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Os filmes de David Lynch tendem a ser categorizados como filmes estruturalmente oníricos. Não há nada de errado em afirmações como estas. Talvez uma crítica que se possa fazer deste tipo argumentação seja a de que “filme” enquanto categoria sempre é estruturalmente onírico. Uma vertente muito forte da psicanálise compreende a experiência do cinema como uma via sublimatória, que em seus mecanismos de construção e atuação podem ser comparadas às dinâmicas de um sonho.

Freud em A Interpretação dos Sonhos (1900) propõe que os sonhos – da maneira como nos lembramos deles – atuam como um véu, distorcendo os conteúdos latentes originais destes sonhos. A proposta aqui é de que desejos socialmente inaceitáveis de nosso inconsciente são maquiados por mecanismos psíquicos para nos aparecem nos sonhos em representações mais amigáveis, de maneira que estes desejos são parcialmente realizados, não sendo nem totalmente recalcados, nem totalmente realizados. Lacan soma a esta compreensão afirmando que da mesma maneira que conseguimos articular distorções semânticas e sintáticas (Metáforas e Metonímias) durante a fala ou escrita, fazemos isto com o sonho através dos mecanismos propostos por Freud de (Condensação e Deslocamento). Assim, poderíamos dissecar nos filmes de David Lynch as imagens e discursos apresentados como um sonho e encontrarmos nele algo que articulasse à realização de desejos obscuros.

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Mas há em Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) outra proposta, que em última instância não desvalida a hipótese do filme como um sonho, mas sim “apimenta” esta hipótese. Jeffrey cruza a fronteira entre o mundo tácito e o mundo explícito. Sai da realidade convencional compartilhada e entra no mundo subjetivo do voyeurismo. Quando está dentro do armário espiando Dorothy Vallens em sua intimidade, Jeffrey é um espelho. Espelho no sentido de que mimetiza o espectador do filme. Há aqui uma dupla identificação do espectador com o personagem bisbilhoteiro: em um primeiro momento como se o espectador fosse o Jeffrey, pois vemos o ele vê com seus olhos e em um segundo momento como voyeurs do próprio voyeur. Experiência comum ao cinema como, por exemplo, a perseguição em Acossado (1960) de Godard, em que Patrícia é perseguida pelo detetive que é perseguido por Michel que por último é perseguido pelo espectador. Patrícia sabe que está sendo perseguida e sabe que seu perseguidor (detetive) está sendo perseguido. Michel vê que Patrícia está sendo perseguida e persegue o detetive. O espectador sabe de toda corrente de perseguição, assim como Michel e Patrícia. Mas a posição de Michel é a que mais se aproxima com a do espectador, pois este acha que não é visto por ninguém.

Assim, Jeffrey apresenta ao espectador o grande prejuízo que pode ocorrer a quem se dispõe a espiar, não se trata de ser pego e delatado, mas de ver mais do que se esperava ver. Ao entrar no armário para espiar, Jeffrey acaba preso em seu próprio sintoma. Além do benefício de estar presente na cena sem fazer parte dela (fantasia de onipresença do voyeur), o bisbilhoteiro será obrigado a assistir tudo que pode acontecer, ou seja, a realidade poderá fugir de seu controle. E é exatamente isso o que ocorre com a entrada de Frank no apartamento. Tem-se a certeza de que os limites entre realidade e fantasia se perderam. A ingovernabilidade dos eventos é avassaladora em Jeffrey que não encontra palavras para relatar os acontecimentos à Sandy posteriormente. Enquanto espectadores, estamos presos à nossa passividade (relativa) de observadores frente à ridícula e violenta cena de Frank e Dorothy e assim como Jeffrey padecemos de discurso simbólico que expresse o horror incestuoso que esta cena nos remete. Sim, Jeffrey está assistindo aos pais transando. Talvez o maior indício do que está cena signifique seja o próprio Frank se chamando de Papai e chamando Dorothy de Mamãe ao mesmo tempo em que a penetração não acontece. Frank é um fetichista que não consegue efetivar o coito – este deslocamento serve só para afirmar: “Sim, esta é uma cena de sexo.”.

