haiti – enquanto esperam pela oportunidade de retornar para “cima”. Desesperados, acabam sendo engolidos pela marginalidade e “zumbificados” pela alienação. Quando Madeleine morre, Neil se isola e se entrega ao alcoolismo, já a jovem é transformada em uma escrava sexual zumbi. A prostituição e o alcoolismo são considerados comportamentos humanos à margem da aceitação social. No imaginário popular da época – talvez até hoje – representavam respectivamente o trabalho “fácil” e o desemprego, dois lugares estranhos ao que se considerava uma boa conduta. Madeleine simboliza o ideal de mulher dos anos 20. Submissa a todos os homens do filme, acaba sendo transformada em zumbi para tornar-se objeto sexual. Noiva de Neil, cobiçada por Beaumont e escrava de Legendre, a jovem é uma mulher passiva, meiga, ingênua e apática. Há uma preocupação, implícita no filme, quanto ao lugar da mulher na sociedade americana dos anos 30, já que após as mulheres ganharem o direito de votar em 1919, ainda faltava o reconhecimento da mulher como algo para além de um objeto. Ao ser transformada em zumbi, Madeleine passa a ser uma boneca sem brilho nos olhos – como diz Beaumont – que pode tocar um piano com perfeição, mas não sorri. Beaumont ao se arrepender do que fizera com a garota diz: Achei que somente sua beleza me saciaria, mas a alma se foi e não consigo suportar esse olhar vazio. O fazendeiro assim reconhece que não basta ter a mulher idealizada, pois apenas alcançaria a plenitude, com uma mulher real ao seu lado. Esta imagem pode ser compreendida como uma forte crítica ao machismo e a um ideal de mulher “manequim” que serve apenas de enfeite. Madeleine é o único zumbi do filme que consegue voltar ao estado de viva, pois apenas estava drogada. O “branco” referente ao título do filme provavelmente refere-se a ela, mas não se pode deixar passar despercebido que Zumbi Branco, principalmente neste período histórico, também é um trocadilho. A imagem do zumbi ainda estava intimamente associada à figura do negro escravo, portanto o trocadilho indicava que os brancos também poderiam ser zumbis, ou seja, alienados, escravos e selvagens. É interessante ressaltar que não há um só ator negro no filme.