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Estes pais representados por Frank e Dorothy representam os pais de quem? Os pais de Jeffrey? Se afirmarmos que sim duas vertentes sustentariam esta hipótese: a primeira a de que Jeffrey está nesta fresta entra cinema e sonho que é um filme de Lynch. Fresta onde a realidade do filme está em xeque e o que estaríamos assistindo seria o amadurecimento social e individual de Jeffrey através de sua odisseia por esse mundo maluco e insano que descobriu ao achar uma orelha sem corpo. A segunda vertente entenderia que Jeffrey projeta em Frank e Dorothy respectivamente seu pai e sua mãe, isto é confirmado em outro momento do filme através de um sonho do garoto, em que Jeffrey justapõe a imagem de seu pai paralisado e Frank impotente. Mas talvez a melhor pista que tenhamos sobre quem são estes pais seja a de que Jeffrey surra Dorothy durante o sexo e em sua própria estranheza repete o “sintoma” de Frank. Assim sendo, a cena traumática dos pais transando que Jeffrey assiste se trataria de algo pulsional, ou seja, inacessível a qualquer tentativa da tradução desta cena em discurso simbólico. Pulsional apenas pela passagem ao ato realizada por Jeffrey, quando bate em Dorothy. A cena passa a sensação de “eu bati nela, mas não fui eu, foi este outro dentro de mim que sou eu, mas não reconheço em mim”, ou seja, o desejo.

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O pulsional para psicanálise atua e tem sede no registro do Real, postulado por Lacan. Isto significa que o desejo pulsante está em um nível de realidade que foge as representações imaginárias (em imagem) e simbólicas (em discurso). Assim sendo, está em um registro atuante e presente, porém inacessível, que é o Real. Poderíamos avançar ao ponto de afirmar que os registros simbólicos e imaginários de apreensão da realidade funcionariam como este véu – ou veludo azul – e que ao nos colocarmos em uma posição de voyeurs, arriscamos perde-lo de vista. Quem assiste Dorothy cantar no palco não imagina o tipo de rede insana a que ela está engendrada na sua vida pessoal. O veludo azul funciona como maquiagem, neste sentido. Outra metáfora oferecida pelo próprio filme está nas lindas flores apresentadas no início do filme. Na superfície, são belas plantas ornamentais, mas na profundeza trata-se de uma mistura de esterco e besouros em uma orgia pulsante.

Para finalizar, retomemos a leitura que Zizek (relendo Lacan) faz do paradoxo de Chuang-Tsé – aquele famoso paradoxo do sonhador que sonha ser uma borboleta e quando acorda não sabe se é uma borboleta sonhando ser um humano ou um humano que sonhou ser uma borboleta. O essencial aqui é que acordamos para continuarmos sonhando, como afirma Lacan. Isto significa que no sonho chegamos a um limite muito tênue dos registros Imaginário e Simbólico com o registro Real. Se por uma via a estrutura distorcida do sonho parcialmente realiza os desejos tortuosos, por outro lado também excessivamente aproximasse da devastadora experiência do Real. Neste caso a curiosidade mata o gato. Assim, Lacan postula que quando acordamos, evitamos despertar para o Real, ou seja, para o horror inerente ao pulsante. Neste sentido acordamos para continuarmos sonhando o sonho da realidade – o sonho do social.

Portanto, se problematizarmos o filme como um sonho, não podemos perder de vista o risco de despertar que assisti-lo nos impõe. A sublimação não é um ganho, é uma perda e risco. Há sempre o risco de nos deparamos com uma orelha jogada no jardim, quando assistimos a um filme e de repente será tarde demais. Estaremos presos dentro de nossa própria espionagem, assistindo algo que de tão horroroso e depravado não haverá discurso que comporte a cena. Vestígios assombrosos do Real indicarão que estamos sonhando em sonho social. E não é exatamente neste sonho que Jeffrey acorda na última cena do filme? Acorda em seu sonho da casa própria, com a mulher perfeita e em um dia ensolarado. De fato acorda no sonho de Sandy, sua mulher sintoma. Neste sonho os Pintarroxos estão a cantar e comer besouros, que comem esterco.


 

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